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O problema democrático sanitário no Brasil

Se determinados assuntos por se tratar de temas espinhosos, infelizmente ficam restritos a deliberações unilaterais dos governantes, sem qualquer tipo de contribuição dos cidadãos, denota-se que o grau da democracia sanitária do Brasil encontra-se deficitário.

29/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A participação do cidadão para a efetiva compreensão das necessidades de saúde da sociedade, além de sua ativa colaboração para a obtenção soluções tendentes a melhorar a proteção da saúde individual e coletiva, são elementos conhecidos como imprescindíveis para a noção da saúde como direito.

Logo, denota-se que o direito à saúde somente será efetivamente alcançado, por meio da conquista de uma sociedade democrática e participativa, haja vista que nenhum direito nunca foi dado ao cidadão, mas sim conquistado.

E aqui é importante desde já fazer uma breve observação no sentido de que, com o passar do tempo, o direito passa a ser reconhecido e conquistado, por sua vez, as garantias vão sendo construídas diuturnamente, para que referido direito possa ser efetivado.

Sendo assim, para que o direito à saúde se efetive na sociedade, imprescindível que cada cidadão tenha noção individual do valor saúde, inclusive como essencial para sua dignidade, razão pela qual  referido direito merece respeitado pela sociedade e pelo Estado.

Aliás, para que haja a correta compreensão do direito à saúde, exige-se que o tema seja percebido como um valor e bem jurídico a ser tutelado, individual e coletivamente, para que o cidadão, cônscio da saúde como direito, possa ser seu próprio protagonista e, com isso, protegê-lo.

Tamanha a importância do direito à saúde como um ideal e uma responsabilidade de todos, que no século XVIII surgiu a política de saúde, denominada por Michele Foucault como “nosopolítica”:

“A nosopolítica, mais do que o resultado de uma iniciativa vertical, aparece, no século XVIII, como um problema de origens e direções múltiplas: a saúde de todos como urgência para todos; o estado de saúde de uma população como objetivo geral.”1

Portanto, em razão da importância atribuída ao tema, vale ressaltar que somente será possível assegurar o direito à saúde, por meio da democracia sanitária, cujo foco é o debate político do tema, bem como a forma pela qual este atingirá as decisões estatais de saúde, como por exemplo, políticas públicas, normas jurídicas e até mesmo as decisões judiciais.

Com base nessas afirmações, depreende-se que a democracia sanitária é considerada como o fundamento da positivação do direito à saúde, responsável pela abrangência do direito à saúde

Para o correto e regular desenvolvimento da democracia sanitária, imprescindível que referidos debates sejam realizados de maneira precedente a positivação do direito à saúde, pois do contrário, não há que se falar em democracia sanitária.

Segundo Amartya Sen, a democracia é considerada um valor universal e requer a proteção das liberdades, respeito pelos direitos legais e a garantia a livre discussão e sem censura de comentários justos. 2

Feita essa breve, mas imprescindível introdução, apesar de todas as associações, instituições e outros órgãos aptos a fomentarem e a participarem da democracia sanitária no Brasil, como por exemplo, conferências realizadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), audiências públicas pelo STF, dentre outros, penso que o Brasil ainda esteja em um estágio embrionário de desenvolvimento, não pela ausência de órgãos representativos, mas decorrente da falta de amadurecimento para o debate político democrático.

Somente a título de elucidação, importante mencionar a questão das drogas, pois a política nacional de drogas sequer é discutida pelo Ministério da Saúde, mas sim pela pasta do Ministério da Justiça, considerada pelos nossos governantes como questão de segurança pública e não de saúde pública.

Outro exemplo muito importante está relacionado ao aborto, considerado a terceira maior causa de morte de mulheres há mais de uma década, visto que por se tratar de prática ilegal, algumas gestante, inevitavelmente, dirigem-se a clínicas clandestinas e, com isso, dada a precariedade nos serviços prestados, falecem.

Apesar do tema aborto estar ligado ao direito sanitário e à saúde, pois afeta a saúde física e mental da mulher, esta discussão acaba sendo relegada, sendo considerado um tabu para a sociedade.

Outro tema importante refere-se a quais medicamentos e tratamentos o Sistema Único de Saúde (SUS) deve fornecer para o cidadão, dando azo a discussão sobre a judicialização da saúde.

Com base nessas considerações, acredito que o Brasil precisa evoluir sobremaneira, para que haja um efetivo e concreto desenvolvimento da democracia sanitária, haja vista que as discussões mencionadas acima, a título de exemplo, precisam ser realizadas pela sociedade e não propositalmente por uma classe restrita e limitada de governantes tal como ocorre na prática.

Ora, se a democracia sanitária é caracterizada pela participação política da sociedade, para a definição de temas de saúde pública, que são relevantes e afetam o direito à saúde; se determinados assuntos por se tratar de temas espinhosos, infelizmente ficam restritos a deliberações unilaterais dos governantes, sem qualquer tipo de contribuição dos cidadãos, denota-se que o grau da democracia sanitária do Brasil encontra-se deficitário.

Até mesmo porque, os temas tratados a título de exemplificação, caso não sejam debatidos democraticamente, nunca serão resolvidos, fazendo com que os problemas permaneçam ad eternum, obstaculizando o campo democrático e, por consequência lógica, a saúde.

Inclusive, a ideia de democracia sanitária pressupões uma democracia do povo, com a participação popular definida pelo Estado. Ou seja, a democracia sanitária se preocupa com a formal pela qual o Estado irá tratar da questão da saúde, justamente por isso que a participação ativa é fundamental.

Além disso, a democracia sanitária é considerada o estado democrático de direito, por meio de instituições e mecanismos de participação ativa da sociedade, em decisões sobre qualquer tema de saúde, independente do quão espinhoso possa ser.

Logo, a democracia sanitária demanda uma participação ativa dos cidadãos, nos processos de tomada de decisão, a serem adotados por todos os poderes do Estado.

Com isso, o processo legislativo realizado pelo Poder Legislativo deve ser aberto à participação popular, não apenas com a possibilidade de cidadãos assistirem aos debates nos parlamentos, mas também por meio de consultas e audiências públicas, realizadas ao longo das discussões legislativas, para que a sociedade se manifeste ativamente sobre os temas em pauta.

Da mesma forma deve ocorrer no Poder Executivo, cujas decisões também devem estar abertas por meio da participação popular.

Finalmente, o Poder Judiciário também deve ser permeado de participação popular, seja por meio da ampliação do número de cidadãos com legitimidade judicial ativa perante os tribunais, seja por meio da ampliação do acesso à justiça, seja, ainda, por meio da transparência e possibilidade de abertura do processo judicial para consultas públicas antes da decisão final (isso vem sendo realizado pelo STF, mas deveria ser realizado com mais frequência, inclusive também pelos tribunais de justiça estaduais).

Desta feita, desnecessárias maiores ilações para concluir que a democracia sanitária depende de transparência, participação ativa, da possibilidade de acesso e influir na decisão estatal de forma substantiva e não apenas formal.

Desta forma, diante de todo o exposto acima, conclui-se, portanto, que o grande problema da democracia sanitária no Brasil não é a solução do debate, mas a vedação ao debate, pois basta que o debate seja garantido, para assim eliminar o problema democrático.

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1 FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2019. pp. 298.

SEN, Amartya. Democracy as a universal value. Journal of Democracy, 10.3, 1999, p. 11-12. Disponível aqui.  Acesso em 09 de julho 2021.

Vinícius G. F. Jallageas de Lima
Advogado, mestrando em Direito Processual Civil pela USP, especialista Direito Processual Civil pela PUC-SP, em Direito Imobiliário pela FGV-SP, em Direito Médico e Hospitalar pela EPD. Sócio e fundador de Vinícius Jallageas Advocacia.

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