A nova lei de licitações teve a nítida intenção de aproximar as regras privadas de governança corporativa do dia-a-dia do lento e moroso paquiderme que é a Administração Pública.
Uma das regras com nítida influência da lei das estatais (lei federal 13.303/2016) é a dispensa estabelecida para valor de R$ 50.000,00 para serviços e compras ou R$ 100.000,00 para obras e serviços de engenharia ou manutenção de veículos automotores.
A recomendação dada pelo TCE/SP no comunicado SDG 31/21 é o de que haja imediata adoção das regras da lei 14.133/21 (grifos no original).
Assim, estabeleceu a referida recomendação:
"RECOMENDA que independentemente da possibilidade conferida de utilização simultânea das Leis nº 8.666 de 1993 e nº 14.133, de 2.021, vedadas a combinação de preceitos de uma e de outra, os Poderes e órgãos das esferas do Estado e dos Municípios avaliem a conveniência e oportunidade sobre a imediata adoção das regras da lei 14.133/21" (grifos no original).
Para quem lê nas entrelinhas, parece claro que o período de 2 anos é o período "de teste" da nova lei, espécie de período de "estágio probatório legal" onde a lei deverá ser _ paulatinamente _ aplicada pelo Poder Público.
Algumas cautelas, porém, devem ser tomadas.
Cada processo tem "vida autônoma" e é regido por uma das leis que tem vigência em cada "edital", ou seja, em cada objeto específico.
A nova lei estabeleceu um prazo de 2 anos desta convivência entre o sistema quase revogado da lei federal nº 8.666/1993 e a nova lei de licitações. Assim:
"ART 191
(...)
§ 2º Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 190, a Administração poderá optar por licitar de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso."
Assim, o prazo referido no trecho acima transcrito é de dois anos. Assim:
"Art. 190. Ficam revogados:
(...)
II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei."
Concordamos com o TCU quando decidiu sobre idêntica regra de transição na lei das estatais que o termo inicial da licitação para fins deste prazo de 2 anos é a publicação do edital e não o início da fase interna da licitação (TCU, acórdão 2279/2019, plenário. rel. min. Augusto Nardes. Julg. 25/9/2019).
A questão da dispensa, porém, reflete uma opção tácita pela provecta lei quando já realizada, no mesmo exercício de 2.021, sob a égide da lei antiga. Nesta hipótese não tem relevância a data de aplicação de quaisquer procedimentos licitatórios já que exaurido o processo administrativo de dispensa e a configuração do ato jurídico perfeito.
Explicamos melhor: digamos que determinada secretaria de um município tenha realizado dispensa de licitação, em janeiro de 2.021, para a compra de determinados produtos dentro do limite da lei 8.666/93 em valor de cerca de R$ 17.600,00, com fulcro no artigo 24, II.
A dispensa foi realizada antes da vigência da nova lei de licitações.
Seria possível a realização de dispensa _ de idêntico objeto _ em julho de 2.021 com base na lei que entrou em vigor em 1º de abril de 2021?
Não. Seria clara a ocorrência de fracionamento já que a nova lei permite a opção (em cada processo licitatório, de uma única lei) e não o uso de duas regras de dispensa que configuraria hibridismo vedado pela nova lei.
Ainda que sejam processos administrativos diferentes e editais diferentes, o objeto é o mesmo e configura burla à lei de licitações pela ocorrência de fracionamento tendo o hibridismo como instrumento de sua dissimulação.
Ocorre uma espécie de "preclusão licitatória consumativa" com o uso da lei 8.666/93 naquele objeto e configuração de ato jurídico perfeito quanto ao objeto adquirido.
Esse fenômeno ocorre em razão da vedação clara ao hibridismo na nova lei.
A jurisprudência dos Tribunais de Contas é clara ao prever que a utilização de dispensa no mesmo exercício configura a prática ilícita denominada de "fracionamento" que é burla à lei de licitações.
O "fracionamento", inobstante sua inexistência de previsão expressa na lei, é decorrência lógica do dever constitucional de licitar quaisquer objetos negociais do Poder Público combinado com o dever elementar de planejamento da administração pública.
Não é lícito ao administrador público realizar várias pequenas licitações ou várias dispensas apenas para contornar o dever constitucional de licitar.
Na hipótese de dispensa de licitação pela lei 8.666/93, após a vigência da nova lei 14.133/21 fica mais escancarada a ilicitude de utilizar-se nova dispensa para o mesmo objeto, seja qual for a lei utilizada para tanto.
No caso de aquisição no interregno temporal anterior a 1º de abril de 2.021 e nova aquisição do mesmo objeto após tal data é que pode surgir alguma dúvida sobre a suposta possibilidade de utilização das duas dispensas dos dois diplomas legais.
A dispensa em janeiro pela lei 8.666/93 e a dispensa em julho pela 14.133/21 configura ato ilícito. O fracionamento é reconhecido _ em jurisprudência uníssona _ em relação ao mesmo exercício financeiro não sendo lícito "esticar" o valor da dispensa criando modalidade híbrida, vedada expressamente pela nova lei.
Cada processo licitatório (a nova lei menciona "edital" como sinônimo de processo administrativo e de objeto) deverá indicar por qual lei será regida.
Uma primeira interpretação seria a de que "bastaria" um novo processo licitatório para autorizar o uso de uma lei distinta da lei anterior usada no mesmo objeto.
Ainda que sem previsão expressa, cada "edital" ou cada "processo administrativo" refere-se a um único objeto.
A interpretação de que fracionar processos legitimaria o fracionamento licitatório equivalente hermenêutico a "sumir com o corpo" para configurar a inocorrência do homicídio......
Um ilícito não pode ser instrumento para legitimar a prática de outro ilícito.
Apesar de não haver, ainda, jurisprudência sobre o tema em razão do pequeno lapso temporal da vigência da lei e, também, em razão da inexistência do transcurso de um exercício financeiro, ousamos afirmar que a aplicação do direito intertemporal à espécie criou uma nova figura ilícita no seio da administração pública que é o "fracionamento por hibridismo", dupla ilicitude a configurar burla à lei de licitações.
Nem se argumente que se trataria de "efeito retroativo" da nova lei que atingiria atos anteriores à sua vigência. O que ocorre é exatamente o respeito aos fatos já consumados sob a égide da lei anterior e a ocorrência de ato jurídico perfeito por parte da administração pública que a impede de refazê-lo com base na comodidade da nova lei.
Apesar da clareza da impossibilidade jurídica do "fracionamento por hibridismo" ousamos vaticinar que tal figura será muito conhecida, no futuro próximo, pela jurisprudência de nossas Cortes de Contas.