No dia 30 de junho de 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou o parecer prévio das contas do Presidente da República, no qual consta uma “folga” formal de R$ 52,1 bilhões entre o limite imposto pela EC 95/2016 para o exercício de 2020 e a sua aferição (despesas e Restos a Pagar pagos).
O Teto de Gastos 1 é um tema amplamente debatido na área de finanças públicas, em especial sobre a sua sustentabilidade futura. Nesse contexto, a Instituição Fiscal Independente (IFI) divulga em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF), de forma recorrente, uma análise sobre o risco de descumprimento do Teto de Gastos.
O debate não para por aí, a compressão que o crescimento das despesas obrigatórias primárias 2 exerce sobre as despesas discricionárias — essenciais para o funcionamento da máquina pública — também é um ponto importante no que diz respeito aos limite imposto pelo Teto de Gastos. Tanto que o orçamento de 2021 foi alvo de controvérsias entre o Executivo e o Legislativo por causa do cancelamento de despesas obrigatórias e a ampliação das emendas do relator-geral (despesas discricionárias programadas pelo relator do Projeto de lei Orçamentária Anual – PLOA).
Assim, de acordo com os fatos ora apresentados, surge o seguinte questionamento: considerando a possibilidade de rompimento e a insuficiência de recursos para o funcionamento da máquina pública, como pode haver “folga” no Teto de Gastos?
Para responder tal questão, a abordagem visa a verificar as regras fiscais que impactam o “Teto de Gastos”, a ocorrência de “folga” no período de vigência da referida limitação Constitucional (2017 a 2020) e a possibilidade de utilização dela em benefício do funcionamento da máquina pública.
O limite instituído pelo Teto de Gastos é aplicado na fase inicial do ciclo orçamentário, quando, durante a elaboração do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) a ser encaminhado ao Congresso Nacional, dever-se-á respeitar o limite previsto no § 1º, do art. 107, do ADCT 3. Contudo, a efetiva verificação do acatamento do Teto de Gastos ocorre sobre o aspecto financeiro, levando-se em conta as despesas e os Restos a Pagar (RP) primários pagos, bem como as demais operações que afetam o resultado primário durante o exercício.
Nesse contexto, outras regras fiscais a serem observadas durante a fase de execução orçamentário-financeira como a meta de resultado primário, o Limite para Movimentação e Empenho (LME), o Limite de Pagamento (LP) e as regras para cancelamento de Restos a Pagar Não Processados (RPNP) impactam diretamente na efetiva utilização do limite estabelecido para o Teto de Gastos do exercício.
Observa-se, então, que há o risco de as regras fiscais restritivas se sobreporem no tempo, gerando um “hiato” entre o planejamento e a efetiva utilização do Teto de Gastos, originando a chamada “folga”.
Faz-se mister comentar que as regras fiscais são extremamente importantes para condução da política fiscal e que em países com grande quantidade delas, como o Brasil, há uma necessidade de que elas sejam convergentes aos objetivos fiscais traçados. Todavia, deve haver um equilíbrio entre as regras fiscais, com suas limitações, e o atendimento das demandas sociais e econômicas do País. As sistemáticas ocorrências de “folgas” indicam que está ocorrendo um desequilíbrio entre as restrições fiscais e o atendimento das demandas, conforme apresentado na tabela a seguir.
Vale destacar que, em 2020, por conta do Decreto do Estado de Calamidade, o cumprimento da meta de resultado primário foi dispensado.
Inicialmente, depreende-se a existência de “folga” em todos os exercícios desde que passou a vigorar o “Teto de Gastos” e, portanto, que haveria possibilidade de sua utilização parcial, limitada à meta de resultado primário estabelecida para cada exercício. Percebe-se, ainda, que em 2020, ano em que foi dispensada a observância da meta fiscal, era possível utilizar R$ 52,1 bilhões.
É relevante mencionar, ainda, que os RP Não Processados (RPNP 4) são passíveis de cancelamentos, conforme estabelecido no Decreto 93.872/1986, de tal modo que poderá contribuir para uma redução ainda maior das despesas que “consumiram” o Teto de Gastos no exercício anterior, mas por conta do cancelamento, não impactaram a verificação do Teto de Gastos nos exercícios seguintes. Nesse caso, ocorre a utilização do restrito espaço fiscal, mediante o empenho dos créditos orçamentários, porém, em virtude do cancelamento dos RPNP, a sociedade não desfruta do produto ou serviço que deveria receber.
A existência de “folgas” no Teto de Gastos se torna contraditória perante a demanda por recursos mínimos indispensáveis ao funcionamento da máquina pública, posta em risco nos últimos exercícios. Nesses exercícios foi constatada uma dificuldade em programar e executar tais despesas. Essa situação decorre, principalmente, pela limitação imposta pelo Teto de Gastos e pela elevação dos gastos com as despesas primárias obrigatórias, que reduzem ainda mais o já insuficiente espaço fiscal para alocação das despesas primárias discricionárias, além de provocar o risco de rompimento do Teto de Gastos.
Tal fato, impeliu a revisão de regras fiscais por meio da EC 109/2021, a qual alterou a redação do art. 109 do ADCT, estabelecendo o acionamento de gatilhos quando as despesas obrigatórias cheguem a 95% das despesas primárias totais.
De acordo com o gráfico a seguir, elaborado pela IFI e divulgado no RAF de maio de 2021, infere-se que nos últimos anos o Governo tem vivido a possibilidade de um shutdwon, que é o impedimento de a máquina pública ofertar serviços fundamentais e necessários à sociedade. Também, pode-se verificar o provável acionamento dos gatilhos para contenção das despesas obrigatórias, previsto para 2026.
Ainda, segundo as projeções da IFI, há uma sinalização de que o valor mínimo a ser dispendido com a máquina pública será insuficiente a partir de 2025.
Por outro lado, a tabela a seguir traz o percentual da “folga” em comparação as despesas discricionárias, quais poderiam ser utilizadas em benefício da sociedade:
Nesse sentido, observa-se que, caso fosse efetivamente aplicado todo o limite do Teto de Gastos, no período entre 2017 e 2020, em média, 41% das despesas discricionárias poderiam ter sido ampliadas, consequentemente haveria a possibilidade de ofertar mais produtos e serviços à sociedade, como por exemplos: saúde, educação, segurança pública e Defesa.
Sendo assim, há indícios de que o arcabouço de regras fiscais, por conta das sobreposições de limitações, pode estar contribuindo para uma subutilização do Teto de Gastos. Sua revisão poderá alinhar os objetivos fiscais às prementes necessidades da população e, assim, otimizar o tão debatido Teto de Gastos, permitindo que a sociedade seja beneficiada pela plena utilização do restrito espaço fiscal.
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1 O “Teto de Gastos”, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, limitou o crescimento das despesas primárias da União ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado dos últimos doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei Orçamentárias Anual.
2 Despesa que a União tem a obrigação legal ou contratual de realizar, ou seja, cuja execução é mandatória. Os maiores grupos de despesas obrigatórias são de pessoal e de encargos sociais e os benefícios da previdência social.
3 § 1º Cada um dos limites a que se refere o caput deste artigo equivalerá:
I - para o exercício de 2017, à despesa primária paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2% (sete inteiros e dois décimos por cento); e
II - para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.
4 Despesas empenhadas, mas não pagas até o dia 31 de dezembro do exercício anterior e que não foram processadas, ou seja, apenas empenhadas, aguardando a liquidação – certificação do direito do credor.