Fala-se, com certa frequência, que a Reforma Trabalhista de 2017 diminuiu a importância do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Ocorre que a mais significativa e real diminuição vem ocorrendo por meio de decisões do STF.
O que se percebe, em outras palavras, é o processo em curso de desmonte e destruição em massa do Direito do Trabalho, sempre a partir de decisões que simplesmente desprezam o princípio da proteção do trabalhador, subordinando-o à primazia da liberdade econômica do capital.
Não há sequer equilíbrio entre essas duas visões de mundo, e os exemplos são vários (diminuição do prazo prescricional do FGTS, ampliação da terceirização para a atividade-fim da tomadora dos serviços, diminuição dos espaços de responsabilidade do poder público na terceirização trabalhista, ampliação das hipóteses de imunidade de jurisdição, validação de textos normativos que permitem a diminuição do papel dos sindicatos na ordem jurídica, viabilização de dispensas coletivas, restrição ao direito de greve, pejotização em trabalho intelectual etc.), inclusive a recente decisão que acabou com os juros de mora na fase judicial trabalhista, com a escandalosa inovação dos limites da lide (ADC's 58 e 59).
Toda a interpretação adotada pelo STF, em praticamente todas as suas últimas decisões trabalhistas, contraria o sistema de proteção do trabalhador.
Não se pode esquecer, entretanto, que o princípio da interpretação favorável ao valor social do trabalho tem base constitucional, pois o art. 7° da CRFB deixa claro que os direitos ali previstos não excluem outros que visem à melhoria da condição social do trabalhador.
Por outro lado, a diminuição da Justiça do Trabalho vem ocorrendo por meio de sucessivas decisões que restringem a sua competência.
Sob o ponto de vista legislativo, sabe-se que a EC/45, de 2004, ampliou a competência material da Justiça do Trabalho (art. 114 da CRFB), mas, no plano jurisprudencial, o STF passou a interpretá-la em perspectiva frontalmente contrária.
São vários os exemplos também, podendo-se citar os seguintes: a) incompetência para julgar contratos administrativos temporários e nulos (ADIN 3.395-DF); b) incompetência para determinar os recolhimentos previdenciários decorrentes do contrato de emprego reconhecido (RE 569056); c) incompetência para julgar pedidos de representantes comerciais (tema 550, RE 606003); d) incompetência para ações de cobrança de honorários promovidas por profissionais liberais (tema 305, RE 607520); e) incompetência para julgar pedidos relacionados aos concursos públicos promovidos pelas entidades da Administração Pública, inclusive por empresas públicas e sociedades de economia mista (tema 992, RE 960429); f) incompetência para julgar a abusividade de greve de servidores públicos celetistas da Administração Direta, de Autarquias e de Fundações de Direito Público (tema 544, RE 846854); g) incompetência para julgar pedidos envolvendo os fundos de pensão de empresas que formam o grupo empresarial com a empregadora (tema 190, RE 586453).
Desses exemplos, impõem-se, pelo menos, duas observações. A primeira diz respeito à criação de uma espécie de incompetência trabalhista em razão da participação da Fazenda Pública no processo (ex ratione personae).
É que, embora o tema seja controvertido no âmbito interno da Justiça do Trabalho, o STF, por força da ADIN-MC 3.395/DF, entende que sempre há regime jurídico-administrativo nas relações entre os entes que compõem a Fazenda Pública e os seus servidores.
Nesse sentido - não obstante tradicional e historicamente se compreender que a definição da competência material decorra dos elementos da ação -, para o STF, não há relação de trabalho, no sentido previsto no art. 114, I, da CRFB, entre um ente da Fazenda Pública e seus servidores, ainda que a contratação seja temporária ou tenha regime pela CLT.
Por conta desse julgamento (ADIN-MC 3.395/DF), o STF suspendeu toda e qualquer interpretação do inciso I do artigo 114 da Constituição Federal (na redação da EC 45/04) que inserisse, na competência da Justiça do Trabalho, a apreciação de causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo. Ademais, para o STF, as contratações temporárias para suprir os serviços públicos estão no âmbito de relação jurídico-administrativa, sendo competente para dirimir os conflitos a Justiça Comum.
Observa-se, ainda, que, de acordo com o entendimento do STF, a simples existência de pedidos fundamentados com base na CLT não afasta a competência da Justiça Comum, caso a postulação relacione-se à demanda instaurada entre Poder Público e servidor a ele vinculado por relação de ordem jurídico-administrativa. É irrelevante, nessa linha de raciocínio, a argumentação de que o contrato é temporário ou precário, ainda que extrapolado seu prazo inicial, bem assim se o liame decorre de ocupação de cargo comissionado ou função gratificada. Enfim, para o STF, não descaracteriza a competência da Justiça Comum, em tais dissídios, o fato de se requererem verbas rescisórias, FGTS e outros encargos de natureza símile, dada a prevalência da questão de fundo, que diz respeito à própria natureza da relação jurídico-administrativa, visto que desvirtuada ou submetida a vícios de origem, como fraude, simulação ou ausência de concurso público.
Assim, conforme entende o STF, compete à Justiça Comum estadual ou federal processar e julgar demandas que envolvam servidor público, de um lado, e Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional, do outro, pois essas relações evidenciam a natureza jurídico-administrativa dos contratos pelo simples fato de envolverem pessoas jurídicas de direito público que não dispõem de autonomia negocial para contratar, mas, ao contrário, estão sujeitas a uma série de limitações de índole administrativa, como os princípios da legalidade, do concurso público e da impessoalidade.
A segunda observação diz respeito ao fato de que o STF retirou a histórica competência da Justiça do Trabalho para julgar as questões relacionadas ao processo de seleção dos servidores celetistas das empresas públicas e sociedades de economia mista com o argumento de que, na fase pré-contratual, especificamente relativa às questões de concurso público, que é típico ato administrativo, predominam as razões de interesse público, principalmente por meio de aplicações de normas de Direito Administrativo.
Percebe-se, a partir das duas observações acima, que o STF, ao arrepio dos princípios da confiança e da segurança jurídica, altera a sua jurisprudência sem qualquer modificação de textos normativos e da realidade social. A alteração ocorrida em texto normativo, como mencionado, foi no sentido de ampliar a competência da Justiça do Trabalho (EC/45), jamais de diminuí-la. Por outro lado, como se sabe, por força dos arts. 926 e 927 do CPC, embora estável e coerente, é possível a alteração da jurisprudência, desde que seja necessária a adaptação do Direito às mudanças ocorridas na sociedade, para melhor servi-la, o que não se enquadra nos casos em comento, pois a realidade social brasileira, no geral, permanece a mesma pelo menos nos últimos 15 anos.
Diante desse lamentável quadro, de logo, impõe-se ao STF, quanto à questão da competência material, abandonar a equivocada visão no sentido de que, na Justiça do Trabalho, aplica-se apenas o Direito do Trabalho. É como se a Justiça do Trabalho fosse sinônima de CLT, que nem abrange todo o Direito do Trabalho. Em outros termos, parece que, para o STF, se não houver preponderância de aplicação do Direito do Trabalho no caso concreto, a Justiça do Trabalho não deve ter competência para julgá-lo.
Não é possível extrair, entretanto, essa interpretação da Constituição, e a prova disso reside no fato de que esse diploma normativo confere competência absoluta à Justiça do Trabalho, para julgar demandas oriundas da fiscalização administrativa trabalhista (art. 114, VII, da CRFB), litígios que normalmente envolvem debates essencialmente de Direito Público.
Ademais, como se sabe, em qualquer análise de um caso concreto, seja em que ramo for do Poder Judiciário, os pontos de partida e de chegada quanto à conclusão são sempre os textos normativos previstos na Constituição e nos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, e isso sem falar na Teoria do Diálogo das Fontes.
Parece óbvio, mas, nesse contexto, impõe que se diga, a expressão "relação de trabalho" é bem mais ampla do que a expressão "relação de emprego", sendo sabidamente uma relação de gênero para espécie. Ocorre que, para o STF, parece que são expressões equivalentes, com o intuito de vincular o conceito de "relação de trabalho" aos vínculos contratuais privados regidos pelo Direito do Trabalho. É como se o texto constitucional não tivesse sido alterado pela EC/45, de 2004, que, repita-se, publicamente teve como escopo ampliar competência material da Justiça do Trabalho, por meio da nova redação do art. 114 da CRFB.
Trata-se, indiscutivelmente, no mínimo, de um ativismo judicial antidemocrático, pois despreza a atuação do legislador e os conceitos historicamente construídos em âmbito interdisciplinar, principalmente a partir de todo o século XX.
Não se vislumbra, ao longo da história do direito brasileiro, qualquer vinculação do conceito de relação de trabalho à prestação de serviços privados em regime de subordinação. Os trabalhadores autônomos, e até mesmo os servidores públicos, relacionam-se juridicamente com os tomadores de serviços por meio de relação de trabalho. Afinal, é do trabalho que retiram as condições materiais para as suas subsistências e de suas famílias. Contudo, como dito, não é o que entende o STF.
No caso dos representantes comerciais, o STF entende que há uma relação meramente comercial e mercantil, devendo as demandas judiciais serem julgadas pela Justiça Comum estadual.
Mas, apesar dos retrocessos acima, espanto maior causou a recente decisão envolvendo a competência para julgar os litígios trabalhistas decorrentes da lei 11.442/2007, que trata do Transporte Rodoviário de Cargas. Para o STF1, "as relações envolvendo a incidência da lei 11.442/2007 possuem natureza jurídica comercial, motivo pelo qual devem ser analisadas pela justiça comum, e não pela justiça do trabalho, ainda que em discussão alegação de fraude à legislação trabalhista".
Ora, essa decisão contraria a lógica da definição da competência material das Justiças Especializadas. Como se sabe, essa espécie de competência é aferida pelo pedido e pela causa de pedir pertinente, ou seja, pelos elementos da demanda judicial. Sabe-se, ademais, que a competência da Justiça Comum é subsidiária em relação à competência das Justiças Especializadas. Em outros termos, como historicamente construído, inclusive no âmbito do próprio STF, somente à Justiça do Trabalho compete definir, com autoridade de coisa julgada material, sobre a existência ou não de relação de emprego em um determinado caso concreto. Essa questão, à evidência, não pode ser definida apriorística e abstratamente.
Vingando, entretanto, esse entendimento da decisão envolvendo a lei 11.442/2007 - repita-se, que trata do Transporte Rodoviário de Cargas -, estará livre o legislador para proporcionar a fuga da Justiça do Trabalho, que, diante dessa perspectiva, no geral, só julgará os litígios trabalhistas que tiverem como base contratos de emprego formalmente reconhecidos. O legislador, em outros termos, poderá definir, de forma abstrata, que o julgamento dos litígios envolvendo a ocorrência de fraude à legislação trabalhista será sempre da Justiça Comum, a não ser que o empregado tenha sua CTPS assinada. Observa-se essa tentativa, por exemplo, na redação dos arts. 442, parágrafo único, e 442-B da CLT.
Trata-se de um cenário lamentável, inclusive diante de um contexto cultural de desprezo à legalidade trabalhista e de banalização da injustiça social.
O STF, dessa forma, ao arrepio de conceitos jurídicos historicamente construídos, inclusive do princípio da realidade sobre a forma, e do avanço legislativo imposto pela EC/45, contribui para a destruição do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Tem-se a impressão, no particular, de que não se conhece a Ontologia Hermenêutica, de Heidegger, a teoria da Experiência Hermenêutica, de Gadamer, e as teses do Direito como Integridade e do Romance em Cadeia, de Ronald Dworkin.
Pelo contrário, a partir de todos esses aspectos, o que se tem visto, infelizmente, por parte do STF, é um ativismo judicial que revela um preconceito ideológico em relação ao Direito do Trabalho e à Justiça do Trabalho.
É espantoso e lamentável, mas esse comportamento e essas decisões, como é natural em uma democracia, devem ser criticadas, a fim de tentar corrigir esses evidentes equívocos na interpretação do texto constitucional, e se espera que esse singelo ensaio, de alguma forma, contribua para essa finalidade.
Se o STF continuar, contudo, avançando nessas análises e decisões restritivas, o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho continuarão caminhando inconstitucionalmente para o esvaziamento e o fim.
O STF deve se despir desse preconceito ideológico, para adequadamente reconhecer que a Justiça do Trabalho, inclusive por meio do Direito do Trabalho, tem a missão constitucional de fomentar a cidadania, qualificando o regime democrático.
Essa visão deve ser fomentada por meio de diálogos interinstitucionais entre as entidades potencialmente interessadas (ANAMATRA, ANPT, AMB, AJD, OAB, instituições sindicais etc.) e o STF, que deve perceber, de uma vez por todas, que a Justiça do Trabalho não deve ser visualizada em uma reducionista e equivocada lógica econômica de custos, mas sim como um sistema institucional relacionado à efetiva concretização da dignidade humana, à inclusão social e à tutela dos direitos fundamentais nos conflitos de interesses do mundo do trabalho.
Que essa percepção ilumine as mentes dos respeitáveis Ministros e reserve um futuro adequado para o Direito do Trabalho, a Justiça do Trabalho e, principalmente, o desenvolvimento sustentável da sociedade brasileira.
1 Cf. STF – Rcl: 46356 RS, Relator: CÁRMEN LÚCIA, data de Julgamento: 19/3/2021, data de publicação: 23/3/2021.