Migalhas de Peso

A arquitetura no Código Civil de 2002: a proteção do profissional e sua obra

A preocupação do Código Civil em matéria de arquitetura que será, na verdade, a preocupação com os direitos intelectuais incidentes sobre a criação intelectual.

26/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Se formos tomar a arquitetura como construção, a norma principal a respeito do tema no Código Civil de 2002 será aquela referente ao prazo prescricional de responsabilidade do construtor – e sobre isso há o importante acórdão do Superior Tribunal de Justiça, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, de 2019, que aplicou a regra geral do art. 205 (REsp 1.721.694-SP). Não se confundindo com o prazo de garantia do art. 618, aquele prazo é de dez anos para pretensão indenizatória e, nesse sentido, nossa jurisprudência se alinhou àquilo que determina o Código Civil francês no art. 1792-4-1, estabelecendo o prazo de 10 anos para tal responsabilização, a contar do recebimento do trabalho. Esse tema intricado, concernente aos defeitos na obra, nos levaria para caminhos outros.

No entanto, se entendermos a arquitetura como construção dotada de intenção plástica, conforme a fórmula famosa de Lucio Costa, ou de pretensão estética - para fazer cantar o ponto de apoio, como disse Auguste Perret -, a questão toma dimensão própria. Nesse sentido, parece que nossa lei civil, em três momentos, cuida do assunto com tal enfoque: nos arts. 621, 1336/III e 1510-B. Eles tratam, respectivamente, de três princípios ou linhas gerais que regem a atividade profissional na arquitetura que são: a) o princípio da inalterabilidade do projeto; b) a vedação de mudança unilateral do condomínio edilício; b) a preservação da unidade arquitetônica da edificação. Vê-se que são temas fundamentais para o arquiteto, que ele precisa conhecer, sendo a lei civil apenas um momento em que tais questões se fazem presente. Além disso, eles se interpenetram fortemente, como veremos abaixo.

2. O primeiro dispositivo, o do art. 621, trata do princípio da inalterabilidade do projeto. Este princípio está presente em diversos outros aspectos da atividade do profissional como, por exemplo, no art. 16 da lei do CAU, de 2010, que determina: “Alterações em trabalho de autoria de arquiteto e urbanista, tanto em projeto como em obra dele resultante, somente poderão ser feitas mediante consentimento por escrito da pessoa natural titular dos direitos autorais, salvo pactuação em contrário”. O Código Civil também contempla tal preocupação no referido art. 621, que, tratando do contrato de empreitada, diz:

Art. 621. Sem anuência de seu autor, não pode o proprietário da obra introduzir modificações no projeto por ele aprovado, ainda que a execução seja confiada a terceiros, a não ser que, por motivos supervenientes ou razões de ordem técnica, fique comprovada a inconveniência ou a excessiva onerosidade de execução do projeto em sua forma originária.

Parágrafo único. A proibição deste artigo não abrange alterações de pouca monta, ressalvada sempre a unidade estética da obra projetada.

Portanto, a norma determina que o empreiteiro não pode aceitar modificações no projeto feitas pelo proprietário da obra, a não ser em duas situações:

a) inconveniência ou onerosidade excessiva na realização do projeto e b) alterações consideradas de “pouca monta”. São exceções bastante discutíveis porque abertas e os arquitetos, com certeza, não concordariam com elas. De um lado, o proprietário antes do começo da execução foi informado do custo aproximado pelo profissional (e então a elevação do preço dos materiais decorrente da inflação, por exemplo,  não pode ser entendida como “motivo superveniente”); e, de outra parte, o conceito de “pouca monta” é totalmente subjetivo: trocar piso de mármore por granito, por exemplo, ainda que de cor semelhante, não será alteração de pouca importância do ponto de vista estético, embora ambos sejam revestimentos. E veja-se que será o proprietário da obra a alterar o projeto diretamente com o empreiteiro, o que se mostra inadmissível porque desconsidera a anuência do projetista, sabendo-se que na obra convivem dois direitos: o direito (material) do proprietário e o direito (intelectual) do arquiteto.

Para socorrer os profissionais da arquitetura, cabe acrescentar que o art. 15 da lei do CAU – lei posterior, portanto, ao Código Civil – determina que “Aquele que implantar ou executar projeto ou qualquer trabalho técnico de criação ou de autoria de arquiteto e urbanista deve fazê-lo de acordo com as especificações e o detalhamento constantes do trabalho, salvo autorização em contrário, por escrito, do autor”. Aqui está o princípio da inalterabilidade do projeto devidamente afirmado - e afirmado sem aquelas exceções. Vê-se que a lei do CAU trata do mesmo tema do dispositivo do Código Civil mas sem qualquer possibilidade de lesão aos direitos intelectuais do arquiteto. Um caso fortuito ou de força maior, por exemplo, alheios à vontade das partes, evidentemente que deverá ser levado em consideração, porém isto se coloca em outro plano, no entanto, no plano das excludentes genéricas de responsabilidade.

3. O segundo dispositivo, o art. 1336/III do Código Civil, trata do condomínio edilício, e prescreve como dever do condômino: “não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas”. Tal preceito é largamente invocado pelos Tribunais porque são frequentes os casos de mudanças de esquadrias, cor; fechamento da sacada da unidade condominial com vidro transparente (na qual depois se instalam persianas para proteção da peça); e ainda “instalação de grandes canaletas para passagem de mangueira de ar-condicionado pelo lado externo do apartamento” (Ap. 1003046-67.2018.8.26.0642); “quebra das paredes laterais da janela da sacada” (Ap. 1037160-15.2018.8.26.0001); “rebaixamento da janela da fachada em 30cm” (Ap. 1000884-23.2018.8.26.0441) dentre muitas outras hipóteses - em completa dissonância com os padrões permitidos e em completo desacordo com a convenção e o regimento do condomínio edilício. Daí esta vedação de modificação unilateral das partes comuns do condomínio edilício, prevista pela lei.

O Código Civil exige que a assembleia condominial defina, por exemplo, a mudança do material de revestimento da fachada do edifício – que é a face dele voltada para a via pública -, não podendo um condômino pretender mudar a “sua” de modo isolado. E, pelo princípio anterior, o arquiteto autor do projeto deve ser necessariamente consultado antes da mudança e concordar com ela: portanto, são duas as condições para se fazer isso. A primeira norma brasileira sobre o tema, de 1928, num evidente vício de linguagem, proibia ao condômino “mudar a forma externa da fachada” (um pleonasmo) - além de impedi-lo “decorar as paredes e esquadrias externas com tonalidades ou cores diversas das empregadas no conjunto do edifício” (art. 11 do Decreto nº 5.481/28 copiado pelo art. 10 da vigente lei 4.591/64; este art. 10/§ 2º só permite a alteração da fachada se o proprietário obtiver “a aquiescência da unanimidade dos condôminos” para desenvolvimento de outro projeto de fachada).

Um condomínio edilício é um todo indivisível (corpus), composto por partes privativas e por partes comuns. Dentre as partes comuns a lei elenca o “a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade” e, eventualmente, o “terraço de cobertura” (art. 1331). Assim, é evidente que a fachada integra tais partes comuns aos condôminos e não podem ser modificadas de modo unilateral por eles porque visível da rua, afetando a concepção arquitetônica da obra. Portanto, é possível que o condômino pinte as paredes internas de sua unidade como desejar, mas aquelas externas não, porque não serão só dele. Uma mudança unilateral da unidade condominial, sendo visível a partir do exterior, irá desqualificar e desvalorizar todo o conjunto edilício. Apesar disso ser algo evidente, a jurisprudência dos nossos tribunais a respeito é torrencial, demonstrando que muitos condôminos pensam na sua unidade como sendo isolada ou desconectada das demais, o que constitui grosso equívoco.

4. Por fim, o art. 1510-B do Código Civil, incluído em 2017, trata do direito de laje e fixa que: “É expressamente vedado ao titular da laje prejudicar com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício, observadas as posturas previstas em legislação local”. O direito de laje é uma modalidade da propriedade superficiária, no caso, o direito de o proprietário ceder a superfície superior ou inferior da edificação existente a outrem para que constitua nela unidade imobiliária distinta – até o limite do potencial construtivo máximo do lote. A questão, aqui, é muito próxima daquela referida acima em relação ao condomínio edilício, devendo ser preservada a linha arquitetônica da edificação como unidade estética. Com efeito, não se poderia pensar que a venda da superfície superior pudesse formar um “frankenstein” arquitetônico, com o proprietário da laje levantando nela algo em total desacordo com a construção-base. A dicção do art. 1510-B, aliás, é muito parecida com a vedação contida no art. 1422.2 do Código Civil português, de 1966 – tratando da propriedade horizontal -, segundo o qual é vedado ao condômino “prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício”.

Nesse sentido, antes já escrevi que, na perspectiva do Direito da Arquitetura, parece absolutamente necessária a aplicação do disposto no art. 16 da lei do CAU, acima transcrito, que cuida da inalterabilidade do projeto de modo adequado. A “laje” será levantada sobre uma edificação já existente, que certamente terá um profissional responsável por ela. Esse profissional deverá ser consultado, em cada caso, para que se manifeste a respeito do projeto a ser executado, podendo concordar ou discordar dele, motivadamente. Caso discorde, será necessário analisar seus motivos porque o direito de acrescer não será o direito de reduzir ou arrasar o valor da edificação de base, devendo existir uma harmonia final no conjunto. O direito de laje coloca no mercado um capital morto – que é o potencial construtivo não utilizado pelo proprietário da construção-base – mas isso não poderá implicar em desqualificação do arranjo estético do todo e nem, por suposto, intervenção não autorizada em obra protegida.

5. Como dito de início, nos três casos está em questão a preservação da criação arquitetônica e a unidade estética da obra que não pode ser alterada ou modificada por ninguém, a não ser o próprio profissional que desenvolveu o projeto e que tem direitos intelectuais sobre ele. Esta é, em resumo, a preocupação do Código Civil em matéria de arquitetura que será, na verdade, a preocupação com os direitos intelectuais incidentes sobre a criação intelectual.

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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