Migalhas de Peso

Da necessidade de prosseguimento da execução em face da parte devedora de origem quando da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica

O credor pode pleitear a desconsideração da personalidade jurídica dos envolvidos, seja por incidente próprio ou na própria peça exordial.

27/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É bem verdade que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, como positivado no art. 133 e seguintes do Código de Processo Civil e art. 50 do Código Civil, é importante aliado dos credores na busca da retomada de seus créditos, especialmente nos casos em que, mesmo após diversas medidas constritivas e pesquisas extrajudiciais, não é possível identificar bens dos devedores capazes de satisfazer o crédito, ainda que em ínfima parte.

Para aqueles que atuam na área de recuperação de crédito é comum se deparar com difíceis situações como a supradita, todavia, comumente, não se trata de mera ausência de patrimônio, mas sim de ocultação deliberada de bens por parte dos executados. Infelizmente, é habitual que os devedores busquem subterfúgios para fugir do adimplemento de suas obrigações e, por muitas vezes, abusam da personalidade jurídica de empresas suas, de seus familiares, amigos ou em nome de laranjas, alocando seus bens passíveis de penhora no patrimônio das pessoas jurídicas, crendo estarem blindando por completo estes bens.

Ocorre que, ao identificar os indícios e provas do abuso da personalidade jurídica pelos devedores, o credor pode pleitear a desconsideração da personalidade jurídica dos envolvidos, seja por incidente próprio ou na própria peça exordial. Assim, quando o incidente é recebido e instaurado pelo juízo competente, em observância ao art. 134, §3º do CPC, muitos magistrados de 1º grau determinam a suspensão processual de forma indiscriminada e não específica, ou, em clara interpretação equivocada, até mesmo ordenando a suspensão da ação executória de origem, que tramita em face dos devedores originários.

É notável que a própria a redação do art. 134, §3º do CPC, em parte, seja responsável por interpretações inadequadas, visto que esta encontra-se disposta na seguinte forma: "Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. (...) § 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.". Ora, é até mesmo de se esperar que os devedores ou requeridos no incidente busquem a suspensão da execução ou até mesmo a nulidade de atos realizados durante este suposto período de "suspensão", tendo em vista a dúbia redação do dispositivo.

Assim, em interpretação mais adequada a finalidade do dispositivo, tem-se que o ajuizamento do incidente deve suspender o trâmite da ação principal tão somente quanto àqueles que estão sendo convocados a integrar a lide, introduzidos no incidente, para que estes não sejam prejudicados com os atos expropriatórios antes de ser garantido seu contraditório e sua ampla defesa, bem como finalizada a instrução probatória. Sendo esta uma suspensão imprópria, que necessita de delimitação subjetiva, sem afetar os devedores de origem.

Ora, os executados, os quais já integram a ação principal, devem continuar a sofrer os efeitos da posição processual a que se submeteram, posto que o resultado do incidente em nada alterará a sua situação jurídica. Afinal, caso o incidente seja julgado procedente ou improcedente, os devedores de origem permanecem responsáveis pela dívida oriunda do título judicial ou extrajudicial, não sendo afetada sua obrigação acerca do pagamento.

Nesse sentido, ensina o enunciado 110 da II Jornada de Direito Processual Civil, divulgado pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ/CJF), observe-se:

Enunciado 110: A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica não suspenderá a tramitação do processo de execução e do cumprimento de sentença em face dos executados originários.

Também neste sentido, o entendimento do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que coaduna com os mais diversos tribunais pátrios:

Agravo de instrumento - Execução de título extrajudicial - Instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica - Decisão que determinou a suspensão do processo, nos termos do art. 134, § 3º, do CPC - Suspensão que atinge somente os integrantes do polo passivo do incidente - Inexistência de impedimento legal para o prosseguimento da execução em relação aos devedores originários - Decisão reformada - Recurso provido. AGRAVO INTERNO - Recurso tirado contra decisão que denegou a antecipação de tutela recursal pretendida pelo agravante - Recurso prejudicado em razão do julgamento do agravo de instrumento. (TJSP; Agravo de Instrumento 2084952-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Irineu Fava; Órgão Julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 20ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/08/2020; Data de Registro: 03/08/2020)

Com fito exemplificativo, válido trazer caso em que, mesmo com o consolidado entendimento da jurisprudência e doutrina, em decisão proferida em 07/06/2021 nos autos do IDPJ de nº 8000018-34.2021.8.05.0065, o juízo da Vara dos Feitos Relativos às Relações de Consumo, Cíveis e Comerciais de Conde/BA, ao receber e instaurar o incidente determinou a suspensão processual a que se refere o art. 134, § 3º, do CPC, todavia, de forma completamente indiscriminada e carente de delimitação subjetiva. Segue trecho dispositivo da decisão in verbis: "Nos termos do art. 134, § 3º, do CPC, determino a suspensão do processo.".

Seguidamente, buscando podar qualquer possibilidade de os devedores utilizarem tal determinação para obstar a execução de origem, o autor do incidente ingressou com o agravo de instrumento de nº 8019286-75.2021.8.05.0000, demonstrando a necessidade de delimitação da referida suspensão, buscando assegurar liminarmente a continuidade da execução em face daqueles que já são executados.

Conforme esperado, o Ilmo. Relator proferiu decisão interlocutória deferindo a antecipação da tutela recursal para garantir o regular seguimento da execução em face dos executados que não fazem parte do incidente. Segue trecho do decisório:

"(...)Lado outro, de fato, a suspensividade peculiar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica das empresas apontadas, deve se restringir às empresas executadas nele apontadas, devendo a execução prosseguir com relação às partes não abrangidas por tal incidente sob pena de graves danos à agravante.

Diante do exposto, DEFIRO O PARCIAL EFEITO SUSPENSIVO ao recurso, apenas para determinar o prosseguimento da execução quanto às executadas não indicadas no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, mantendo incólume a decisão recorrida nos demais termos, até ulterior deliberação do Órgão Colegiado. (...) (TJBA – AI nº 8019286-75.2021.8.05.0000, Relator: Aldenilson Barbosa dos Santos, 30/06/2021, Quinta Câmara Cível, Data de Publicação: DJe de 05/07/2021)"

Acaso a suspensão contida no art. 134, § 3º, do CPC fosse, de fato, mais abrangente, esta seria flagrantemente punitiva ao credor, que já amarga o inadimplemento e, em casos que se faz necessária a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tem que buscar satisfazer seu crédito mesmo com as mais variadas artimanhas dos devedores para ocultar seus bens.

Por fim, em razão da adequada interpretação do art. 134, § 3º, do CPC, abarcada pela jurisprudência e doutrina pátrias, resta evidente a impossibilidade de suspensão do feito executivo em face da parte devedora originária quando da instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Lucas Cavalcanti
Sócio-gestor e especialista em Insolvência do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Huan Raphael Tabosa de Azeredo
Bacharel em Direito e assistente jurídico do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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