Ao longo da minha jornada profissional, pelas funções que já exerci, tive o privilégio de estar, por assim dizer, em "em ambos os lados do balcão da Justiça". E maior privilégio ainda de ter sido criado em meio à área, habituado às rotinas e meandros do mundo Jurídico, dentro e fora dos tribunais e escritórios.
Isso nos dá uma visão bastante ampla do panorama das relações jurídicas e do papel do Direito na sociedade.
Ultimamente, trabalhando mais próximo à elaboração de petições e manifestações judiciais, tenho visto cada vez mais uma tendência – decorrente talvez da grande quantidade de feitos – de uma certa "frieza" da Justiça, algo que não era tão gritante décadas atrás.
É óbvio que a Justiça, por ser imparcial, tem mesmo a tendência a uma certa frieza, afinal, é conhecida a "letra fria da lei". E justamente a isso a que me refiro: apesar da frieza e crueza da lei, a Justiça é composta por pessoas, e dirigida a dirimir questões oriundas de relações entre pessoas.
E é desse "calor humano" que tenho sentido falta nos últimos tempos.
É certo que a qualidade de ensino deteriorada do país contribuiu muito para a aparente "má vontade" de juízes e promotores. Digo "aparente" porque me solidarizo com as agruras de se estar obrigado a diariamente ter de ler e "interpretar" as verdadeiras "pérolas" que pululam nos processos atualmente.
Nossos profissionais saem cada vez menos preparados dos bancos das universidades, já que antes mesmo de ingressar em uma faculdade, o aluno hoje já não mais se equipara com os alunos de outrora.
A tecnologia também tem seu grau de culpa. Basta observar nossos filhos e netos e como se comunicam nas redes sociais. Sem falar da famosa "falta de leitura", já que cada vez menos se vê interesse em se deter demoradamente à leitura de um bom livro. A onda do "fast food" avançando em todas as áreas, nessa nova realidade digital.
Mas há luz no fim do túnel. Afinal, apesar de tudo, esse mundo digital tem revolucionado nossa maneira de viver. Nunca a informação viajou tão depressa e alcançou e reuniu pessoas das mais diversas culturas, nos mais remotos cantos do mundo. A tecnologia e o avanço nas relações humanas nos abrem um horizonte novo onde nem mesmo o céu é o limite.
Porém não podemos deixar de analisar as questões humanas sob a óptica da visão humana. Afinal não somos máquinas. Tecnologias estão surgindo, é verdade, na tentativa de "padronizar" determinadas atividades e rotinas tendentes a facilitar o tramite de processos e análise de casos. Soube que já a algum tempo, empresas de peso na área da tecnologia já começaram a pensar em automatizar o processo judicial, o que eliminaria a necessidade de Advogados e Juízes, por exemplo (que demorem bastante)!
Enquanto essa aberração não acontece, temos que lidar com o que temos em mãos. E a realidade, no entanto, infelizmente, não vem fugindo tanto assim dessa tendencia de maquinismo e automação, tendo sido cada vez mais comum casos gritantes de injustiças cometidas em processos judiciais sob a proteção, de duvidosa postura ética, da "desculpa" da aplicação estrita da lei em detrimento do caso concreto. É o que diz a lei e pronto. Mas e a pessoa por trás disso? Aquela que não verá seu direito atendido ou uma oportunidade perdida, pela simples aplicação da letra fria da lei? O Direito não se presta a regula as relações humanas? Onde está a humanidade? O que houve com a fungibilidade?
Em plena era de nossos novos Código de Processo, Código Civil, sem falar em outras legislações visando implementar procedimentos mais céleres, e todas as inovações e abrandamentos trazidos (quem não respirou aliviado com os 15 dias úteis de prazo!?), será mesmo que devemos nos tornar prisioneiros de um sistema frio e formulário, em que a prática desse ou a ausência daquele pequeno detalhe, põem fim a um processo ou lhe barra o seguimento, sem atentar para a consequência disso no mundo real?
Recentemente atendi uma pessoa que, segundo a documentação que me apresentou, tinha todas as possibilidades de reverter uma determinada situação desfavorável, mas que, por circunstâncias do processo (e certa inabilidade, infelizmente, do colega que me precedeu em não atentar a esse detalhe) acabou perdendo a oportunidade, e tive de ser o portador das más notícias: de que, naquele caso, não havia nada mais que pudesse ser feito para salvar a situação.
Notem que não entro no detalhe da questão, haja visto que a miríade de questões técnicas envolvidas poderia dar ensejo a um milhão de ideias ou intermináveis discussões.
Me refiro aqui à pratica autômata do direito, mais precisamente, do processo. Nesse caso específico, não se poderia destacar nenhum erro de conduta do profissional que me antecedeu no patrocínio da causa – tecnicamente impecável sua conduta – e até mesmo manifestações muito bem postas – pautaram seu desempenho.
Mas faltou o elã, faltou aquela vinculação pessoal, o toque humano na condução do processo.
Ele não pensou – e muitos teriam agido da mesma forma – que o pequeno detalhe deixado de lado no momento oportuno foi a oportunidade perdida. A deixa não aproveitada. E que infelizmente acabou causando uma consequência absolutamente desproporcional na vida de sua (hoje não mais) cliente.
Voltando a meus anos verdes, imagino que eu possa ter incorrido na mesma "falha", sabe-se lá o destino quantas vezes! As vantagens da experiência e o olhar crítico de quem já errou mais vezes, nem sempre são um peso. Hoje enxergo meu mister com mais calma, sem a avidez de ter o direito posto na ponta da língua, e penso que todos nós poderíamos adotar a mesma prática.
Fala-se tanto, e eu sou muito adepto da ideia, de que em Direito nossa estratégia é um jogo de xadrez e não de damas – não é uma simples questão de ação e reação – mas aplica-se isso tão pouco na prática.
Sou fã da tecnologia, e me esforço em não ser pego no contrapé das atualizações do mundo digital – tento não ficar obsoleto. Lembro como ontem meu saudoso pai ao tomar contato pela primeira vez com computadores em seu trabalho, o processo aberto na frente do teclado, os óculos de leitura (que hoje eu uso) na ponta do nariz, grudado na tela do monitor, tentando inutilmente dominar o clique do mouse nos "chizes" das janelas do recém lançado Windows.
Mas não concateno a ideia de deixarmos de lado as interações humanas.
E não há lugar mais propício para refletirmos sobre elas do que nas relações jurídico processuais, afinal, é nos conflitos que muitas vezes encontramos o apaziguamento. Mas como impedir que as próprias ferramentas desse apaziguamento se voltem contra nós, tornando-se motivo de angústia e desamparo? E será mesmo que "massacrar" a parte contrária é sempre o melhor modo de atuarmos? Será que o melhor direito para o caso é a melhor saída para o cliente? Você sabe lidar com essas demandas? Como atender melhor a esses anseios?
E eu respondo: com uma visão mais próxima das consequências de nossos atos. A energia é necessária, e medidas enérgicas, quando buscadas, nos auxiliam enormemente. Mas mesmo enfáticos, atuemos com brandura. Atuemos com sabedoria, com menos automação. Deixa a frieza para a Lei, e o calor, ao humano.