A globalização exige cada vez mais dos países uma regulamentação sobre a insolvência transnacional, e o Brasil, ocupando cada vez mais uma posição central no cenário mundial, não é exceção.
Considerando esta realidade, e impulsionada pela crise do covid-19, que exigiu respostas rápidas à deterioração econômica que assolava o país, a lei 14.112/20 trouxe importantes alterações à lei 11.101/05 (Lei de Recuperações e Falências – "LRF"), introduzindo um capítulo inteiro dedicado à insolvência transnacional. Estas alterações foram amplamente inspiradas pela Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional da UNCITRAL, que é a comissão da Nações Unidas de direito comercial internacional.
De acordo com o art. 167-A da LRF, o objetivo das regras de insolvência transnacional é proporcionar mecanismos efetivos para (i) cooperação entre os juízes e autoridades brasileiros e estrangeiros, (ii) aumentar a segurança jurídica para a atividade econômica e investimentos, (iii) a administração justa e eficientes dos processos transnacionais, protegendo assim os interesses de todos os envolvidos (credores e devedores, bem como os demais interessados), (iv) proteger e maximizar o valor dos ativos do devedor, (v) promover a recuperação do devedor em crise, protegendo investimentos e preservando empregos, e (vi) promover a liquidação dos ativos do devedor, preservando e otimizando a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos da empresa.
Em linha com as alterações da LRF, em 4.6.2021 o Conselho Nacional de Justiça ("CNJ") publicou a Resolução 394/2021 ("Resolução"), que institui regras de cooperação e de comunicação direta com os juízos estrangeiros em que tramitam os processos de insolvência transnacionais, para o processamento e julgamento de tais processos.
Essa resolução é baseada no guia de cooperação e comunicação direta entre juízos de insolvência editado pelo Judicial Insolvency Network ("JIN") – que é uma rede formada por juízos de insolvência ao redor do mundo - e leva em consideração especialmente os arts. 167-P e 167-S da LRF, que estabelecem, respectivamente, que (i) o juiz deverá cooperar diretamente ou por meio do administrador judicial com a autoridade estrangeira / representantes estrangeiros, podendo comunicar-se diretamente com autoridades estrangeiras/ representantes estrangeiros, sem a necessidade de maiores formalidades, e (ii) que sempre que um processo estrangeiro e um processo de recuperação judicial, de recuperação extrajudicial ou e falência relativos ao mesmo devedor estiverem em curso simultaneamente, o juiz deverá buscar a cooperação e a coordenação entre os processos.
A Resolução estabelece que a comunicação direta entre os juízos brasileiro e estrangeiro deve ser regulada por regras estabelecidas em protocolos de insolvência a serem firmados pelos juízos. Estes protocolos devem observar as diretrizes previstas pelo JIN, as quais, inclusive, constituem um anexo da Resolução. Contudo, vale ressaltar que as diretrizes do JIN expressamente estabelecem que suas regras devem ser aplicadas conforme cada juízo entenda aplicável, considerando assim as particularidades do caso concreto.
As diretrizes do JIN e da Resolução são similares às previsões da LRF, e objetivam promover (i) a coordenação e administração eficiente e oportuna dos processos de insolvência transnacional (denominados "Processos Concorrentes"); (ii) a gestão dos Processos Concorrentes com o propósito de garantir o respeito aos interesses das partes envolvidas; (iii) a identificação, preservação e maximização do valor do patrimônio do devedor, inclusive de seus negócios; (iv) a gestão do patrimônio do devedor de modo proporcional ao montante envolvido, à natureza do caso, à complexidade das questões, ao número de credores e ao número de jurisdições responsáveis pelos Processos Concorrentes; (v) o compartilhamento de informações para a redução de custos; e (vi) a prevenção ou redução da litigância, dos custos e do transtorno para as partes dos Processos Concorrentes.
Conforme já esclarecido acima, a Resolução prevê mecanismos de comunicação direta, os quais devem observar as regras de protocolos de insolvência. De acordo com as diretrizes do JIN, os juízos devem direcionar as partes a requererem a implementação dos protocolos de insolvência ou de decisões derivadas das diretrizes do JIN.
Os protocolos de insolvência deverão dispor sobre, além da comunicação direta entre os juízos, a coordenação de determinados atos e a realização de audiências conjuntas, bem como sobre a comunicação com os credores e demais partes interessadas nos Processos Concorrentes. Logo nota-se que os protocolos de insolvência somente regulam questões procedimentais, e não podem alterar ou dispor sobre questões materiais.
Os protocolos de insolvência podem ser alterados conforme necessário para refletir eventuais mudanças nos Processos Concorrentes, sendo que, nestes casos, o juízo estrangeiro deve ser notificado sobre tal mudança assim que possível.
Uma regra importante que merece destaque é que, salvo determinação em contrário conforme estabelecido no protocolo de insolvência, as partes podem participar das comunicações como ouvintes. De modo a garantir essa participação, as partes devem ser intimadas pelo menos 5 dias antes que a comunicação ocorra.
Outra regra importante que prestigia a transparência e publicidade dos atos é que as comunicações devem ser gravadas e transcritas, sendo que cópias da gravação e/ou transcrição das comunicações podem ser juntadas aos processos e disponibilizadas às partes interessadas (sujeitas, no entanto, à confidencialidade conforme melhor entendimento do respectivo juízo).
No que tange à audiência conjunta, os juízos podem se comunicar diretamente sem a presença das partes para definir regras procedimentais do protocolo de insolvência, definindo, por exemplo, a sequência dos atos a ser implementados, como os juízos e/ou os representantes estrangeiros irão participar, a ordem da apresentação dos argumentos e como se dará a tomada de decisões, assim como para coordenar e resolver quaisquer questões processuais, administrativas ou preliminares relativas à audiência. Após a audiência conjunta, os juízes também podem se comunicar diretamente sem a presença das partes para endereçar e resolver eventuais questões pendentes. No entanto, o protocolo de insolvência deve estabelecer procedimentos céleres a fim de evitar audiências desnecessárias e custosas, na medida do possível.
Atenta à soberania e autoridade de cada um dos juízos envolvidos, a Resolução ressalva expressamente que se mantêm preservadas as respectivas jurisdições dos juízos para conduzirem as audiências conforme as regras processuais aplicáveis.
Em suma, entendemos que a Resolução visando a regular a matéria da insolvência transnacional é oportuna e bem-vinda, notadamente considerando que está atenta a questões importantes tais como ampla participação das partes interessadas e eficiência procedimental aliada à redução dos custos.