Após as discussões que emergiram em 2020 sobre os direitos de transmissão de eventos esportivos, o tema voltou para a pauta jurídica e do jornalismo esportivo com o PL 2336/21, apresentado em 24 de junho de 2020. Com tramitação em regime de urgência, no dia 14 de julho de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2336/21, que traz alterações significativas ao artigo 42 da lei 9.615/98 ("Lei Pelé"), acerca dos direitos de transmissão de eventos esportivos.
O direito de transmissão, também conhecido como direito de arena, consiste na prerrogativa da entidade desportiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, fixação, emissão, transmissão, retransmissão ou reprodução da imagem de eventos desportivos. Com previsão no artigo 42 da Lei Pelé, atualmente o direito de transmissão é de titularidade das entidades desportivas que participam do evento. Ou seja, o direito de transmissão de um embate em qualquer modalidade esportiva é compartilhado pelas equipes em disputa, de forma que a contratação por determinada emissora ou plataforma exige a concordância de ambas as entidades participantes do jogo.
As implicações do compartilhamento dos direitos de arena entre as entidades desportivas são exemplificadas pelo caso do futebol. Em 2016, foi noticiado pelos portais do jornalismo esportivo que a Turner havia adquirido os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de 2019 a 2024, de clubes da Série A, B e C, para transmissão no canal Esporte Interativo¹. Em paralelo, a Globo também havia adquirido os direitos de transmissão do mesmo campeonato, mas de outros clubes. Como resultado, os jogos envolvendo times cujos direitos haviam sido cedidos para a Globo contra aqueles que haviam cedido seus direitos para a Turner, simplesmente não poderiam ser transmitidos por nenhuma das emissoras.
Buscando alterar a regra do jogo estabelecida pela Lei Pelé, o PL 2336/21 passa a estipular que o direito de transmissão é de titularidade somente do mandante da partida esportiva, sem ingerência da equipe visitante. Essa proposta de novo regramento para a titularidade dos direitos de arena já era muito debatida, sobretudo no futebol. Para aqueles que defendem a alteração, o novo modelo beneficiaria tanto o torcedor, democratizando e ampliando a variedade das transmissões, quanto às entidades esportivas, que não ficariam travadas nas negociações dos direitos, podendo negociar com maior flexibilidade os jogos a que tem direito, aumentando a arrecadação.
Não obstante, considerando a proposta de alteração da mecânica atual das negociações do direito de arena e buscando enfrentar antecipadamente as discussões acerca dos contratos já celebrados sob a vigência da atual redação da Lei Pelé, ao longo do processo legislativo na Câmara dos Deputados algumas emendas ao PL foram debatidas e implementadas no Substitutivo ao PL 2336/21. Tais emendas incluíram no PL disposições prevendo que:
- Nova regra da titularidade do direito de transmissão atribuído ao mandante da partida não se aplica aos jogos cujos direitos já tenham sido cedidos a terceiros com base na titularidade prevista na Lei Pelé que vigorava quando da celebração do contrato de cessão dos direitos (§7º do artigo 42-A); e
- Os contratos celebrados antes da vigência do novo regramento não atingem as entidades desportivas que não cederam seus direitos de transmissão a terceiros, podendo fazê-lo livremente (§8º do artigo 42-A).
No contexto das disposições acima expostas, vale relembrar a problemática que surgiu com a Medida Provisória 984/20, de 18 de junho de 2020, editada pelo Poder Executivo ("MP 984"). A referida MP também alterava a titularidade dos direitos de arena na Lei Pelé, atribuindo o direito de negociação ao mandante da partida esportiva. A questão, porém, é que a MP 984 nada dispunha sobre os contratos celebrados antes da alteração da titularidade dos direitos, além de determinar, em seu artigo 4º, que a nova regra entraria em vigor com efeitos imediatos a partir de sua publicação.
Como reflexo dos efeitos imediatos, uma camada de direito contratual foi trazida para a discussão, culminando na disputa judicial travada entre a Rede Globo e o clube de futebol Flamengo. O conflito surgiu porque a Globo já havia adquirido os direitos de transmissão de jogos do Campeonato Carioca de 2020, ao passo que o Flamengo, com a alteração da Lei Pelé, decidiu transmitir em sua plataforma Fla TV os jogos do campeonato em que era mandante. O processo correu em segredo de justiça perante a 10ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, mas se sabe que a liminar, pretendida pela Globo para impedir o Flamengo de transmitir as partidas em que era mandante, foi indeferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro² com base na MP 984.
Vale dizer que o Flamengo não havia cedido os direitos de arena de seus jogos para a Globo, alegando, portanto, que a transmissão dos jogos em que era mandante não interferiria nos direitos adquiridos pela Globo. Por conta disso, essa questão que emergiu durante a breve vigência da MP 984, encerrada em 15 de outubro de 2020 em razão da ausência de votação pelo Congresso Nacional, parece ter sido incorporada no Substitutivo ao PL 2336/21. Isso porque, como exposto no item 2 acima, o §8º do artigo 42-A legitimaria o Flamengo a negociar com qualquer terceiro os direitos de transmissão dos jogos em que é o mandante.
Nesse contexto, com a recente aprovação do PL 2336/21 na Câmara dos Deputados, cabe agora acompanhar a evolução de sua tramitação no Senado Federal e, na hipótese de ser sancionada a alteração legislativa, eventuais novas discussões que as relações contratuais já cristalizadas podem trazer.