Migalhas de Peso

O destino da sociedade simples e da EIRELI no contexto da MP 1.040/21

Dentro desse contexto de mudanças e modificações, ao final, examina-se, também, se as alterações promovidas pela MP 1.040/21 afetarão a natureza jurídica do ato constitutivo da sociedade empresária.

23/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Depois do artigo introdutório sobre a MP 1.040/21, publicado neste Migalhas no dia 9 do mês em curso e do que se lhe seguiu no dia 19 p.p. sobre as companhias, damos continuidade a essa série que os integrantes do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial passaram a publicar no pelo mesmo meio. Como se tem visto a MP 1.040/21, foi apresentada com o intuito de dispor sobre a "facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na no Código Civil".

Mas eis que, de forma surpreendente, o referido texto foi objeto de consideráveis modificações na Câmara, com consequências em diversas áreas, sendo que abordaremos duas destas propostas, que impactam seriamente em relação às figuras das sociedades simples e das EIRELIs (empresas individuais de responsabilidade limitada), e serão objeto, agora, de análise pelo Senado.

Dentro desse contexto de mudanças e modificações, ao final, examina-se, também, se as alterações promovidas pela MP 1.040/21 afetarão a natureza jurídica do ato constitutivo da sociedade empresária.

Introdução

É secular a busca pelos comerciantes de institutos voltados para a salvaguarda do seu patrimônio pessoal dos azares do comércio, lembrando-se a sua responsabilidade como pessoa natural por todas as obrigações que assumir como comerciante individual, a alcançar a totalidade dos seus bens.  Praticamente a mesma situação se dava como sócio de uma sociedade em nome coletivo, favorecido tão somente pelo benefício de ordem, vale dizer a obrigatoriedade de os credores esgotarem todo o patrimônio da sociedade antes de poderem se voltar contra os bens dos sócios, solidariamente obrigados diante daqueles lhes cabendo em momento oportuno se voltarem contra os sócios que não tivessem sido eventualmente alcançados.

De longa data eram conhecidas as sociedades em comandita, que estabelecia um modelo de isenção em relação a um dos dois tipos de sócios.

As famosas companhias criadas para a exploração extremamente arriscada das riquezas do Novo Mundo foram o primeiro instituto por meio do qual se estabeleceu a responsabilidade dos acionistas tão somente pela sua parte no capital daquelas, tendo sido, então, criado um modelo eficaz de plena separação patrimonial entre a sociedade e seus acionistas. 

Bem mais tarde na história do Direito Comercial surgiram as sociedades por quotas de responsabilidade limitada nas quais os sócios também gozavam de uma isenção patrimonial contra os credores daquela, obrigando-se solidariamente entre si pelos valores que faltassem para a integralização do capital social.

As possibilidades acima referidas de isenção ou de limitação da responsabilidade dos socios eram julgadas insuficientes pelos comerciantes (depois convertidos em empresários), tendo sido criados no direito comparado, de maneira geral, as figuras do estabelecimento individual de responsabilidade limitada e da sociedade unipessoal.  Nesse caminho o Brasil criou um ente estranho, a EIRELI, sem as características de sociedade, mas dotada de personalidade jurídica própria e de patrimônio próprio, que se multiplicou rapidamente entre nós, tendo alcançado número expressivo, como se verá abaixo, a qual está ainda em pré-adolescência, aos dez anos de sua introdução em nosso ordenamento jurídico e cuja morte prematura e na ausência de maiores discussões ora se apresente por meio da comentada MP 1.040/21.

Ao lado dos demais ataques dessa MP a outros institutos, fica caracterizado que não vivemos um direito sério, em um país que já foi considerado não sério. Ou os institutos jurídicos são criados e extintos tão somente depois de que tenham sido exaustivamente debatidos ou continuaremos na relação daqueles países que se voltam contra os empresários e contra a criação de riqueza que eles produzem, na verdade a destruindo, o que perante nós mesmos e lá fora caracteriza-se como um insuportável Custo Brasil, que se elevará ainda mais se essa MP prosperar. Mas vamos adiante.

(i) A questão da extinção da sociedade simples

O direito societário brasileiro, anteriormente ao Código Civil de 2002, e na vigência da "teoria dos atos de comércio", dividia as sociedades em dois grupos: as sociedades comerciais, e as sociedades civis.

Tal cenário foi alterado com o Código Civil de 2002, que, embora tenha extinguido tais figuras, adotou a "teoria da empresa" e manteve a lógica de divisão das sociedades, quanto à sua natureza, sendo agora separadas em "sociedades empresárias" e "sociedades simples". As primeiras, se caracterizando por exercer profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, enquanto as sociedades simples se caracterizam por desenvolver atividade não empresária, mediante o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Essa divisão gera diversos reflexos, tal como em relação ao órgão de registro, dado que na atualidade a sociedade empresária vincula-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas (vide art. 1.150 do Código Civil).

Ainda, ponto muito relevante é que o Código Civil adotou a sociedade simples como um tipo de referência para o direito societário em geral. Essa, portanto, a sistemática vigente na atualidade.

Contudo, no curso da análise da MP 1.040/21, foi proposta mudança radical em tal situação, rompendo com a dualidade societária tradicionalmente existente no Brasil. Isto porque, propõe-se agora a extinção da figura da sociedade simples, com uma unificação pela qual as sociedades em geral se tornariam sociedades empresárias, independentemente do objeto exercido.

Em decorrência, os atuais artigos referentes à sociedade simples passariam a figurar como "regras gerais societárias", aplicáveis aos tipos societários existentes, e o registro seria centralizado nas Juntas Comerciais, eliminando-se, conforme a referida proposta, qualquer menção ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas do artigo 1.150.

É interessante, porém, constatar que a MP 1.040/21 nada trata dos órgãos de registro próprio. Apesar de alguns estudos apontarem para a extinção da sociedade simples de advogados, a conclusão deverá ser pela permanência dela no sistema. Com efeito, em nenhuma hipótese, a MP 1.040/21 altera a lei 8.906/94 que, em matéria de registro, é considerada lei especial. E, como se sabe, a lei geral não derroga a lei especial.

(ii) A questão da extinção da EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada

Outra mudança de bastante impacto decorrente do texto aprovado pela Câmara diz respeito à extinção da EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada. Pode-se afirmar o impacto, dado que existem atualmente 995.188 EIRELIs ativas, conforme dados disponibilizados pelo DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, constantes do seu "Mapa de Empresas"¹.

Cabe breve contextualização do tema:

Tradicionalmente, o Brasil sempre outorgou aos empreendedores duas alternativas para o exercício de atividades empresariais: a atuação direta como pessoa física, ou a constituição de uma sociedade. Atuando como pessoa física, seria a própria pessoa um empresário individual que, embora possua equiparação tributária às pessoas jurídicas, trata-se de pessoa natural, e que, portanto, responde de forma direta e ilimitada por suas obrigações. Não haveria nesse caso, consequentemente, separação patrimonial e limitação de responsabilidade. Alternativamente, poderia se constituir uma sociedade, adotando um dos tipos societários disponibilizados em lei. Desta forma, se obteria autonomia patrimonial entre sócios e sociedade, à qual se poderia agregar também a limitação de responsabilidade subsidiária a todos os sócios, em se tratando de sociedades limitadas e anônimas. Mas, como contrapartida, a constituição de tais sociedades demandava, tradicionalmente, pluralidade de sócios. Ou seja, a autonomia patrimonial e limitação de risco eram inacessíveis a empresários individuais, sendo figura restrita ao campo das sociedades.

Enquanto se observavam no mundo diversos experimentos destinados a conceder limitação de responsabilidade a empreendedores individuais (tal como se viu na sociedade unipessoal vastamente aceita na Europa, no estabelecimento individual de responsabilidade limitada previsto em Portugal ou na EIRL criada no Chile), como forma de incentivar o empreendedorismo, o Brasil se manteve inerte a respeito, por muito tempo, embora muito se debatesse quanto a esta temática.

Até que, em 2011, buscando oferecer equivalente alternativa, o Brasil criou a EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada, através da lei 12.441/11, que alterou o Código Civil para promover a inserção de tal figura. Note-se que a EIRELI não se confunde com o empresário individual, e tampouco com as sociedades, sendo assim um novo tipo empresarial, razão pela qual foi inserida no rol de pessoas jurídicas de direito privado (inciso VI do art. 44 do Código Civil), e teve sua disciplina inserida no artigo 980-A.  Embora não se confunda com as sociedades (havendo na doutrina que defenda a sua natureza societária, com a nossa discordância), evidente que a função econômica desempenhada pela EIRELI é a mesma das sociedades unipessoais. E, nesse contexto, ao permitir aos titulares a limitação de seu risco negocial, a EIRELI prosperou entre nós.

Entretanto, em 2019, com a criação da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19), a EIRELI perdeu em grande medida sua razão de existência, eis que a função econômica por ela desempenhada passou a ser possível também através da sociedade limitada, em situação de unipessoalidade (conforme permitido pelos parágrafos do artigo 1.052, inseridos no Código Civil pela referida lei). Não obstante tal modificação, optou o legislador por manter a figura da EIRELI em coexistência à sociedade limitada unipessoal. Inclusive, através da Instrução Normativa n. 81, de 2020, o DREI criou novo manual de registro da EIRELI, atualizando suas normas. Assim, frente a essa realidade, como dito anteriormente, muitos empreendedores decidiram por manter sua estrutura como EIRELI, ou mesmo constituir novas EIRELIs (dado que, conforme o Mapa de Empresas do DREI, número considerável de EIRELIs foram constituídas em 2020 e 2021, mesmo após a autorização para sociedades limitadas em unipessoalidade permanente).

Em seu texto original, a MP 1.040/21 não trazia referências à EIRELI. Mas as modificações inseridas pela Câmara propõem a extinção de tal figura, com a consequente revogação do inciso VI do artigo 44 do Código Civil, bem como do artigo 980-A, sendo que as entidades existentes seriam transformadas necessariamente em sociedades limitadas, em medida que impactaria aproximadamente um milhão de pessoas jurídicas no Brasil. 

(iii) O debate sobre a natureza jurídica do ato constitutivo das sociedades

Esse é um dos temas mais trabalhados no histórico de desenvolvimento do direito societário. Inicialmente, ocorreram as teorias anticontratualistas (ato coletivo, ato complexo e ato corporativo), assim qualificadas porque negavam a natureza contratual para o ato constitutivo societário. Na sequência vieram a teoria contratualista, aplicável como regra no Brasil e a teoria institucional, para explicar o ato constitutivo da sociedade anônima.

Dessa forma, percebe-se que o Brasil se encontra no limiar entre o contratualismo e o institucionalismo, com o advento do Código Civil. Afinal de contas, se, por regra, as sociedades são contratuais, no caso da sociedade anônima, da sociedade em comandita por ações e da sociedade cooperativa, a base jurídica é o estatuto social. Apesar de agora se admitir, como regra, a sociedade unipessoal, com a proposta de nova redação do art. 981 do Código Civil, pela MP 1.040/21², não se modifica a natureza do ato constitutivo societário, em termos de direito brasileiro.

Túlio Ascarelli, na obra "Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado" elenca uma série de características, mas que, para o propósito das presentes migalhas, interessa a seguinte: o contrato plurilateral se caracteriza pela possibilidade de existir mais de duas partes em tal contrato.

O contrato bilateral, como o próprio nome sugere, tem apenas duas partes (policitante e oblato), dois polos: um ativo e outro passivo. Não se pode confundir: no contrato de compra de venda, haverá sempre a parte compradora e a parte vendedora. Na parte compradora, é possível existir uma ou mais pessoas compondo; na parte vendedora, bis in idem. Mas sempre haverá somente 2 partes no contrato bilateral.

Já no contrato plurilateral, não. Nele, existe a possibilidade de se ter mais de 2 partes e, mais que isso, a possibilidade de a quantidade de partes variar no decorrer do contrato, para mais ou para menos, sendo que essa variação não modifica o contrato. Ou seja, dessa variação não resultará um novo contrato.

Atualizando os pressupostos da teoria do prof. Ascarelli, pode-se afirmar que o contrato plurilateral se caracteriza por ter um número indeterminado de partes, podendo ser uma ou mais. Ademais, os estatutos permanecem organizando a sociedade anônima, por exemplo, o que denota a não alteração da natureza jurídica do ato constitutivo societário.

Conclusões

Os temas apresentados neste texto foram objeto de longos estudos e aperfeiçoamentos, no decorrer de décadas. A figura da sociedade simples, por integrar o livro "Direito de Empresa" no Código Civil, foi objeto de análise juntamente com o referido Código, cujo projeto remete à década de 1970, e que teve trâmite de mais de duas décadas. A EIRELI, como figura destinada a viabilizar o empreendimento individual, foi igualmente precedida por diversos estudos acadêmicos, projetos de lei, até sua efetiva criação. O mesmo se diga para a natureza jurídica do ato constitutivo societário.

Assim, causa perplexidade que a proposta de extinção de ambas surja de maneira tão rápida e surpreendente, através de modificação a texto de medida provisória, gerando considerável surpresa junto à comunidade jurídica e empresarial, dados os impactos concretos que poderão ocorrer e afetarão a diversos empreendedores que atualmente se utilizam de tais figuras. Resta verificar, agora, se o Senado irá manter tão surpreendente proposta.

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1- Disponível aqui, consulta em 03/07/2021

2- O texto proposto é: "Art. 981. A sociedade é composta por uma ou mais pessoas que se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados."

Fernando Schwarz Gaggini
Advogado e professor universitário.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Giovani Magalhães
Mestre em Direito Constitucional e Relações Econômicas pela Unifor. Professor de Direito Empresarial, na Graduação em Direito da Unifor e na Pós-graduação em Direito da Unifor e da Unifametro. Professor de Direito Empresarial dos preparatórios Mege, CPIuris, Grancursos e Teresa Cruz.

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