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O potencial do blockchain diante das lacunas da regulamentação jurídica ao meio digital

Como explica a economista Elinor Ostrom, ela se destaca perante o Estado que é, enquanto instituição, uma figura recente na história, nascendo só no final do século XVIII.

22/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A humanidade vive hoje o momento de maior presença da tecnologia em cada detalhe da vida cotidiana, e são cada vez maiores as lacunas jurídicas geradas por seus avanços. Entre fake news, crimes virtuais e os outros tantos fenômenos da era da informação, o Estado muitas vezes falha em regulamentar o meio digital, acabando por fortalecer movimentos voltados à autogovernança, que podem assumir nova escala, especialmente com a chegada do blockchain.

Um panorama geral de iniciativas do Poder Público brasileiro expressa um relevante primeiro estágio de modernização, seja pelo Marco Civil da Internet1 e a  pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais2 no Legislativo ou pelos diversos projetos de inteligência artificial no Judiciário, por órgãos como o STF, CNJ, TST, TJ/MG, TJ/RN e TJ/PE. Apesar de serem notáveis tais esforços, trata-se de estágio embrionário, com inúmeras lacunas jurídicas pendentes de um entendimento consolidado, bem como 62,9 milhões de processos em trâmite ativo, segundo pesquisa de 20193.

Na carência de soluções para essa nova realidade, a autocomposição revela grande potencial. Como explica a economista Elinor Ostrom, ela se destaca perante o Estado que é, enquanto instituição, uma figura recente na história, nascendo só no final do século XVIII. A autogovernança, por outro lado, é intrínseca à própria vida em sociedade, e se mostra muito mais eficaz que o modelo panóptico atual, centralizado em uma autoridade coercitiva.

O desafio que nasce com as novas tecnologias pode ser, então, a circunstância para o renascimento desse antigo instinto de autogovernança. A ascensão do blockchain, tecnologia intrínseca à Bitcoin, é vista como um catalisador desse movimento, por permitir a construção de uma política inteiramente paraestatal, com ênfase no libertarismo e na descentralização, tirando assim o protagonismo dos órgãos estatais no oferecimento de soluções para os novos problemas.

Isso porque há uma característica muito importante do blockchain: a tecnologia nasce no tipo de conexão p2p, em que dois ou mais computadores estão diretamente conectados pela internet sem o uso de um servidor central, em uma circunstância de total autonomia.4 Isso significa que a criptografia pode permitir aos indivíduos gradualmente se organizarem e firmarem relações jurídicas de forma descentralizada.

Ao contrário do que se pode imaginar, essas transações não são realizadas de forma insegura – o seu potencial de proteção a fraudes é gigantesco, pois o sistema de blockchain cria uma cadeia de blocos que registra publicamente a regularidade de todas as transações já realizadas por um determinado usuário, que não pode desfazer qualquer uma delas. Isso significa que qualquer indício de fraude ou descumprimento de responsabilidades contratuais é destacado no perfil do usuário, manchando sua credibilidade na rede. 

No contexto das fake news, por exemplo, um padrão de disseminação de conteúdo não-confiável estaria fichado no registro da plataforma para seus futuros leitores, que estariam, portanto, mais protegidos. Em outras palavras, o usuário inconfiável é isolado automaticamente perante a sociedade, em autogovernança e sem intervenção de qualquer autoridade, substituindo-se os aspectos ­­­­­punitivo e preventivo que seriam exercidos pela coerção estatal.

O que antes parecia uma realidade distante, a integração dessa tecnologia ficou mais tangível para o público geral com o boom provocado por outro exemplo de seu uso, as NFTs. Os tokens não fungíveis funcionam como registro de autenticidade de um item digital, e somente no último semestre de 2021 faturaram bilhões de dólares, impactando severamente o mercado da arte e recebendo grande visibilidade.5 No Brasil, a integração do blockchain também encontra berço no setor privado, desde múltiplas startups até a própria Federação Brasileira de Bancos, que está expandindo seu uso para fins de segurança.

Outro exemplo excepcional é o uso do sistema pela Estônia, por ter o abraçado de forma tão ampla inclusive dentro do Poder Público. Por meio da e-Estonia, o blockchain é utilizado nos sistemas legislativo e de saúde, para proteção de dados e regulamentação de dispositivos. Os seus serviços são, inclusive, independentes de localização, o que se tornou um grande atrativo para estrangeiros.6

Do outro lado da moeda, esses primeiros casos de sucesso já sinalizam questões preocupantes sobre o seu pleno uso em grande escala. Um relevante gargalo identificado é que a tecnologia, ironicamente, tende a ser mais lenta, já que a inserção de dados não pode ocorrer simultaneamente, mas somente de forma serializada. O limite de bytes para os blocos inseridos é, também, um obstáculo, já que reduz a quantidade de transações possíveis em cada inserção. Por fim, até mesmo os smart contracts apresentaram problemas de segurança, com a proliferação de ciberataques em cima de falhas cometidas na escrita de seus algoritmos.7

Por mais que a tecnologia já traga em si novas problemáticas, é inegável seu potencial como alternativa ao modelo panóptico, seja em escala social, para garantir a segurança de um estabelecimento ou ao lidar com uma simples relação jurídica. Seu mecanismo estabelece autoridade de forma frontalmente oposta ao de costume, por meio de um modelo independente de coerção, o que por si só já é uma perspectiva valiosa, já que essa autonomia permite a progressiva independência de soluções por meio do Legislativo ou Judiciário.

Em longo prazo, o blockchain guarda em si a alternativa para um novo momento na história, em direção a uma organização social descentralizada e exercida, ainda assim, com responsabilidade. No momento atual, a sua promoção por operadores do Direito é igualmente fértil, permitindo a modernização de diversas soluções jurídicas diante dessa nova realidade. Dessa forma, é possível utilizá-la para acelerar um processo amplo de alfabetização digital e, passo a passo, construir uma sociedade de informação simultaneamente responsável e livre.

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1- Lei Federal nº 12.965 de 2014

2- Lei Federal nº 13.709 de 2018

3- Mais informações sobre tais iniciativas podem ser conferidas no artigo: DIAS, Beatriz Albino. O uso da inteligência artificial nos tribunais brasileiros. Artigo de conclusão para grau de Especialista em Direito Processual Civil no Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Curitiba, PR. 2021.

4- FARMER, John A. The specter of crypto-anarchy: regulating anonymity-protecting peer-to-peer networks. Fordham University School of Law. Nova Iorque, Nova York, EUA. 2004.

5- CNN. Ativos na moda: indústria de NFTs fatura US$ 2 bilhões no 1º trimestre. Disponível em: . 

6- Febraban. Blockchain ganha dia a dia dos bancos. Disponível em: .
Cedro Technologies. Cases de sucesso: bancos incorporam blockchain. Disponível em: .

7- E-estonia. Disponível em: .
Welivesecurity. Blockchain: problemas de segurança que giram em torno desta tecnologia. Disponível em: .

Munir Chahin Rosa
Graduado em Direito pela UFPR - Universidade Federal do Paraná

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