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A recuperação judicial de clubes de futebol e associações desportivas, de ensino, saúde ou qualquer outra natureza

Pessoas jurídicas não-empresárias, como associações, cooperativas e fundações, podem pedir recuperação judicial em função dos aspectos principiológicos e valores protegidos pelo regime jurídico instituído pela lei 11.101/05.

19/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O instituto da recuperação judicial tem ganhado espaço no noticiário geral e especializado desde a crise econômica de 2015, e posteriormente com a pandemia do covid-19 a partir de 2020.

Recuperação judicial é essencialmente isso: a propositura de um acordo de renegociação coletivo e global do passivo, do endividamento, que se dá mediante uma ação própria, de mesmo nome, e através da qual são chamados [quase] todos os credores da pessoa devedora, mediados pelo juízo processante desta ação.

Ao juízo cumpre o papel de oferecer controle de legalidade ao processo, segurança jurídica às transações ajustadas e garantir as mecânicas de "respiro" ao devedor quando do início do processo. Assim, a recuperação judicial fornece ao devedor a suspensão de suas execuções, desobrigação de apresentação de certidões negativas de débitos, proteção provisória aos seus bens de capital, controle e restrição sobre penhoras em ações individuais [mesmo dos credores não submetidos], homologação de venda de bens do ativo não-circulante, dentre outros. A efetiva renegociação do Passivo, ao seu turno, é coisa que se dá no particular universo privado das relações entre devedor e seus credores, limitando-se o Juízo a exercer análise de legalidade das cláusulas deste acordo, o Plano de Recuperação Judicial.

A legislação de regência, a lei 11.101/05, a princípio parece restringir o pedido de recuperação judicial apenas às pessoas empresárias. Já no seu primeiro artigo, numa redação cuja qualidade pode-se questionar com facilidade, a lei limita seu universo de alcance às pessoas empresárias, Jurídicas ou Físicas.

A despeito da maior parte da economia formal no Brasil ser conduzida por organizações econômicas constituídas na forma de sociedades empresárias, há um universo bastante significativo de organizações que se organizam sob outras formas jurídicas.

O resultado do PNAD de 2005, promovido pelo IBGE, dá conta de que naquele momento as associações não-lucrativas e fundações privadas brasileiras já somavam 1.709.156 empregados ocupados. Trata-se, portanto, de um relevante grupo de agentes econômicos no Mercado brasileiro que desempenha Função Social em sua Atividade Econômica (aqui assemelhada às Empresárias para estes fins).

Os clubes de futebol, amplamente noticiados como agentes relevantes de movimentação econômica, igualmente não poderiam fazer uso do mecanismo, já que em sua maioria são associações civis, e portanto, não-empresárias por previsão expressa de lei.

O conjunto de normas igualmente prescritas na lei 11.101/05 nos dá a dimensão de que o propósito da recuperação judicial não é apenas servir de instrumento de reorganização do devedor, mas para além disso e mais do que apenas isso, ser ferramenta jurídica que permita a preservação do que chamamos de Função Social da Atividade Empresária [ou de forma mais ampla, podemos aqui tratá-la como Função Social da Atividade Econômica].

O art. 47 lei 11.101/05 descreve a manutenção dos empregos ativos e a continuidade da atividade produtiva como valores fundamentais a serem buscados pelo instituto, e com isso – apenas por consequência – a preservação da pessoa empresária.

Se por um lado a busca da plena empregabilidade é um dos valores claros a serem alcançados pelo Estado brasileiro, segundo a Constituição da República, e sua proteção pela recuperação judicial se materializa com a preservação da continuidade produtiva do empregador para este fim, por outro lado, na própria atividade produtiva continuada percebe-se a proteção da boa concorrência, igualmente  prescrita como princípio e valor constitucional, que somente se realiza pela não concentração de fornecimento e circulação de bens e serviços. Em outras palavras, o alcance do estado ideal concorrencial prescrito na Constituição da República impõe a preservação de uma pluralidade de produtores e circuladores de bens e serviços.

Assim é que ao se dirigir a manutenção dos empregos ativos e continuidade da atividade produtiva, a norma se propõe efetivamente a garantir estes valores sociais constitucionais, e apenas em decorrência disso, por consequência lógica, é que a pessoa empresária se vê beneficiada pelo instituto da recuperação judicial.

Adicionalmente, por ocasião do art. 57 e do novo inciso V, do art. 73, da mesma lei [produto da reforma de 2020], a continuidade da arrecadação tributária também se mostra como valor fundamental programático do instituto. Não por caso: é a arrecadação tributária a fonte financiadora de serviços públicos, e portanto, força sustentadora e realizadora dos valores e princípios constitucionais.

Veja-se, o bem jurídico tutelado pelo instituto da recuperação judicial não pode ser o favorecimento de uma das partes num acordo plurilateral a ser celebrado por mediação judicial. Assim é que o cerne do arcabouço jurídico criado pela lei 11.101/05 não está assentado em quem são as pessoas físicas e jurídicas alcançadas pelo regime jurídico ali criado – se empresárias ou não – mas sim nos valores sociais a serem preservados com a recuperação judicial: empregabilidade, arrecadação tributária e atividade produtiva.

E é precisamente o que se propõe aqui. Tribunais de todo o país vêm compreendendo o alcance da lei 11.101/05 não apenas a luz do simples enunciado restritivo de seu art. 1º, mas principalmente a partir do real teor e propósito do instituto da recuperação judicial, e o que realmente pretende a ser: ferramenta judicial a trazer reestruturação de fissuras da Função Social da Atividade Econômica em casos concretos, realocando interesses e conflitos a fim de permitir que os valores sociais constitucionais envolvidos nas relações privadas possam coexistir com o adimplemento de credores.

Casos representativos são os das recuperações judiciais da Universidade Cândido Mendes e do clube de futebol Figueirense Futebol Clube, nos dois casos, associações civis que, por força das prescrições do Código Civil, são pessoas não-empresárias, a primeira de propósito educacional e a segunda, desportivo.

No primeiro caso, após o Juízo de primeiro grau deferir o processamento da recuperação judicial semelhantes fundamentos aos aqui discorridos, o Ministério Público recorreu da decisão, o que provocou o agravo de instrumento de 0031515-53.2020.8.19.0000 no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

No acórdão do recurso, o voto vencedor registrou com expressividade que "... há de se destacar que, ainda que no aspecto formal a mantenedora da Universidade Cândido Mendes se apresenta como associação civil, em tese, desempenha uma atividade empresária, a teor do art. 966 do Código Civil, uma vez que realiza atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, gera empregos e arrecadação para o Estado, exercendo assim a sua função social." (p. 17 do acórdão).

Mas independentemente disso, o relator registra com bastante precisão  cerne do debate aqui promovido, quando informa para "... a necessidade de se mitigarem os dispositivos legais da lei de regência, dentro é claro da ordem constitucional, como no caso em análise, para que se preservem as atividades de renomada instituição de ensino e a salvaguarda daqueles que dela dependem, sobretudo os credores, evitando-se, assim, a frustração de uma das próprias finalidades fundamentais da lei 11.101/2005 (art. 49)." (p. 18 do acórdão).

No caso do Figueirense Futebol Clube, a associação teve indeferido o seu pedido de recuperação judicial na origem, sendo reformada a decisão em segundo grau por decisão monocrática do relator do agravo de instrumento 5024222-97.2021.8.24.0023 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Naquela ocasião, o relator precisou de forma acertada ao pontuar que "O intérprete não pode se distanciar dos fatos, na forma como são apresentados ou mesmo mediante aplicação das regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 375 do CPC). O mundo do futebol não pode ser considerado como mera atividade social ou esportiva, essencialmente por tudo que representa em uma comunidade e toda a riqueza envolvida (passes dos jogadores, patrocínios, direitos de imagem e de transmissão, entretenimento e exploração da marca)." (p. 15 da decisão)

Assim é que concluímos que a aplicação moderna do Direito não pode mais se restringir ao mero exercício de desenvolvimento da norma escrita a um caso concreto sobre a qual deve incidir.

Mais do que isso, o Direito brasileiro, amparado em valores e princípios, e em normas escritas, mas igualmente nos precedentes judiciais que hoje dão sustentação a si próprios, são todos elementos fundamentais a serem buscados para a construção do melhor Direito ao caso concreto.

Nosso entendimento é que a lei 11.101/05, ao encerrar seus institutos somente às pessoas empresárias logo de seu primeiro artigo, o faz com uma restrição que não se comporta pelo próprio espírito dos institutos que traz à sociedade e como os constrói ao longo do texto normativo.

É a razão pela qual compreendemos plenamente viável o deferimento e processamento de recuperações judiciais não apenas às pessoas empresárias que assim o sejam pela forma prescrita em lei, mas igualmente às pessoas que a princípio estariam vedadas à atividades empresária, como associações, fundações e cooperativas, mas que em virtude da atividade que exercem, acabem permitindo que a função social de sua atividade seja tutelada pelo mesmo regime prescrito na lei 11.101/05.

Filipe Sales Bezerra
Advogado e sócio do escritório Sales Bezerra Advogados, administrador judicial de recuperações judiciais pela Polaris Administração Judicial, mestre em direito empresarial, especialista em direito societário e minerário, e professor universitário de Recuperações de Empresas e Falências.

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