Não há dúvida de que o Poder Judiciário do Estado de São Paulo é um dos órgãos jurisdicionais mais eficientes de toda a federação brasileira1. Se considerarmos o produto interno bruto do Estado2, sua densidade demográfica, e, consequentemente, a complexidade das causas que são submetidas à jurisdição paulista todos os dias, é patente que esta eficiência é resultado da competência administrativa e institucional acumulada ao longo de décadas.
Também não se questiona que uma tal eficiência resulta da elevada qualidade técnico-jurídica dos desembargadores e desembargadoras que compõem as câmaras do Tribunal de Justiça do Estado. Além da senioridade que marca os ocupantes destes cargos, adquirida ao longo de anos de judicatura em instâncias inferiores, a formação dos magistrados é aprimorada constantemente, seja através da participação em escolas de formação, seja através do exercício da docência em faculdades e universidades públicas e privadas.
Evidentemente, também se explica a elevada qualidade do Poder Judiciário paulista pela máxima competência dos juízes e juízas que conformam as primeiras instâncias. Selecionados por intermédio de concursos públicos dos mais difíceis e rigorosos, após anos e anos de estudos e dedicação, os magistrados e magistradas têm contato direto com a população, com os casos concretos, a colheita de provas, enfim, o trabalho árduo de entrega da prestação jurisdicional.
Se o Estado de São Paulo é o que é, isto se deve, em boa medida, a seu Poder Judiciário.
Nada obstante, sabemos que a elevadíssima qualidade dos acórdãos proferidos pelas câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo resulta, também, do importante auxílio que é conferido aos desembargadores e desembargadoras pelos agentes púbicos ocupantes do cargo de assistente jurídico. Tais agentes, bacharéis e bacharelas em direito, têm como função precípua auxiliar os magistrados de segunda instância na confecção dos respectivos acórdãos.
Nesse mesmo sentido, sabe-se que a reconhecida qualidade das sentenças proferidas por juízes e juízas de primeiro grau de jurisdição está intimamente relacionada com a primordial e valorosa função exercida pelos agentes públicos ocupantes do cargo de assistente judiciário. Também são servidores e servidoras com bacharelato em ciências jurídicas, aprovados em dificílimos concursos públicos após anos e anos de preparação, dedicação e estudos. Estão, por assim dizer, na "linha de frente" da atividade jurisdicional, pois enquanto os assistentes jurídicos deparam-se com processos já instruídos, provas colhidas e decisões já proferidas, os assistentes judiciários devem organizar, compreender e auxiliar os julgadores na preparação das sentenças a partir de fatos concretos, do contato direto com as partes e da interpretação do material bruto.
Veja-se, pois, que os cargos de assistente jurídico e de assistente judiciário são basicamente idênticos, a não ser pela exigência de concurso público, que existe para os últimos, mas não para os primeiros: são ocupados por bacharéis e bacharelas em direito que exercem as mesmas funções de auxílio de magistrados e magistradas no que concerne à preparação das respectivas decisões judiciais, quer se qualifiquem como acórdãos, quer se qualifiquem como sentenças. Idênticos agentes, uns aprovados em concursos públicos enquanto outros não, mas que exercem funções idênticas.
Pasme-se, no entanto! Suas remunerações são substancialmente diferentes. Os assistentes jurídicos recebem quase o dobro dos assistentes judiciários!
Que razões justificam essa diferença? Do ponto de vista jurídico simplesmente não há.
Aliás, não é preciso sequer formação técnica para compreender que a situação, por si só, agride o senso de justiça de toda a gente. Indague-se a qualquer um ou a qualquer uma como devem ser tratadas pessoas que se encontram numa mesma situação e a resposta certamente será: da maneira idêntica.
Juridicamente falando, no entanto, uma tal discrepância viola claramente o princípio da isonomia, tal como positivado no art. 5º, caput, do texto constitucional. Não se pode desigualar os iguais, sob pena de realização de privilégio odioso, repugnado desde a Revolução Francesa. Também resta ignorada a incorporação da isonomia no subsistema do direito administrativo, uma vez que a situação confronta diretamente o princípio da impessoalidade, tal como estampado no art. 37, caput, da Constituição Federal. Finalmente, há pronunciamento claro e substantivo do Conselho Nacional de Justiça nesse sentido: "As carreiras dos servidores de cada Tribunal de Justiça devem ser únicas, sem distinção entre cargos efetivos, cargos em comissão e funções de confiança de primeiro e de segundo graus"3.
Pois bem, um possível argumento que pode ser levantado favoravelmente à tese da constitucionalidade da diferença dos vencimentos consiste em afirmar que os técnicos jurídicos devem auxiliar os desembargadores e as desembargadoras, enquanto os técnicos judiciários devem auxiliar os juízes e as juízas. Considerando que os primeiros se encontram na segunda instância e os segundos na primeira, a diferença estaria justificada.
No entanto, sabemos, desde que foi publicada a Teoria pura do direito, de Hans Kelsen, que, em um genuíno Estado Democrático de Direito, o jurisdicionado não deve obediência nem ao julgador, nem à decisão, mas apenas e tão somente à norma. Não se trata do grau hierárquico daquele que exerce a função jurisdicional na estrutura do Poder Judiciário e tampouco da decisão que este adota, mas da hierarquia da norma que ingressa no sistema jurídico.
A não ser que se queira aproximar do ponto de vista de Carl Schmitt, teórico do nazifascismo, não são as pessoas dotadas de autoridade e tampouco as decisões por elas proferidas que sustentam a validade das normas, mas estas é que se conferem validade reciprocamente, encimadas que estão pela chamada "norma hipotética fundamental". Este é um ensinamento elementar de todas as democracias modernas.
Assim, é fácil compreender que tanto o assistente jurídico, quanto o assistente judiciário auxiliam na preparação de normas jurídicas singulares e concretas, que passarão a ocupar a estrutura do ordenamento jurídico no momento em que forem formalizadas como sentenças ou acórdãos. O que importa é o status hierárquico da norma, e não da decisão que a suporta enquanto evento do mundo do ser, e tampouco o nível hierárquico da autoridade que a adota, pois, num Estado democrático, o jurisdicionado deve obediência ao direito e não a decisões ou autoridades.
Desde Kelsen sabemos que direito é norma, e que norma é a estrutura de sentido de um ato de vontade cuja concretização se dá num texto4. Que esse texto seja um acórdão ou uma sentença, isso importa apenas a partir do momento em que ingressa formalmente no ordenamento jurídico. Assim, na medida em que o assistente jurídico e o assistente judiciário não proferem acórdãos e nem sentenciam, mas apenas auxiliam na formalização textual destas decisões, ambos os cargos exercem essencialmente idêntica função, qual seja, o auxílio na preparação de textos normativos. Devem, pois, receber idêntica remuneração sob pena de violação do princípio da isonomia sob quaisquer ângulos ou pontos de vista que se pretenda analisar a situação.
--------
1- Cf.: “TJSP atinge a pontuação máxima no Índice de Produtividade Comparada da Justiça, afere o CNJ”. Disponível aqui. Acesso em 19/06/2021.
2- Cf.: “São Paulo é a 21ª maior economia do mundo”. Disponível aqui. Acesso em 19/06/2021.
3- Cf.: Artigo 22, caput, da Resolução nº 219/2016 do Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui. Acesso em 19/06/2021.
4- KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 81.