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PASEP: o que esperar do julgamento na sistemática de recursos especiais repetitivos?

A manutenção ou a alteração da jurisprudência da Corte a respeito da legitimidade passiva ad causam pode afetar o processamento de mais de 35 mil ações que tramitam em todo o país.

19/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP foi instituído pela lei Complementar 8/1970 para estender aos servidores públicos os benefícios advindos do então recém-criado Programa de Integração Social – PIS, que beneficiou os trabalhadores da iniciativa privada.

Conforme se extrai da mensagem enviada pelo Poder Executivo ao submeter o projeto de lei complementar ao Congresso Nacional, propôs-se a formação de um fundo que possibilitaria aos servidores públicos “a fruição de um patrimônio individual em contínuo crescimento, senão também mediante a criação de estímulos e hábitos de poupança, formadores de uma mentalidade nova, indispensável ao nosso desenvolvimento econômico e social”.

A proposta consistia no depósito mensal, pelos entes federados, de parte de suas receitas correntes, para que o montante daí resultante ficasse sob a guarda do Banco do Brasil. Quando da passagem do servidor para a inatividade, a instituição financeira entregaria os valores aos servidores públicos, numa iniciativa que à época foi alcunhada de “humanitária”, pelo deputado relator do projeto de lei.

Desde então, a matéria foi submetida a uma série de alterações normativas, sendo duas delas merecedoras de maior destaque em virtude do objeto do presente artigo: i) a lei Complementar 26/1975, que unificou os fundos destinados aos servidores públicos e aos trabalhadores da iniciativa privada, sob a denominação de PIS-PASEP; e ii) a Constituição Federal de 1988, que no seu art. 239 determinou a cessação dos depósitos na conta individual dos participantes mantendo, contudo, os rendimentos dos valores depositados até então.

Daí se extrai que, embora os entes federados não contribuíssem mais para a formação da “poupança individual” de cada um dos servidores públicos, seus valores continuariam preservados e poderiam ser sacados quando do preenchimento das hipóteses normativas autorizadoras.

Até a ocorrência de qualquer uma delas, seguiu competindo ao Banco do Brasil a guarda dos valores, em atenção às diretrizes de gestão do Conselho Diretor do Fundo PIS-PASEP, criado pelo Decreto 78.276/1976, vinculado ao Ministério da Fazenda, e, atualmente, regulamentado pelo Decreto 9.978/2019.

Em linhas gerais, no que pertine à atualização monetária dos valores depositados, é de responsabilidade do Conselho Diretor definir a respectiva taxa de atualização e, do Banco do Brasil, aplicá-la.

Entretanto, é exatamente na distinção entre as competências do Banco do Brasil e do Conselho Diretor do PIS-PASEP que reside uma das maiores celeumas envolvendo o Fundo atualmente: a quem compete responder pela incorreção ou pela ausência de atualização monetária dos valores depositados nas contas vinculadas dos participantes? Ao Banco do Brasil ou à União, a quem o Conselho Diretor é vinculado?

Nos últimos anos, milhares de ações foram propostas em todo o país, motivadas pelo saldo irrisório encontrado pelos participantes ao sacarem os valores depositados em suas contas PASEP. As alegações majoritárias afirmam que, após anos e, em alguns casos, décadas, de guarda dos valores, esperava-se que o montante à disposição do servidor público fosse consideravelmente mais elevado.

Também majoritariamente, afirmam os correntistas que a União efetuou os devidos depósitos até o advento da Constituição Federal de 1988 e que o Banco do Brasil, em desrespeito às diretrizes de gestão emanadas do Conselho Diretor, deixou de aplicar os índices de correção monetária devidos, não cumprindo, portanto, com seu papel de administração dos valores custodiados.

O número de ações foi se agigantando por todos os tribunais do país até que, em 2020, quatro deles admitiram Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas a respeito do assunto. Atualmente, encontram-se em tramitação IRDR’s no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí e no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.

Ato contínuo, o Banco do Brasil, por meio da Suspensão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 71/TO requereu ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça a suspensão de todos os processos, individuais ou coletivos, em curso no território nacional que versem sobre (i) a legitimidade passiva ad causam, (ii) o prazo prescricional aplicável à espécie, (iii) a (in)existência da relação de consumo entre os titulares das contas PASEP e o Banco do Brasil S/A, (iv) os índices aplicáveis na remuneração das contas do PASEP e (v) a legalidade do creditamento direto em folha de pagamento dos valores custodiados.

O Ministro Presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ, por delegação do Ministro Presidente do Tribunal, atuando na referida SIRDR, ressaltou a existência de mais de 35 mil processos ativos sobre o tema em todo o território nacional e, concluindo que as questões discutidas nos IRDR’s são de excepcional interesse público, acolheu o pedido de suspensão feito pelo Banco do Brasil.

Na ocasião, ressaltou que a “ordem de suspensão, salvo decisão expressa em contrário do STJ ou do STF, vigorará até o trânsito em julgado da decisão de qualquer dos IRDRs” mencionados, esclarecendo que não fica impedido o ajuizamento de nova ações, que serão suspensas ao chegarem à fase de conclusão para a sentença.

Em paralelo, note-se que, também sobre o assunto, já tramitam no STJ dois recursos especiais indicados como representativos da controvérsia, quais sejam, os REsp’s 1.895.936/TO e 1.895.941/TO, cujas questões controvertidas são a legitimidade passiva ad causam para responder às demandas que questionem o saldo da conta PASEP e o prazo prescricional para o ajuizamento das referidas ações.

Conforme dispõe o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, os recursos representativos de controvérsias são, inicialmente, objeto de análise do ministro relator quanto à sua afetação, que tem 60 dias úteis para se manifestar propondo a submissão do recurso representativo da controvérsia ao rito dos repetitivos. Caso não o faça, presume-se a rejeição e o recurso especial volta à tramitação ordinária.

No caso sob análise, entretanto, temos uma peculiaridade.

Distribuídos ao ministro relator os recursos especiais representativos da controvérsia, a decisão proferida em ambos os processos não se manifestou a respeito da potencial afetação dos recursos ao rito dos repetitivos. Ao revés, os recursos especiais tiveram sua tramitação suspensa até o trânsito em julgado dos IRDR’s que motivaram a SIRDR 71/TO, acima mencionada.

O eventual prazo recursal contra tal decisão já se escoou, sem que fosse apresentada qualquer irresignação pelas partes.

O que se conclui, assim, é que se trata de hipótese peculiar, em que o trâmite de um potencial recurso repetitivo está condicionado ao trânsito em julgado de IRDR’s que serão julgados em Tribunais de Justiça.

Fato é que, conforme o art. 987 do CPC/2015, do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, a serem recebidos com efeito suspensivo, o que nos leva à conclusão que o trânsito em julgado dos IRDR’s poderá ocorrer no Superior Tribunal de Justiça ou no Superior Tribunal Federal.

Até lá, portanto, nos resta avaliar a jurisprudência do STJ e tentar traçar um panorama de como a Corte vem decidindo a respeito da legitimidade passiva ad causam nas ações que questionam o saldo da conta PASEP.

De início, o Tribunal decidia de modo remansoso pela aplicação, mutatis mutandis, da Súmula 77/STJ, que tem o seguinte teor: “A Caixa Econômica Federal é parte ilegítima para figurar no polo passivo das ações relativas às contribuições para o fundo PIS/Pasep”.

Argumentava-se pela extensividade do raciocínio ao Banco do Brasil já que, à semelhança da CEF, que administrava o PIS, o BB seria apenas uma instituição bancária intermediária na gestão do PASEP e, portanto, parte ilegítima para responder às demandas.

Em 2020, contudo, notou-se uma guinada na jurisprudência, que passou a cunhar o entendimento de que nas ações que versem sobre a responsabilidade decorrente da má gestão dos valores depositados, com alegações de saques indevidos e de ausência de atualização monetária da conta PASEP, a legitimidade é sim do Banco do Brasil e, por consequência, a competência é da justiça comum estadual. Vide, a propósito, o AgInt no REsp 1.882.4708/DF, Relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 18/12/20; o AgInt no REsp 1.872.808/DF, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18/12/20; o AgInt no REsp 1.893.584/DF, Relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 18/03/21 e o AgInt no AgInt no REsp 1.894.352/DF, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 19/5/21.

Relevante notar que assim que chegou ao STJ a grande massa de processos recentes, questionando a legitimidade para figurar no polo passivo das ações em discussão, as decisões monocráticas eram dissonantes e ora entendiam pela legitimidade do BB, ora pela da União, determinando, por consequência, a competência da justiça estadual ou federal para conhecer das demandas.

Entretanto, a exemplo dos julgamentos colegiados acima citados, tanto a Primeira quanto a Segunda Turma atualmente têm sido unânimes ao entender pela legitimidade do Banco do Brasil, o que demonstra uma forte tendência da Corte pela manutenção desse posicionamento num eventual julgamento de Recurso Especial a ser interposto de qualquer dos IRDR’s que tramitam nos Tribunais Justiça já mencionados nesse artigo.

A análise dos julgados revela que a questão tem sido resolvida a partir da Teoria da Asserção e da avaliação da causa de pedir. Em regra, os julgados fundamentam-se no fato de que as partes não têm questionado em juízo os parâmetros definidos pelo Conselho Diretor, mas sim os supostos desfalques decorrentes da gestão inadequada das contas PASEP. Em linhas gerais, tais desfalques estão lastreados nas teses de aplicação equivocada dos índices de correção monetária e/ou de ocorrência de saques indevidos.

Em assim sendo e concluindo que a causa de pedir das demandas é a prática de atos ilícitos na administração dos valores existentes na conta PASEP, exsurge o entendimento da legitimidade do Banco do Brasil, o único responsável pela administração dos valores depositados.

Dado o quadro fático que se desenhou, com o condicionamento da decisão pela afetação dos recursos especiais representativos da controvérsia ao rito dos repetitivos ao trânsito em julgado dos IRDR’s, resta aguardar o pronunciamento dos Tribunais de Justiça e a eventual interposição de recursos especiais.

Somente a partir de então será possível compreender se o STJ irá reafirmar sua jurisprudência pela legitimidade do Banco do Brasil ou proceder à outra guinada, voltando às origens da Súmula 77 e entendendo pela legitimidade da União, o que pode impactar o trâmite de mais de 35 mil ações pendentes no Poder Judiciário brasileiro atualmente. 

Lara Caroline Miranda
Servidora Pública do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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