Migalhas de Peso

Reflexões sobre a recuperação judicial e a falência de agentes econômicos não empresários

A possibilidade de aplicação dos institutos da recuperação judicial e da falência a associações civis, fundações e cooperativas, à luz da reforma da lei 11.101/2005 e da pandemia da covid-19.

15/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Embora tenha promovido diversas atualizações necessárias à legislação falimentar, um importante – e polêmico – ponto da reforma da Lei de Recuperação Judicial e de Falência (lei 14.112/2020) permaneceu controvertido: o impasse sobre sua aplicação a agentes econômicos não empresários (associações civis, fundações e cooperativas). Soma-se a isso o fato de que a pandemia da covid-19 impactou as receitas de muitos destes agentes e provocou grandes e notórias mudanças no mercado, o que tornou o tema em evidência ainda mais urgente. Logicamente, a despeito das dificuldades expostas, a jurisprudência buscou cumprir o seu papel de sedimentar a aplicação do Direito, mas esta tarefa se mostrou significativamente complexa, conforme as considerações expostas abaixo.

Em primeiro lugar, faz-se necessário analisar a situação dos clubes de futebol, que, em regra, são constituídos na forma de associações civis (ao menos enquanto o PL 5516/2019, que cria a figura da Sociedade Anônima de Futebol, permanece em trâmite na Câmara dos Deputados) – conforme o art. 53 do Código Civil - e sofreram um considerável impacto em suas receitas por força da pandemia da covid-191. Afinal, estes expressivos agentes econômicos possuem legitimidade para se sujeitar à Lei de Recuperação Judicial e de Falência (LRF)? A determinação legal pode ser mitigada em benefício da manutenção da atividade desportiva organizada e profissional? Independentemente da corrente interpretativa adotada, fato é que há uma grave lacuna na legislação, que, em poucos meses de vigência da nova lei, já provocou extensas discussões. Destarte, apesar de a LRF não disciplinar esta matéria, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ/SC) decidiu recentemente que associações civis podem pleitear recuperação judicial.

O entendimento jurisprudencial acima mencionado foi fixado no caso dos agentes Figueirense Futebol Clube (associação civil constituída em 12/6/1921) e Figueirense Futebol Clube Ltda. (sociedade empresária constituída em 23/12/2014), que ajuizaram, em litisconsórcio, pedido de tutela cautelar antecedente preparatória de pedido de recuperação judicial, correspondente ao processo número 5024222-97.2021.8.24.0023, em trâmite no Juízo da Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis (Estado de Santa Catarina).

Na exordial, os pleiteantes enfatizaram os prejuízos à receita causados pela pandemia da covid-19 e a viabilidade de reestruturação do clube, sob o argumento de que o retorno do público aos jogos de futebol, a alteração na administração e o deferimento da tutela cautelar pretendida seriam suficientes para permitir o seu soerguimento.2

Outrossim, os devedores se valeram de outro caso recente de pedido de recuperação judicial ajuizado por associação civil, da Universidade Cândido Mendes, cujo processo, correspondente ao número 0093754-90.2020.8.19.0001, tramita na 5ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro). Neste processo, distribuído em 11/5/2020, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) interpôs agravo de instrumento (número 0031515-53.2020.8.19.0000) em face da decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial. Diante disso, em 15/10/2020, os desembargadores da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) acordaram em dar provimento parcial ao recurso, tão somente para que fosse nomeado Administrador Judicial nos moldes do ato executivo conjunto 53/2013, do TJRJ.3

Em síntese, no caso da Universidade Cândido Mendes, o TJ/RJ decidiu mitigar a determinação da LRF, diante da afirmação, pela recuperanda, de que é expressiva contribuinte tributária, gera milhares de empregos e presta serviços educacionais a milhares de alunos. Assim, o Tribunal Estadual permitiu o prosseguimento da recuperação judicial, por entender que os interesses da instituição, de seus dependentes e de seus credores deveriam ser preservados – com base nos princípios da preservação da empresa e da função social da empresa (aplicados por analogia, em notável observância à Teoria da Empresa4). Todavia, este acórdão foi publicado antes da vigência da lei 14.112/2020 (publicada em 24/12/2020).

No que tange ao pedido de recuperação judicial do Figueirense, sua petição inicial foi distribuída em 11/3/2021 e, em seguida, indeferida pelo juiz de Direito Luiz Henrique Bonatelli, por meio de sentença pronunciada em 12/3/2021, sob o fundamento de que a intenção do legislador ao editar a LRF não era permitir a recuperação judicial de associações civis, porquanto tal "oportunidade ímpar" foi, justamente, proporcionada pela reforma da LRF.5

Diante do indeferimento da exordial, o Figueirense interpôs apelação (número 5024222-97.2021.8.24.0023) e, através da decisão monocrática pronunciada em 18/03/2021 pelo desembargador relator Torres Marques, o TJ/SC desconstituiu a sentença apelada e reconheceu a legitimidade ativa dos apelantes. Para o referido magistrado, o art. 2º da LRF não restringe expressamente seu âmbito de incidência, de modo que, como a associação civil em questão é equiparada a sociedades empresárias pela lei 9.615/1998 (Lei Pelé) e desenvolve atividade econômica organizada desde 1921, é possível que seja submetida aos institutos da recuperação judicial e da falência.6

Note-se que o juízo a quo adotou um entendimento positivista, ao passo em que o juízo ad quem adotou um entendimento principiológico (menos literal). Entretanto, ambas as correntes doutrinárias possuem ampla e respeitável fundamentação, tendo em vista que a proibição ou a anuência da recuperação judicial de associações civis, que não possuem finalidade lucrativa, não foi disciplinada pela lei 14.112/2020.

Em se tratando da aplicação da LRF a cooperativas, expõe-se o exemplo dos agentes UNIMED de Manaus Empreendimentos S/A e UNIMED de Manaus Cooperativa de Trabalho Médico Ltda., que ajuizaram pedido de recuperação judicial em litisconsórcio, correspondente ao processo 0762451-34.2020.8.04.0001, em trâmite no juízo da 16ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus (Estado do Amazonas).

Um dos principais argumentos das recuperandas para pleitear a recuperação judicial foi que estas atendem mais de cinquenta mil clientes – o que as configura como uma das maiores operadoras de planos de saúde do Estado do Amazonas – e que sua atuação tem sido essencial para o enfrentamento da pandemia da covid-19 na região. Em 18/12/2020, o juiz de Direito Abraham Peixoto Campos Filho avaliou, em síntese, que a função social da cooperativa foi suficientemente demonstrada e que, neste caso, deveria prevalecer a proteção e a preservação do interesse da coletividade. Segundo o magistrado, a "mera formalidade do momento da constituição das pessoas jurídicas" não pode impedir a recuperação de "uma companhia que gera mais de 600 empregos e presta serviço essencialmente relevante ao povo amazonense"7. Sob tais fundamentos, o processamento da recuperação judicial foi deferido.

Na oportunidade, destaca-se que o art. 4º da lei 5.764/1971 (Lei das Cooperativas) determina que as cooperativas não se sujeitam à falência. Destarte, o STJ já havia fixado o entendimento - vide o recurso especial 1.833.613 - DF (2019/0250811-9) - de que cooperativas não podem se submeter ao regime da LRF.8

Finalmente, quanto à possibilidade de aplicação dos institutos da recuperação judicial e da falência a fundações – entidades criadas nos moldes do art. 62, do Código Civil -, menciona-se o caso da Fundação Educacional Monsenhor Messias, mantenedora do Centro Universitário de Sete Lagoas ("UNIFEMM"), cuja recuperação judicial, correspondente ao processo 5003595-71.2021.8.13.0672, tramita no Juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Sete Lagoas (Estado de Minas Gerais).

Novamente, como nos demais eventos de deferimento de processamento de recuperação judicial de agentes não empresários abordados acima, o juiz responsável pelo julgamento deste último caso fundamentou sua decisão em observância à situação de excepcionalidade provocada pela pandemia da covid-19. Conforme decisão prolatada em 12/4/2021, pelo juiz de Direito Roberto das Graças Silva, a Fundação Educacional Monsenhor Messias conseguiu demonstrar, em sua inicial, que é economicamente viável e desempenha relevante função social, de modo que, no escopo do art. 47, da LRF, o deferimento do processamento de sua recuperação judicial se fez necessário.9

Em conclusão, verifica-se que há uma lacuna na legislação recuperacional e falimentar, que gera uma sensível insegurança jurídica - notadamente porque, como no exemplo da cooperativa UNIMED de Manaus, a jurisprudência não só não tem, efetivamente, uniformizado a interpretação da lei, como também tem decidido em sentido contrário a esta. Assim sendo, e considerando que diversos processamentos de recuperação judicial de agentes econômicos não empresários foram deferidos durante a pandemia da covid-19, questiona-se: como se orientará a jurisprudência após a iminente contenção da disseminação do coronavírus?

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1 EFEITO pandemia: veja perdas dos clubes que mais arrecadaram com venda de ingressos em 2019. Globo Esporte, 17 fev. 2021. Futebol. Acesso em: 27 abr. 2021.
2 FIGUEIRENSE FUTEBOL CLUBE LTDA.; FIGUEIRENSE FUTEBOL CLUBE. Petição inicial de tutela cautelar em caráter antecedente preparatória de pedido de recuperação, na forma da LRF. Processo 5024222-97.2021.8.24.0023. Acesso em: 1º maio 2021.
3 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Processo:  Agravo de instrumento 0031515-53.2020.8.19.0000. Relator: Nagib Slaibi. Rio de Janeiro, 2 set. 2020. Acesso em: 1º maio 2021.
4 Teoria subjetivista de origem italiana que, conforme Coelho (2012), define o agente econômico empresário com base em sua importância econômica, independentemente do gênero de sua atividade (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa – volume 1. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012).
5 SANTA CATARINA. Vara Regional de Rec. Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis. Processo: Tutela Cautelar Antecedente 5024222- 97.2021.8.24.0023/SC. Juiz: Luiz Henrique Bonatelli. Florianópolis, 12 mar. 2021. Código verificador: 310012043982v4. Código CRC: 84418fca. Acesso em: 1º maio 2021.
6 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Processo: Apelação 5024222-97.2021.8.24.0023/SC. Relator: Torres Marques. Florianópolis, 18 mar. 2021. Código verificador: 775605v58. Código CRC: 80a6f4ea. Acesso em: 1º maio 2021.
7 AMAZONAS. 16ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus. Processo: 0762451-34.2020.8.04.0001. Juiz: Abraham Peixoto Campos Filho, 18 dez. 2020. Acesso em: 2 maio 2021.
8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). REsp 1.833.613/DF (2019/0250811-9). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data de julgamento: 17 nov. 2020. Data de publicação: DJe 20 nov. 2020. Acesso em: 2 maio 2021.
9 MINAS GERAIS. 1ª Vara Cível da Comarca de Sete Lagoas. Processo: 5003595-71.2021.8.13.0672. Juiz: Roberto das Graças Silva, 12 abr. 2021. Acesso em: 17 jun. 2021.

Vinícius Fernandes Reis
Acadêmico de Direito da PUC Minas. Colaborador de escritório de advocacia que presta serviços contenciosos e consultivos nas áreas cível e empresarial. Membro do GEDE - Grupo de Estudos em Direito Empresarial da PUC Minas.

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