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O decreto nosso de cada dia

Essa dita supremacia, como os demais direitos consagrados na Carta Política em vigor do nosso Estado social de direito, deve ser garantida por todas as autoridades estaduais, mas não de qualquer forma.

15/7/2021

(Imagem: Divulgação)

"Mas, o que digo? Com quem falo? Conservo ainda meu juízo?"

Na peça A Celestina, de Fernando Rojas, o personagem Calisto, sentindo-se culpado pela morte de seus criados, tenta recobrar a "consciência" com um argumento um tanto quanto perverso: "os ausentes nunca têm razão". O objetivo deste artigo não é defender ou atacar os decretos restritivos de direitos, mas compatibilizá-lo com os preceitos do ordenamento jurídico.

Um dos principais direitos com os quais se preserva no ordenamento jurídico de um país é a supremacia da Constituição, que, como é conhecido, implica que nenhuma regra, ato jurídico ou conduta ignore os mandamentos Constitucionais, que não são mais apenas consagrados em regras, mas são manifestados também como princípios e valores.

Essa dita supremacia, como os demais direitos consagrados na Carta Política em vigor do nosso Estado social de direito, deve ser garantida por todas as autoridades estaduais, mas não de qualquer forma. Assim, o mero reconhecimento de competências, direitos e deveres não garantem sua legitimidade, é necessário que existam, também, parâmetro que os compatibilize também uma perspectiva formal e material dos atos normativos, pois é a formalidade das normas que torna material e real o que a Constituição prevê.

Ao longo desse período de pandemia, convivemos, quase que diariamente, com uma guerra de decretos expedidos pela União, Estados e Municípios. Muito deles conflitantes. Nunca foi tão imprescindível a confiança legitima e obediência, que no direito chamamos de legitimidade e eficácia dos atos normativos, a esses atos administrativos que disciplinam as condutas e ações de todos diante do agravamento da pandemia. Porém, mesmo esses atos sejam dotados de eficácia e autoexecutoriedade, ou seja, sejam obedecidos sem questionamentos, esses mesmos atos normativos precisam seguir um rito e um conteúdo material legitimado pelo texto Constitucional que são verificados posteriormente.

O STF rejeitou a ADI 6.764 protocolada pelo sr. presidente da República que questionava os decretos com medidas restritivas de governadores e prefeitos. Para além dos problemas de capacidade postulatória da ADI, o argumento proposto na ação direta de inconstitucionalidade se concentrava basicamente em dois: O primeiro argumento seria o confronto das medidas sanitária diante a lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica). Não poderia o poder público intervir no funcionamento das empresas mesmo por questões sanitárias, pois feriria a liberdade econômica e a livre iniciativa. O segundo argumento é baseado no princípio da legalidade. Faltaria um Lei Geral que disciplinasse as competências e limites do Poder de Polícia Administrativa do Poder Público.

Dos dois argumentos, o segundo é um pouco mais robusto, afinal, é para a proteção da sociedade que os poderes públicos tenham limites e competências disciplinados em lei. No ordenamento jurídico alemão, há, desde 2000, a lei de proteção contra infecções (Infektionsschutzgesetz - IfSG) que disciplina as medidas de combate de prevenção a doenças infecciosas.

Embora não exista uma lei nacional de proteção contra infecções nos moldes da lei alemã, o texto Constitucional prevê dois fundamentos que confrontam os argumentos discorridos na ADI. O art. 196 disciplina que é direito de todos e dever do Estado ações que "visem à redução do risco de doença e de outros agravos". Portanto, é legitimo que o Poder Público intervenha com ações de prevenção a saúde pública mesmo em atividades privadas. Já o art. 198, I, afirma que a saúde pública é "descentralização, com direção única em cada esfera de governo". Por essa razão, tem os estados e municípios competência para instituir políticas sanitárias locais e o Poder Público competência para intervir da esfera privada.

Porém, essa discussão esconde um outro problema, esses decretos restritivos podem ser expedidos de qualquer forma? Haveria um limite de conteúdo material desses decretos? Decretos, como qualquer ato normativo, não podem ser expedidos de qualquer forma, devem eles, da mesma maneira, se compatibilizarem com os ditames Constitucionais, principalmente por serem atos administrativos, e como tal, sujeitos ao regime jurídico público. Isso para que tenham legitimidade e eficácia social.

Atendendo a um critério puramente orgânico, pode-se afirmar que as normas emanadas pelo poder executivo estadual e municipal são limitados ao terceiro nível de categorias normativas hierárquicas, chamadas de atos administrativos, ou normas infralegais1; no entanto, de uma perspectiva material, isto é, levando em consideração o conteúdo das decisões do executivo em relação a pandemia, a disposição que assume a forma de decreto, em alguns casos, pode ser uma norma com força material de lei ou em outros um ato administrativo com vocação legislativa. Por exemplos, decretos que limitam quais a atividades econômicas podem funcionar são medidas com força material de lei, já os decretos que estabelecem multas por descumprimentos têm plena vocação legislativa. Em ambos os casos, é de difícil compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro.

Para evitar essa mácula Constitucional, os decretos executivos, como atos administrativos, na disciplina do poder de polícia administrativa em atividades econômicas, ou atos administrativos ordenadores, não devem tipificar as atividades que podem funcionar, estas já têm o direito fundamental de exercê-la (art. 1, IV, art. 170, da CF/88), e se omitirem em relação ao restante das atividades. Atos administrativos ordenadores têm, nesses casos, natureza jurídica negativa, privam o particular de praticar determinação conduta.

Alguns atos administrativos não têm eficácia entre as partes, há alguns deles que projetam seus efeitos para terceiros2. No caso da limitação de atividades econômicas, os efeitos da decisão do Administrador afetam os proprietários, empregados, fornecedores e clientes. O decreto deve, por essa razão, apontar as atividades que não podem funcionar e os motivos objetivos, claros e científicos que as impedem de funcionar. Apresentando as respostas dada por um comitê científico para o combate ao COVID-19.

Afinal, foi decisão do Supremo Tribunal Federal que as decisões administrativas dos entes federativos se pautem em critérios técnicos ou científicos, reconhecidas por entidades nacional ou internacionalmente especializadas. A decisão ocorreu no julgamento cautelar de sete ações diretas de inconstitucionalidade que contestavam a então MP 966/2020.

Portanto, é dever de estados e municípios, na tomada da decisão pública, que se escorem em critérios técnicos fornecidos por entidades por eles designados e com conhecimento científico reconhecido. Os decretos devem prever que tais medidas restritivas tem amparo científico tomadas por comissão designada para essa finalidade.

Agora, passados as narrativas, o judiciário vai enfrentar essas questões, centenas de atividades econômicas atingidas por esses decretos estão propondo junto ao judiciário ações que visam reparação pelas perdas decorrentes das medidas restritivas impostas pelos decretos normativos.

Não há saída da crise sanitária que não seja dentro dos parâmetros Constitucionais.

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1 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo; Martins Fontes, 2011.
2 SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra: Almedina, 1995.

Alyson Alves de Lima
Advogado. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Professor de Direito Administrativo. Servidor Público.

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