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"Uberizaram" a previdência

A “uberização” da previdência social, no sentido da sua “plataformização”, ou seja, da precarização de sua abrangência, termina por mascarar coberturas sociais desacertadas, que em lugar de acompanhar as novas, ou seminovas, relações de trabalho, tornam o sistema previdenciário geral (mais efetivo dos mecanismos de distribuição de renda e bem-estar social) impreciso e excludente.

16/7/2021

(Imagem: Divulgação)

A nova dinâmica das relações sociais e o custeio da Previdência Social parecem estar desalinhados com os princípios da contributividade e da solidariedade que, nas sábias palavras do Professor Noa Piatã, este último "nada tem a ver com caridade, benevolência ou fraternidade, mas com a mínima solidez – segurança jurídica, para uma vida livre e digna".

Esses princípios indissociáveis foram marginalizados na legislação pertinente aos motoristas de transporte remunerado privado individual de passageiros, que tiveram suas atividades (des)regulamentadas pela lei 13.640/18 e, posteriormente, pelo DC 9.792/19, em mais um episódio de perda de uma chance regulamentar.

O reduzido decreto tem como um dos supostos objetivos normalizar a exigência de inscrição dos motoristas de plataformas digitais como contribuintes individuais do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, cuja situação previdenciária já havia sido prévia e precariamente abordada na citada lei.

A legislação mencionada fez alterações na Política Nacional de Mobilidade Urbana, instituída pela lei 12.587/12, determinando que os Municípios e o Distrito Federal fiscalizem e exijam "a inscrição como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)" desta categoria, enquanto o decreto traz que a obrigação é de inteira responsabilidade do motorista, recordando-lhes a possibilidade de sua inscrição como Microempreendedor Individual – MEI, que dá acesso apenas ao plano simplificado de aposentadoria do RGPS.

Demais disto, o Decreto, ao fazer referência isolada ao inciso II, caput, do art. 30 da lei 8.212/91, dita que o recolhimento ocorrerá por iniciativa do trabalhador, sem custeio por parte da tomadora de serviços, assim disposto.

Art. 4º  O motorista de transporte remunerado privado individual de passageiros recolherá sua contribuição ao Regime Geral de Previdência Social por iniciativa própria, nos termos do disposto no inciso II do caput do art. 30 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

O inciso citado, por sua vez, traz a seguinte redação: 

II - os segurados contribuinte individual e facultativo estão obrigados a recolher sua contribuição por iniciativa própria, até o dia quinze do mês seguinte ao da competência;

Intencionalmente dessabido foi o artigo 22, inciso III, da mesma Lei, que atribui a responsabilidade de recolhimento da respectiva contribuição à empresa tomadora de serviço, neste caso a figura da plataforma intermediadora, tal como se vê.

Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:

III - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços;

Um aspecto curioso é a menção da "inscrição" que, enquanto mero cadastro no RGPS, com o uso de documentação pessoal, não traz, objetivamente, benesse do ponto de vista da proteção social à pessoa inscrita, não havendo, neste movimento, um direcionamento apto a promover educação previdenciária para estes sujeitos.

O desinteresse destes poderes na realização da promoção de efetivos programas de educação quanto à fundamentalidade destas contribuições tem impacto direto no tão pronunciado "déficit" previdenciário, em razão da consequente redução da arrecadação e, ainda, sobrecarrega o orçamento da Seguridade Social inadequadamente.

No mínimo, preciso seria publicizar que o contribuinte individual é segurado obrigatório do RGPS, mas somente terá seus direitos previdenciários reconhecidos se, em linhas gerais, efetuar os recolhimentos previdenciário devidos sob pena de ver-se fora do alcance da proteção social.

Já a filiação, que une a pessoa natural à Previdência Social, pressupõe a respectiva contribuição, só havendo cobertura de risco social a partir de então, não obstante a presunção absoluta de recolhimento quando há prestação serviço à empresa, o que é minimamente aplicado na prática administrativa ou judicial.

Uma das saídas que pareciam óbvias para o problema posto, nos que diz que respeito ao trabalho intermediado com ajuda de softwares, cuja legislação deve ser repensada, porque além de contraditória, está ultrapassada, não apresentou soluções elogiáveis, uma vez que os novos impostos previstos, diferentemente das contribuições sociais, não têm caráter vinculativo, ou seja, não existe referibilidade com a atuação estatal.

Mais a mais, a escolha de uma das vertentes opostas de recolhimentos pode inviabilizar financeiramente a subordinação algorítmica ou o já enfraquecido sistema de "política pública de desprevidência".

De outro lado, a inexistência de vínculo empregatício por ausência de previsão legal - defendida por parcela da comunidade jurídica, deveria trazer como contrapeso ao desamparo celetista, a preservação dos direitos previdenciários constitucionalmente garantidos.

E por falar em contrapartida, a legislação debatida prevê, acertadamente, a contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP), através de estipulação, com coberturas costumeiras para morte acidental, invalidez permanente total ou parcial por acidente, mas é sabido que a natureza é distinta e sua existência paralela não tornam tais proteções excludentes entre si.

O alerta aos leitores e usuários destas plataformas digitais, portanto, parte deste movimento silencioso de inclinação de privatização de coberturas dos riscos sociais reforçado pela "nova morfologia constitucional" (EC 103/2019), que provoca o “esvaziamento da estrutura da previdência social”, em que toda a sociedade é prejudicada enquanto financiadora solidária do sistema de seguridade.

A "uberização" da previdência social, no sentido da sua "plataformização", ou seja, da precarização de sua abrangência, termina por mascarar coberturas sociais desacertadas, que em lugar de acompanhar as novas, ou seminovas, relações de trabalho, tornam o sistema previdenciário geral (mais efetivo dos mecanismos de distribuição de renda e bem-estar social) impreciso e excludente.

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https://migalhas.uol.com.br/depeso/324452/protecao-previdenciaria-no-sistema-constitucional-de-crise

GNATA, Noa Piatã Bassfeld. Solidaridade Social Previdenciária - Interpretação Constitucional e Eficácia Concreta. São Paulo: LTR, 2014.

GNATA, Noa Piatã Bassfeld. O fim da solidariedade: crítica da privatização da previdência. 1. ed. Curitiba: Alteridade, 2021.

SERAU Junior, Marco Aurélio. 4ª Edição. Seguridade Social e Direitos Fundamentais, Curitiba: Juruá, 2020.

Marília Lira de Farias
Advogada, especialista em direito previdenciário, sócia de Farias Coelho Advogados.

Alexandre Vieira
Advogado, especialista em direito securitário e Sócio-Gestor em Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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