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A cumulação do BPC com o contrato de aprendizagem pela pessoa com deficiência

A Constituição garantiu o acesso ao mundo do trabalho por meio do contrato de aprendizagem que pode ser cumulado com o BPC, e assim, instrumentalizar a dignidade da pessoa humana com deficiência.

15/7/2021

(Imagem: Divulgação)

O acesso ao mundo do trabalho formal tem se tornado cada vez mais difícil, principalmente nos países considerados em desenvolvimento. A precarização do trabalho, a informalidade e criação do segmento dos “trabalhadores de aplicativos” são fenômenos que ampliam as desigualdades socioeconômicas.

As dores sentidas pela classe trabalhadora ressoam nas pessoas com deficiência, pois a elas somam-se a discriminação, o preconceito, a falta de capacitação e falta de acessibilidade dentro e fora dos locais de trabalho.

As privações de ingresso ao mundo do trabalho também acontecem na escola com a redução de vagas em ensino profissional, impactando de forma sistêmica às condições de inserção dos jovens com deficiência na condição de aprendiz. Realimentando o ciclo vicioso de exclusão sofrida pelas pessoas com deficiência.

Por isso, entender como a legislação brasileira vem normatizando a inserção do aprendiz com deficiência torna-se questão importante, haja vista a existência de mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no país, segundo dados do IBGE.

Neste ponto, a questão que se coloca é: a pessoa com deficiência pode cumular o contrato de aprendizagem com o recebimento do benefício de prestação continuada (BPC)?

I – A invisibilidade descortinada pela Constituição de 1988

Desde a promulgação da Constituição de 1988 a invisibilidade das pessoas com deficiência no Brasil começou a ser descortinada na legislação brasileira. A Constituição da República garantiu direitos fundamentais e sociais das pessoas com deficiência de forma expressa.

Em sede constitucional destacam o direito ao trabalho isento de discriminação pelo empregador (art. 7º, XXXI), que deve ser respeitado inclusive pelo Estado ao reservar vagas em concursos públicos para pessoas com deficiência (art. 37, VIII).

Sabe-se que o exercício do direito ao trabalho passa pela garantia da pessoa com deficiência ter acesso à educação especializada, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III), também garantida pela Constituição.

No momento histórico em que se encontra a humanidade, a escola é o principal locus onde pode ocorrer a conciliação do ambiente da educação humana com o mundo do trabalho. Dessa forma, a escola tem função essencial na condução para uma vida emancipada do cidadão ao mediar a teoria e a prática.

Assim, a aproximação da escola e do trabalho é condição para que os princípios Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência internalizado como norma constitucional via decreto 6.949/2009 sejam efetivados.

Apesar de toda a construção para a inserção e inclusão no mundo do trabalho, o constituinte garantiu implementação do princípio da igualdade (art. 5º, caput) ao inserir no art. 203, V, da Constituição, o benefício de prestação continuada no valor de um salário mínimo mensal as pessoas com deficiência que “comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.

Assim, a Constituição concretiza a igualdade material para as pessoas com deficiência ao prescrever regras que tem alcance de longo prazo, como a educação e o trabalho, sem esquecer da necessidade diária de manutenção da vida com a provisão financeira da Assistência Social.

II – O contrato de aprendizagem de pessoas com deficiência

A partir das garantias constitucionais que conduzem a inclusão das pessoas com deficiência na escola e ao mundo do trabalho torna-se relevante compreender como a legislação trabalhista se harmoniza com a garantia da manutenção do benefício de prestação continuada, quando existe um contrato de aprendizagem vigente.

O contrato de aprendizagem está disposto no art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho. Em razão das peculiaridades que envolvem as pessoas com deficiência o artigo 428, §3º, §5º e §6º da CLT, demarcou condições mais favoráveis a esse público quando comparado aos aprendizes que não possuem deficiência. Vejamos:

art. 428. Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação.         

§ 3º O contrato de aprendizagem não poderá ser estipulado por mais de 2 (dois) anos, exceto quando se tratar de aprendiz portador de deficiência.                       

§ 5º A idade máxima prevista no caput deste artigo não se aplica a aprendizes portadores de deficiência.                      

§ 6º Para os fins do contrato de aprendizagem, a comprovação da escolaridade de aprendiz com deficiência deve considerar, sobretudo, as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização.                       

Nesta senda, é importante entende o conceito de pessoa com deficiência inserido no Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015). O texto legal preceitua em seu art. 2º que a pessoa com deficiência é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Por consequência, recomenda-se a comprovação da deficiência por todo e qualquer meio possível, visando garantir o direito de acesso ao mundo do trabalho a pessoa com deficiência, mas sempre pautando por regras de humanidade que não a exponham ou reduzam a sua dignidade.

Em suma, os aprendizes com deficiência podem assinar contratos de trabalho com mais de dois anos de duração. Entretanto, o caput do art. 428 da CLT dispõe que o contrato de aprendizagem possui tempo determinado. Inclusive esse é o entendimento do art. 7º, §1º, IN 146/2016 do Ministério do Trabalho, que determina pela existência de fundamentação a ampliação do período superior a dois anos de contrato de aprendizagem com base na deficiência do aprendiz.

Assim, mesmo que a lei não condicione um prazo máximo de duração do contrato de aprendizagem, entende-se que ele não pode vigorar por prazo indeterminado por desnaturar o próprio instituto. Ressalta-se que o objetivo principal do contrato de aprendizagem é “ministrar instrução geral compatível com o ofício escolhido, beneficiando-se de seu resultado o trabalhador” (Mauad Filho, 2005).

Além disso, não existe idade máxima prevista para aprendizes com deficiência o que permite a existência/manutenção de contratos com adultos em idade maior que 24 anos. A retirada do teto etário permitiu que as pessoas com deficiência tenham mais oportunidades de se encontrarem em ofícios durante a vida.

Ademais, a flexibilização da comprovação da escolaridade aos aprendizes com deficiência reduz as barreiras que levam ao capacitismo, pois foca no aprender e fazer do ser humano e não em sua deficiência. Quando o empregador prioriza as habilidades e competências relacionadas ao mundo do trabalho e não o grau escolar formal permite a competição em igualdade de oportunidades do aprendiz com deficiência e as demais pessoas, aproximando-se da inclusão de fato (SILVA, LEITÃO E DIAS, 2016).

III – O Benefício de Prestação Continuada (BPC)

A partir do mandamento constitucional disposto no art. 203, III, que garantiu um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência que comprove não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, coube ao legislador infraconstitucional dispor em lei as regras para sua concessão.

Somente com o advento da lei Orgânica da Assistência Social (lei 8.742/1993), foi regulamentado o benefício de prestação continuada por meio dos artigos 20 e 21. A redação original do benefício foi ampliada com as redações dos arts. 20-A, 20 e 21-A, inseridos na LOAS. Desse modo, os artigos contemplam os requisitos de aquisição, suspensão e cancelamento do direito ao BPC.

Basicamente, a concessão do benefício de prestação continuada para a pessoa com deficiência está fulcrada no preenchimento de dois requisitos: a deficiência e insuficiência financeira própria ou família para prover os gastos do candidato.

A requisito deficiência será preenchida nos termos do art. 20, §2º, §6º e §10º, da LOAS, que considera:

art. 20.

§2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2o, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS. 

§10º Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.

O requisito da insuficiência financeira é o mais complexo do binômio destinado a concessão do benefício continuado, sendo inclusive objeto de ADC (ACDI 1232/DF) que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Mesmo após seu julgamento a doutrina especializada e as instâncias inferiores divergem sobre a renda mensal per capita inferior a um quarto de salário mínimo, descrita no art. 20, §3º, I, da LOAS.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) ao incluir o § 11º ao art. 20 da LOAS alargou os elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade para concessão do benefício. Não se resumindo mais ao parâmetro da limitação da renda per capita familiar. O incremento do §11º ao art. 20, da LOAS é extremamente relevante, pois permite a concessão de benefícios a mais cidadãos brasileiros uma vez que garante novas maneira de comprovação da necessidade.

Independente dos debates sobre os limites de miserabilidade para concessão do BPC, a redação do art. 20, §9º, da LOAS, tratou de excluir do cálculo de renda per capita familiar, para fins de concessão e manutenção do BPC, os rendimentos advindos de estágio supervisionado ou contrato de aprendizagem

A lei garantiu que a inserção no mundo do trabalho por meio de estágio e da aprendizagem não afetarão o cômputo da renda familiar. Aliás, o legislador agiu muito bem neste ponto garantindo ao aprendiz com deficiência a inserção ao mundo do trabalho e o incremento de renda necessária à garantia da dignidade da pessoa humana.

Além disso, o legislador por meio do §2º, do art. 21-A, da mesma lei Orgânica da Assistência Social, garantiu a manutenção conjunta do BPC e do salário por um prazo de até dois anos quando a contratação de pessoa deficiente for por contrato de aprendizagem.

Assim, conclui-se que o jovem aprendiz com deficiência poderá cumular por até dois anos o benefício de prestação continuada (BPC) e os rendimentos auferidos por meio do contrato de aprendizagem com seu contratante.

CONCLUSÃO

O artigo tratou de apresentar uma sucinta evolução legislativa do direito da pessoa com deficiência à inserção do mundo do trabalho a partir da Constituição de 1988.

As garantias constitucionais abriram espaço para legislações infraconstitucionais que instrumentalizarem os direitos insculpidos na Carta Magna, como o direito à educação e ao trabalho com dignidade, por meio do contrato de aprendizagem.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) ao adaptar as regras do art. 428, da CLT, à realidade das pessoas com deficiência permitiu que o contrato de aprendizagem se tornasse a porta de entrada das pessoas com deficiência ao mundo do trabalho.

Nesta mesma linha de raciocínio, a lei Orgânica da Assistência Social foi atualizada permitindo que os rendimentos auferidos pelas pessoas com deficiência por meio do contrato de aprendizagem não impactassem a cálculo de concessão do benefício de prestação continuada, bem como permitindo a sua cumulação como meio hábil a manutenção da dignidade da pessoa humana.

Oscar Moreira
Mestre em Educação, pós-graduado em Gestão Pública e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa. Consultor de Políticas Públicas premiado pelo SEBRAE Minas. Palestrante e instrutor de cursos voltados as políticas públicas sociais

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