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Medidas provisórias: Regras novas e recordes de edição

As medidas provisórias foram fartamente empregadas durante o período do coronavírus (covid-19), sob novo regramento, e comprovaram sua utilidade.

14/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O ano de 2020 vai ficar marcado pela crise sanitária global de enfrentamento à pandemia do coronavírus (covid-19). Um período ímpar da história mundial, em que situações extremas exigiram medidas extremas. O Poder Executivo federal publicou nada menos do que 108 medidas provisórias (MP), com fundamento no art. 62 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). As medidas tramitaram sob a égide do ato conjunto 1, de 2020, editado pela Câmara dos Deputados (CD) e pelo Senado Federal (SF). Além disso, alcançou a milésima MP em 2 de agosto de 2020, que tratou da prorrogação até o fim do ano do auxílio emergencial. A MP 1.000/20201 seguiu a numeração introduzida na legislação brasileira desde 2001, pela EC 32 (EC 32/2001), quando passaram a vigorar as regras atuais para esse tipo de instrumento e que foram adaptadas por intermédio do ato mencionado.

O segundo ano com maior número de edição de medidas provisórias foi 2002, quando foram publicadas 822. Nesse contexto de comparação, 2016, foram 56; 2017, 51; 2018, 53; 2019, 48. Para se ter ideia da atuação do executivo, em 2021, em 6 de junho, publicou-se a MP 1.054, que abre crédito extraordinário, somando 28, que não representam nem a metade da quantidade do ano anterior na mesma época. E no momento da edição da MP 1.000/2020 alcançava-se o recorde de 83 medidas.

De fato, desde 13 de março, quando saiu a primeira medida destinada ao combate à covid-19 — a MP 924/2020, que autorizou R$ 5 bilhões em créditos extraordinários — o Palácio do Planalto emitiu uma média próxima a uma MP a cada dois dias úteis. Desde 2001, historicamente, o Poder Executivo assinava uma por semana.

Porém, deve-se considerar as medidas perdidas durante 2020. O prazo de validade não foi atendido e vinte medidas provisórias deixaram de ser analisadas, e uma foi revogada após pressão dos parlamentares. Outras dez MPs que estavam pendentes ao fim de 2019 também caíram, além de duas, nas mesmas condições, que foram revogadas. No total, o Executivo perdeu 33 medidas provisórias em apenas um ano ou visto de outra forma o Congresso Nacional exerceu seu papel de controle legislativo, que se junta ao controle horizontal, este último objeto de estudo em dissertação de minha autoria3.

Acima mencionou-se a "abertura de crédito extraordinário", foram 42 destinadas aos créditos, que são mecanismos retificadores do orçamento, por meio de medida provisória, apenas são aplicáveis aos créditos extraordinários, cujos critérios precisam atender ainda aos definidos no art. 167, § 4º, da CF/88. Todas somaram mais de R$ 600 bilhões, ou seja, um valor expressivo que alcançou quase 10% do PIB e podem ser visualizadas em termos de destinação no painel da Secretaria do Tesouro Nacional (STN)4.

Não há dúvidas de que a situação carecia de providências céleres e urgentes. Criada pelo atual ordenamento jurídico, elas têm fundamento no antigo decreto-legge italiano, em razão da necessidade premente de decisões rápidas durante o período da Segunda Guerra Mundial. Por isso, a Constituição Italiana de 1947 continha provedimento provvisorio, que recebeu o nome de decreto-legge, o instituto foi regulamentado pelo art. 77:

O Governo não pode, sem delegação das Câmaras, expedir decretos com força de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o Governo adote, sob sua responsabilidade, medidas provisórias com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para conversão às Câmaras que, ainda que dissolvidas, são especialmente convocadas e reunidas no prazo de cinco dias. Os decretos perdem a eficácia desde o início se não forem convertidos em lei no prazo de sessenta dias a partir da sua publicação. No entanto, as Câmaras podem regular por lei as relações jurídicas que surjam com base nos decretos não convertidos (Tradução livre).

Da leitura, percebe-se imediatamente a semelhança com o regramento brasileiro, mas se deve lembrar que o sistema adotado na Itália é o parlamentarismo, assim como na França e Alemanha. É preciso destacar a origem da criação: momento crítico de guerra.

Nesse contexto, os pressupostos são semelhantes à época do surgimento, entretanto sofreram as adaptações brasileiras, com críticas sendo feitas e a necessidade de ajustes, os critérios são relevância e urgência, atendidos, em 2020, portanto, pela imposição do estado de calamidade pública vividos em razão da pandemia. As MPs possuem características próprias e são espécies normativas primárias, com fundamento retirado da CF/88.  É uma atividade atípica do Executivo, pois a atividade de legislar cabe precipuamente ao Poder Legislativo, que participa de forma complementar a esse processo legislativo. Quando publicadas já surtem efeitos e disparam o processo legislativo no Parlamento, ao qual cabe a análise dos pressupostos e dos seus termos (denominado duplo efeito - Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 293/1990)5.

O ex-presidente Lula, quando no exercício da Presidência, disse ao presidente do Senado, em 2006, "Se você um dia for presidente da República, vai ver como é bom uma medida provisória". De um lado, exemplifica a potência de um instituto unilateral, fartamente utilizado, e útil nesse período de pandemia. De outro lado, o Parlamento aguarda muitas vezes ávido em busca da oportunidade de apresentar modificações que poderiam levar anos para serem aprovadas ou debatidas, tendo na medida provisória a certeza de que serão consideradas dentro de um cronograma e tendo reais chances de incorporação ao ordenamento jurídico. O emendamento já foi muito discutido com a possibilidade dos relatores e presidentes das Casas rejeitarem matérias estranhas ao texto (conhecidos por "jabutis") mesmo assim foi necessária intervenção do Supremo Tribunal Federal, com revisão jurisprudencial, a fim de impor limites ao poder de emendamento parlamentar (ADI 5.167/2015)6.

Por isso, em outra frase, repetidamente pronunciada no dia a dia da Câmara dos Deputados, asseveram-se técnicos e parlamentares: "a MP você sabe como começa, porém, não como vai terminar". Semelhante ao voo de balão, apesar da experiência do piloto e da equipe de apoio, não é possível dizer exatamente onde será a aterrisagem. E nem sempre cumpre o que diz o livro bíblico de Eclesiastes 7:8, "O fim das coisas é melhor que o seu início [...]".

Depois do marco regulatório promovido pela EC 32, de 2001, o Congresso editou a resolução 1, de 2002. A mudança de maior impacto ocorreu a partir de outra decisão do STF, na ADI 4.029/2012, que obrigou a formação de comissão mista de deputados e senadores, prevista na resolução, mas não colocada em prática. Sem a comissão, a chegada da medida provisória beneficiava os presidentes da CD e SF, pois possuíam a liberdade de escolher qualquer um dos integrantes de cada Casa para relatar o instrumento, verdadeiros, super relatores (poderes hipertróficos). Estabelecia-se, desse modo, uma relação direta Presidentes das Casas - Relator - Medida Provisória - Governo, que foi interrompida pela decisão do STF.

Ainda quanto à ADI 4.029, os ministros do STF declararam a inconstitucionalidade incidental dos artigos 5º, caput, e 6º, parágrafos 1º e 2º, da resolução 1/2002 do Congresso Nacional. Esses dispositivos permitiam a entrada da MP e sua tramitação pelo Congresso apenas com parecer do relator, quando esgotado o prazo para sua apreciação pela comissão mista. No período de pandemia, retornou-se a esse procedimento, por causa da dificuldade de reunir o colegiado, adaptar os sistemas de cada uma das Casas e manter a segurança sanitária.

Retomando a tramitação da MP, ela não é julgada em sessão conjunta, depois da comissão mista, é sempre enviada à CD e depois ao SF. Em 2020, por meio de ato conjunto, o CN adotou processo diferenciado. O tempo para apresentar emendas passou de 6 dias para 2. Dispensou-se a comissão mista, resgatando novamente a figura do super relator, indicado pelos presidentes das Casas.

O Congresso Nacional atuou fortemente na deliberação das MPs, inclusive estabelecendo mais um número marcante. Durante o ano, ocorreu a quarta ocorrência da devolução de uma medida provisória por parte do Presidente do Congresso, desde a promulgação da Constituição de 1988. Trata-se da MP 979/2020 que após devoluçãp foi revogada por outra. Em artigo migalheiro, há valiosas considerações acerca da devolução "O regime constitucional das medidas provisórias em sete observações preambulares"7.

Outra inovação em tempo de pandemia foi a criação de mais um momento possível de emendas no plenário da CD. As MPs sempre iniciaram sua tramitação pela Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo que o ato conjunto reduziu para 2 dias o emendamento, abriu a possibilidade de apresentação delas em Plenário desde que com o apoiamento necessário. Assim, a título de exemplo pode-se consultar a tramitação da MP 996/2020, que instituiu Programa Casa Verde e Amarela, que recebeu 547 emendas nos dois primeiros dias e nove emendas de plenário8. O SF costuma apresentar bem menos alterações, pois se forem feitas terão que ser submetidas à CD e o tempo de vigência da MP pode expirar.

Há um marco regulatório, aprovado na CD e no SF, pendente tão-somente da promulgação. A proposta de emenda à Constituição - PEC 91/20199 foi aprovada em junho de 2019, assim, já se foram vinte quatro meses e ela permanece aguardando a promulgação por parte do Presidente do Senado.

Dentre as mudanças, destaca-se o estabelecimento de cronograma de tramitação: quarenta dias na comissão mista, quarenta dias na Câmara e trinta dias no Senado e dez na Câmara para analisar eventuais emendas advindas do SF. Além disso, os chamados "jabutis" estão expressamente proibidos, conforme texto abaixo:

§ 13. A medida provisória e o projeto de lei de conversão não conterão matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.

Aliás, para não deixar dúvidas, a partir de abril de 2020 aplicaram-se as regras dispostas no ato conjunto 1, de 202010, as quais permanecem até a confecção desse texto em junho de 2021. O procedimento inclusive obteve aval do STF, em decisão liminar, no âmbito das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 661 e 66311. Assim, em resposta à altura da situação vivida, o Congresso por meio da CD e do SF publicaram o ato, que estabeleceu:

Vale observar que sem a formação da comissão mista, fica suprimida importante fase de tramitação das medidas provisórias, onde se promoviam debates, ouviam-se representantes da sociedade e poderes de decisão estavam mais diluídos, inclusive entre as duas Casas. Quanto às audiências, com retorno das comissões permanentes, esses colegiados têm buscado suprir essa ausência de discussão ao realizar em seu âmbito os debates. Quando se diz poder, é que lá na comissão mista da MP alternavam-se presidência e relatoria entre CD e SF, mas nesse período fortificou-se a atuação dos deputados. Portanto, o colegiado exigido pelo STF não foi mero capricho, mas a necessidade de tempo maior de discussão e acomodação dos interesses e assessoramento de equipes técnicas.

Portanto, é compreensível o número elevado de medidas provisórias existentes durante o enfrentamento da pandemia, muitas delas voltadas especificamente para suprir as ações do governo com recursos não constantes do orçamento. O Congresso apresentou um novo regramento consentâneo e o aplicou mesmo com todas as dificuldades impostas. Há rico espaço para pesquisa e debate sobre o uso das medidas provisórias com análises horizontais, comparando períodos, legislaturas e anos, porém se verifica a oportunidade de aprofundamento de forma vertical nesses anos tão marcantes que não esqueceremos tão cedo.

Diante do exposto, as MPs foram introduzidas em nosso ordenamento, debatidas, pesquisadas, criticadas, regras alteradas, intervenções judiciais e legislativas foram feitas, mas o fato mesmo é que elas demostraram-se instrumentos essenciais no combate à pandemia. Cabe ao Parlamento conciliar as regras excepcionais utilizadas nesse período com as da PEC 91/2019 portadoras de certa desconfiança, talvez o caminho seja alteração da resolução 1/2002 tendo como premissa a não concentração de poder em uma autoridade ou Casa, ao dividi-lo aumenta-se os controles mútuos e recíprocos, favorecendo o aperfeiçoamento do processo legislativo das medidas provisórias.

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1 Brasil. MP 1.000, de 2 de setembro de 2020. Acesso em: 10 jun. 2021.
2 Brasil. Senado Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
3 SILVA, Ronaldo Quintanilha da. Accountability Horizontal: A fiscalização parlamentar exercida pela Câmara dos Deputados na 55ª Legislatura. 2020. Dissertação (Mestrado em Poder Legislativo) — Câmara dos Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Brasília, 2020. Acesso em: 10 jun. 2021.
4 Brasil. Ministério da Economia. Acesso em: 10 jun. 2021.
5 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
6 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
7 Clève, Clèmerson Merlin. O regime constitucional das medidas provisórias em sete observações preambularesAcesso em: 10 jun. 2021.
8 Brasil. Câmara dos Deputados. Acesso em: 10 jun. 2021.
9 Brasil. Senado Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
10
 Brasil. Senado Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
11 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Acesso em: 10 jun. 2021.
12 Brasil. Medida Provisória 981, de 12 de junho de 2020. Acesso em: 10 jun. 2021.

Ronaldo Quintanilha da Silva
Mestre em Poder Legislativo. Analista da Câmara dos Deputados.

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