A lei 14.181/21, também conhecida como “lei do superendividamento”, entrou em vigor em 2/7/21 e trouxe diversas alterações no CDC. Dentre tais alterações, incluiu-se no art. 4º do CDC o inciso X, segundo o qual um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo passou a ser a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor”.
A inovação legislativa chega em boa hora, pois, segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor1, em março deste ano: cerca de 67,3% das famílias brasileiras se encontravam endividadas; 24,4% tinham dívidas ou contas em atraso; e 10,5% não terão condição alguma de quitar seus débitos. Estes percentuais representam o quarto aumento mensal consecutivo nos índices avaliados, de modo que em março de 2021 o endividamento no Brasil atingiu a segunda maior proporção histórica, ficando apenas abaixo do endividamento recorde de 67,5%, registrado em agosto de 20202.
Se levarmos em consideração que a população3 brasileira é de, aproximadamente, 213.327.000 pessoas, os dados sobre o endividamento são ainda mais alarmantes. O quadro de endividamento certamente foi agravado pelos efeitos deletérios causados pela pandemia de COVID-19, que resultou em diversos colapsos do sistema de saúde pública e tombo histórico4 da economia brasileira.
Pois bem. De acordo a lei 14.181/21, o fenômeno do superendividamento deve ser compreendido como a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação” (CDC, art. 54-A, § 1º). O mínimo existencial é um conceito derivado do princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III), que consiste na menor renda mensal apta a proporcionar ao ser humano uma existência digna, isto é, que viabilize o custeio de necessidades básicas da vida, tais como alimentação, saúde, moradia, educação e vestuário.
Portanto, com a edição da nova lei, os compromissos financeiros assumidos em decorrência de relações de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada não poderão comprometer a existência digna do consumidor. Todavia, o conceito de superendividamento não se aplica ao consumidor cujas dívidas: (i) tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé; (ii) sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente (com a intenção de não pagar); ou (iii) que decorram da aquisição ou contratação de produtos/serviços de luxo de alto valor, como p. ex., carros esportivos (CDC, art. 54-A, § 3º).
O consumidor que se encontrar em estado de superendividamento poderá acionar o Poder Judiciário para instauração de “processo de repactuação de dívidas”. Este processo será iniciado com audiência conciliatória, que deverá contar com a presença de todos os credores das dívidas que originaram o superendividamento (nos moldes do art. 54-A, do CDC). Na audiência, o consumidor deverá apresentar proposta de plano de pagamento, com prazo máximo de cinco anos, resguardando-se sempre o mínimo existencial, bem como as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
No plano de pagamento constarão: (i) referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; (ii) data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes; (iii) condicionamento dos efeitos do plano à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, como, p. ex., aquisição de novas dívidas; e (iv) medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras medidas destinadas a facilitar o pagamento do débito (CDC, art. 104-A, § 4º).
Pontue-se que o pedido de instauração de processo de repactuação de dívidas não implicará em declaração e/ou reconhecimento de insolvência civil, hipótese em que se inviabilizaria de plano o ajuizamento do “processo de repactuação de dívidas” perante os Juizados Especiais Cíveis, em razão da vedação prevista no art. 8º da lei 8.099/95. Registre-se, no entanto, que o processo somente poderá ser repetido pelo consumidor após o término do prazo de dois anos, contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado em juízo, sem prejuízo de eventuais repactuações supervenientes (CDC. Art. 104-A, § 5º), coibindo-se abusos.
As dívidas decorrentes de contratos de crédito com garantia real, financiamento imobiliário e crédito rural não poderão integrar o processo de repactuação, assim como as dívidas contraídas dolosamente (sem que o tomador do crédito tivesse a intenção de saldar a dívida).
O comparecimento dos credores (ou de procuradores com poderes especiais e plenos para transigir) na audiência de repactuação é obrigatório. O credor que se ausentar e também não enviar procurador com poderes especiais em seu lugar, será penalizado com a suspensão da exigibilidade de seu crédito, implicando também na interrupção dos encargos de mora. Ademais, sujeitar-se-á compulsoriamente ao plano de pagamento apresentado pelo autor, caso o montante devido ao credor ausente seja certo e conhecido pelo consumidor. Por fim, o credor ausente somente receberá seu crédito após o pagamento dos débitos devidos aos credores presentes à audiência de conciliatória (CDC, art. 104-A, § 2º).
A previsão legal é salutar, pois evitará a desídia dos credores que – não empolgados pela perspectiva de repactuação da dívida – poderiam simplesmente deixar de comparecer à audiência. Além disso, o credor que se ausentar injustificadamente também poderá ser apenado com multa de até 2% sobre o valor da causa ou do proveito econômico pretendido pelo autor, nos termos do art. 334, § 8º, do Código de Processo Civil (“CPC”).
Caso o consumidor consiga conciliação com qualquer um dos credores (ou com todos), o juiz sentenciará o processo, homologando-se o acordo obtido entre as partes. A sentença homologatória deverá descrever o plano de pagamento da dívida, sendo munida de eficácia de título executivo e força de coisa julgada material (CDC, art. 104-A, § 3º).
Frustrada – total ou parcialmente – a audiência de conciliação, isto é, caso um ou mais credores não concordem com o plano de pagamento apresentado pelo consumidor, o juiz poderá instaurar – a pedido deste último – o chamado “processo por superendividamento” (CDC, art. 104-B), que terá por finalidade a revisão e integração dos contratos, bem como a repactuação das dívidas remanescentes (não contempladas pelo plano de pagamento eventualmente homologado junto a um ou mais credores durante a audiência de conciliação).
A repactuação será levada a cabo mediante plano judicial de caráter compulsório. Em razão desta compulsoriedade, todos os credores que não tenham se acordado com o consumidor durante a audiência conciliatória deverão ser citados, nos termos dos arts. 238 e seguintes do CPC.
Após citados, os credores terão prazo de 15 dias úteis para apresentar documentos e as razões pelas quais não concordaram com o plano voluntário apresentado pelo consumidor e também para explicar o porquê não manifestaram interesse em renegociar a dívida durante a audiência de conciliação. Reitere-se que os credores ausentes da audiência conciliatória serão compulsoriamente submetidos ao plano apresentado pelo consumidor, nos termos do art. 104-A, § 2º, do CDC.
Devido à complexidade da matéria (recálculo de dívidas, juros compostos, amortizações, etc.) e desde que isso não onere as partes, o juiz poderá designar administrador judicial, o qual, no prazo de 30 dias úteis contados a partir do cumprimento das diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento judicial que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.
A lei não deixa nada claro como o administrador será escolhido e, muito menos, como será remunerado. Todavia, o texto legal consigna expressamente que o administrador não poderá gerar ônus (econômico) às partes. Assim, a nosso ver, os honorários do profissional não poderão ser impostos aos credores e, muito menos, ao consumidor superendividado.
Na ausência de comando legal específico, ficará a critério do magistrado indicar, ou não, um administrador para auxiliar na elaboração do plano de pagamento judicial, a depender da complexidade do caso concreto. Caso haja necessidade do profissional técnico, entendemos que sua remuneração poderá ser custeada pelo Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos5, ao menos nos casos de competência do TJ/SP.
Outrossim, a complexidade da causa, aliada à necessidade de designação de administrador judicial, possivelmente representará entrave à propositura do “processo por superendividamento” perante os Juizados Especiais Cíveis, que são regidos pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, conforme consagrado no art. 2º da lei 9.099/95.
De outra banda, o plano judicial compulsório garantirá aos credores – no mínimo – o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço. Como não há indicação expressa, cada tribunal poderá aplicar o índice que entender mais adequado (p. ex., IPCA-E, INCC, IGP-M, etc.). A primeira parcela do plano judicial será devida no prazo máximo de 180 dias, contados da homologação judicial, e o restante do saldo devedor deverá ser quitado em parcelas mensais, sucessivas e de igual valor.
No processo por superendividamento o juiz e o administrador judicial, por extensão, poderão levar em consideração documentos e informações apresentados durante a audiência conciliatória para auxiliar na elaboração do plano de pagamento judicial.
Após a quitação das parcelas previstas no plano judicial e no plano consensual (eventualmente acordado com alguns dos credores durante a fase conciliatória), considerar-se-á a dívida totalmente extinta.
Apesar dos pontos de obscuridade, que poderão ser futuramente supridos pela atividade jurisdicional e/ou por legislação superveniente, concluímos que a Lei nº 14.181/2021 implementou importante ferramenta no ordenamento jurídico pátrio, que certamente viabilizará a saída de milhares de consumidores do estado de inadimplência e de superendividamento. Por fim, a estabilização da vida financeira dos brasileiros e a concessão de crédito responsável também fomentarão a atividade econômica em um novo ciclo autossustentável que, por um lado, permitirá aos credores obter retorno adequado sobre o capital mutuado e, por outro lado, garantirá aos consumidores a manutenção de uma vida digna.
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1- Clique aqui. Acesso em 13/07/2021.
2- Clique aqui. Acesso em 13/07/2021.
3- Clique aqui. Acesso em 13/07/2021.
4- Clique aqui. Acesso em 13/07/2021.
5- O Fundo Especial de Despesa de Reparação de Interesses Difusos Lesados, criado nos termos da Lei nº 6.536, de 13/11/1989, passou a denominar-se Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos (FID) e a vincular-se à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania por meio da Lei Estadual nº 13.555 de 09/06/2009. Seu objetivo é gerir os recursos destinados à reparação dos danos ao meio ambiente, aos bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ao consumidor, ao contribuinte, às pessoas com deficiência, ao idoso, à saúde pública, à habitação e urbanismo e à cidadania, bem como a qualquer outro interesse difuso ou coletivo no território do Estado. Para maiores informações, acessar: Clique aqui. Acesso em 12/07/2021.