Migalhas de Peso

Como proceder quando o empregado se recusa a tomar a vacina contra a covid-19?

O interesse coletivo, portanto, deve prevalecer sobre o individual, sendo que a recusa injustificada do empregado à imunização pode ser entendida como ato de indisciplina e insubordinação.

13/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Com o avanço da campanha de vacinação contra a covid-19 e a ampliação do grupo populacional abrangido pela vacina, tem surgido constantemente entre os empregadores a dúvida sobre o que fazer quando um empregado se recusa a proceder à sua imunização e, especialmente, se este colaborador pode vir a ser despedido por justa causa por esta razão.

Nesta linha, decisão recente, proferida pela 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul/SP, confirmou a justa causa aplicada a uma auxiliar de limpeza de um hospital que se recusou, por duas vezes e de forma não justificada, a tomar a vacina contra a covid-191. A decisão demonstra a possível tendência do Judiciário sobre o tema, ainda que não haja entendimento já consolidado, revelando que o interesse coletivo deve se sobrepor ao individual também nestes casos.

Sobre este aspecto, ressalta-se que, em dezembro/2020, o Supremo Tribunal Federal (no julgamento das ADIs 6.586 e 6.5872 e do ARE 1.267.8793) decidiu pela constitucionalidade da vacinação compulsória, com a possibilidade de os entes públicos adotarem medidas restritivas previstas em lei, em caso de negativa do indivíduo à imunização (como, por exemplo, aplicação de multas, restrição de acesso a determinados ambientes e ao exercício de certas atividades)4. Não se trata, todavia, de vacinação forçada (realizada sem o consentimento do cidadão), o que foi bem distinguido pelo STF.

Para o Supremo, não são legítimas as escolhas individuais baseadas em crenças ou convicções pessoais, filosóficas, religiosas ou morais que atentem contra os direitos da sociedade à saúde e à vida. Assim, desde que a vacina esteja registrada perante o órgão de vigilância sanitária e tenha sido incluída no Plano Nacional de Imunização (PNI) ou tenha sua obrigatoriedade prevista em lei ou, ainda, sua aplicação determinada pela União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico, é admitida a sua compulsoriedade5.

No caso da vacina contra a covid-19, a possibilidade de obrigatoriedade é prevista na lei 13.979/2020, que elenca, dentre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do Coronavírus, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (artigo 3º, III, "e").

No campo do direito do trabalho, a redução dos riscos inerentes à prestação de serviços dos empregados, por meio de normas de saúde, higiene e segurança é direito constitucionalmente previsto ao trabalhador, cabendo ao empregador zelar por um ambiente de trabalho seguro e saudável a seus empregados (artigos 7º, XXII, da CF, 157 da CLT, 2º da lei 8.080/90 e 19 da lei 8.213/91 e norma regulamentadora 1). Com efeito, a CLT dedica um capítulo inteiro à segurança e medicina do trabalho e, de acordo com suas disposições, é do empregador o dever de cumprir e se fazerem cumprir as normas de saúde, higiene e segurança de seus trabalhadores – obrigação "também denominada obrigação de custódia, dever de segurança ou cláusula de incolumidade"6.

Assim, a priori, considerando este dever de custódia do empregador, a este incumbe a decisão de tornar a vacinação obrigatória ou não aos seus colaboradores, no exercício do seu poder diretivo7 – até mesmo porque o trabalhador não imunizado poderá colocar a saúde de todos os demais trabalhadores em risco, sendo um dever do empregador a proteção de seus empregados. Se não observar este dever de segurança, o empregador, inclusive, poderá vir a ser responsabilizado a reparar os danos causados aos eventuais trabalhadores que vierem a ser contagiados pelo coronavírus nas suas dependências8.

Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o artigo 29 da MP 927/2020, que dispunha que "os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal". Entendeu o STF que "o art. 29 da MP 927/2020, ao excluir, como regra, a contaminação pelo coronavírus da lista de doenças ocupacionais, transferindo o ônus da comprovação ao empregado, prevê hipótese que vai de encontro ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à responsabilidade objetiva do empregador em alguns casos".

Destarte, considerando-se tanto a possibilidade de reconhecimento da covid-19 como doença ocupacional, quanto a responsabilidade objetiva do empregador "em alguns casos" mencionada pelo Supremo, torna-se ainda mais claro o direito-dever do empregador de implementar todas as medidas de saúde e segurança relacionadas ao Coronavírus, inclusive, no que diz respeito à obrigatoriedade da imunização de seus empregados.

Na outra mão, cabe aos empregados observar as normas de segurança e medicina do trabalho e, inclusive, constitui ato faltoso do trabalhador se recusar a segui-las (artigo 158 da CLT):

Ou seja, a própria Consolidação das Leis do Trabalho já reconhece a hipótese da justa causa, em caso de inobservância das normas de segurança e medicina do trabalho, o que inclui a disseminação do novo coronavírus, reconhecidamente um agente de contaminação laboral pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que se trate de concausa, em razão do artigo 21, inciso I, da lei 8.213/19919.

Neste mesmo sentido, a NR-1 dispõe que cabe ao trabalhador "cumprir as disposições legais e regulamentares sobre segurança e saúde no trabalho, inclusive as ordens de serviço expedidas pelo empregador", constituindo "ato faltoso a recusa injustificada do empregado ao cumprimento do disposto nas alíneas do subitem anterior" (itens 1.4.2, "a" e 1.4.2.1).

Reconhecendo-se a vacinação contra a covid-19 como uma medida de proteção individual e, também, coletiva dos trabalhadores (pois o empregado contaminado poderá contaminar os demais), defende-se a possibilidade de aplicar, por analogia, o disposto no art. 158, parágrafo único, alíneas "a" e "b", da CLT, sendo extensível também o disposto no item 1.4.2.1 da NR-1. Assim, "como é dever do empregador cuidar da saúde dos seus empregados, pode despedir por justa causa aquele que se recusa a adotar uma medida de proteção ao mesmo tempo individual e coletiva, que é a vacina"10. A dispensa do empregado que se recusa a se imunizar contra o Coronavírus, portanto, estaria no escopo do poder fiscalizatório11 e disciplinar do empregador, pois constituiria ato faltoso do trabalhador, passível de sanções.

O próprio Ministério Público do Trabalho lançou um Guia Técnico Interno sobre Vacinação da Covid-19, destacando que o ato de se vacinar, em situações de pandemia como a que estamos vivenciando, é um direito-dever do cidadão, assegurado "tanto por meio da eficácia vertical (exigindo-se do Poder Público), quanto por meio da eficácia horizontal (exigindo-se das empresas a sua concretização)"12. Ainda que não possua força normativa, o guia prevê que, ao empregado que se recusar a tomar a vacina, podem ser aplicadas punições – e, em último caso, até mesmo a dispensa por justa causa –, destacando novamente que o interesse coletivo deve se sobrepor ao individual (artigo 8º da CLT).

Entretanto, algumas questões têm de ser observadas pelos empregadores antes que venha a se proceder à denúncia cheia do contrato de trabalho do empregado, a fim de se observar o direito à informação e a proporcionalidade das penas. Com efeito, o empregador deve:

1. Fornecer aos empregados ampla informação sobre o processo de vacinação e a importância da imunização do colaborador para sua proteção e de seus colegas, expondo os benefícios da imunização, promovendo treinamentos e campanhas internas de orientação e conscientização, afixando os cartazes de recomendação do governo nos murais da empresa, distribuindo panfletos explicativos, de forma a não deixar dúvidas de que a vacinação é considerada, também para aquele empregador específico, uma medida obrigatória de proteção individual e coletiva dos trabalhadores;

2. Estabelecer de forma clara quais serão as consequências jurídicas de uma recusa injustificada do trabalhador em se vacinar;

3. Conversar com o empregado que se recusa à imunização, inclusive fornecendo atendimento médico ou psicológico, se necessário, para prestar esclarecimentos sobre a eficácia e a segurança da vacina, antes de aplicar as medidas disciplinares cabíveis;

4. Permanecendo a recusa injustificada, o empregador poderá afastar o empregado (ao menos das atividades presenciais) e aplicar-lhe as penalidades cabíveis, observando-se a proporcionalidade das sanções. Pode ser inicialmente aplicada uma advertência ao empregado, definindo um prazo para que este apresente o comprovante de vacinação. Caso assim não proceda, pode-se aplicar uma suspensão ao trabalhador e, somente em último caso, proceda-se ao seu desligamento por justa causa.

A validade da justa causa aplicada nestes casos ainda está sendo analisada pelos Tribunais do Trabalho, em jurisprudência a ser firmada. Entretanto, entende-se defensável a aplicação da medida, tendo em vista o dever do empregador de zelar pela saúde e segurança dos seus empregados – e o dever individual de cada cidadão no auxílio ao combate da pandemia. A vacinação é medida de proteção individual, mas também coletiva, sendo questão de saúde pública para controle epidemiológico. O interesse coletivo, portanto, deve prevalecer sobre o individual, sendo que a recusa injustificada do empregado à imunização pode ser entendida como ato de indisciplina e insubordinação (hipótese prevista no art. 482, "h", da CLT). Não se descarta, entretanto, eventual risco de reversão da justa causa13 e de pagamento de indenização por danos morais ao trabalhador, por dispensa discriminatória, como defende parte da doutrina.

Logicamente, estas sanções não se aplicam ao trabalhador em teletrabalho, pois o compelir a tomar a vacina, sem que sua não imunização implique risco para os demais trabalhadores, foge aos limites do poder diretivo do empregador. Da mesma maneira, não são aplicáveis aos colaboradores que possuem justificativa médica para a recusa. Neste último caso, a empresa terá de buscar uma outra alternativa para zelar pelo ambiente seguro e saudável de seus empregados, alterando, se possível, o regime de trabalho do colaborador que não puder ser imunizado para o teletrabalho.

----------

1 O número do processo foi omitido nos veículos de comunicação para preservar a imagem da trabalhadora.
2 Ações diretas de inconstitucionalidade que tratam sobre a vacinação contra a covid-19.
3 Recurso extraordinário com agravo, no qual se discute o direito de recusa à vacinação (em geral) por convicções filosóficas ou religiosas.
4 Tese fixada nas ADIs:
"(i) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
(ii) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência".
5 Conforme tese de repercussão geral fixada no ARE 1267879.
6 CAIRO JÚNIOR, José. Obrigatoriedade da vacina contra o COVID-19 na relação de emprego, Direito do Trabalho Digital, 4 jan. 2021.
7 SILVA, André Vicente Seifert da. A vacinação e o ambiente laboral, SIMMMEB, 22 jan. 2021.
8 LEITE. Jorge Batalha. A COVID-19, o empregador e o empregado. CONJUR, 25 jan. 2021.
9 ZWICHER, Igor de Oliveira. Vacinação compulsória e o Direito do Trabalho, CONJUR, 3 fev. 2021.
10 CAIRO JÚNIOR, José. Obrigatoriedade da vacina contra o COVID-19 na relação de emprego, Direito do Trabalho Digital, 04 jan. 2021.
11 LEITE. Jorge Batalha. A COVID-19, o empregador e o empregado. CONJUR, 25 jan. 2021.
12 Disponível aqui.

13 Parte da doutrina entende não ser aplicável a denúncia cheia do contrato de trabalho nestes casos, a exemplo de Marcelo Mascaro Nascimento (em "A empresa pode demitir o empregado que se recusar a tomar a vacina contra COVID-19?" EXAME, 23 dez. 2020. Disponível aqui.)

Ana Carolina Petrucci
Sócia trabalhista do Feijó Lopes Advogados. Diretora da Associação dos Advogados Trabalhistas de Empresas no Rio Grande do Sul (SATERGS). Mestre em Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, e especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

O futuro dos contratos: A tecnologia blockchain e o potencial dos smart contracts no Brasil

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024