Ora, uma vez que o art. 117, X, da lei 8.112 de 1990, objetiva proibir a participação na gerência ou administração de sociedade privada, parece razoável considerar que não é vedada a mera constituição de EIRELI por servidor público, nem tampouco configura ato capaz de suscitar eventual responsabilização. Esta avaliação, contudo, perpassa a análise sobre os tipos de EIRELI, a interpretação dada ao art. pela CGU e o objetivo da citada proibição.
Dentre as regras de natureza proibitiva destinadas aos servidores públicos contidas no art. 117, da lei 8.112/90, a vedação ao exercício do comércio — exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário — bem como à participação na gerência ou administração de sociedade privada, assume especial relevância, considerando tratar-se de regra limitadora do interesse individual do servidor, em ponderação com as expectativas de interesse público.
No cenário do advento da Empresa Individual de Sociedade Limitada — EIRELI, paira uma legítima dúvida: a proibição contida na lei 8.112/90 seria capaz de alcançar as hipóteses de constituição de uma EIRELI por servidor público?
O questionamento ora ventilado repousa sobre exaustivas discussões de cunho doutrinário, que deram origem à concepção de que a EIRELI não seria sociedade, mas "um novo ente jurídico personificado". Indo além, entende-se que o conceito não se amoldaria nem mesmo ao de uma sociedade unipessoal, nos termos do enunciado 3 da I Jornada de Direito Comercial, sendo um novo ente, "distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária".
Nessa linha de intelecção, a doutrina majoritária aponta que a opção por se incluir no Código Civil a previsão da empresa individual de responsabilidade limitada foi motivada após inúmeras tentativas de elaborar um modelo em que a responsabilidade assumida pelo empresário individual fosse mitigada, de modo a fomentar a atividade empresarial e, por via de consequência, a economia do país.
Ora, uma vez que o art. 117, X, da lei 8.112 de 1990, objetiva proibir a participação na gerência ou administração de sociedade privada, parece razoável considerar que não é vedada a mera constituição de EIRELI por servidor público, nem tampouco configura ato capaz de suscitar eventual responsabilização.
É que a proibição de participação de gerência ou administração de sociedade privada tem o fim de amparar o funcionamento adequado do serviço público, de forma a garantir que a prestação de serviços será conformada de modo integral e com a devida dedicação. Foi nesse sentido que a Controladoria-Geral da União fixou o entendimento de que o impedimento acerca do qual versa o inciso X do art. 117 da lei 8.112 tem o fito de evitar conflitos entre os interesses privados e públicos:
A proibição constante no artigo 117, inciso X, da lei 8.112/1990, a qual se refere a cartilha, tem como propósito garantir o regular e normal funcionamento do serviço público, de forma a assegurar a obrigação do servidor de prestação integral de sua jornada de trabalho, bem como de dedicação ao cargo, ou seja, da real aplicação de sua força produtiva na execução de suas atividades administrativas funcionais.
Além disso, o Manual de Processo Administrativo Disciplinar, elaborado pela Controladoria-Geral da União, destacou que a leitura do dispositivo tem o fim de coibir a prática de atividades de gestão ou administração de empresas, sendo necessário a comprovação de tal fato. Isto é: não basta que conste, no contrato social ou no ato de registro, que o servidor público ocupa o cargo de gestão ou administração; estes atos devem ser reiterados e indiscutivelmente constatados.
É possível, ainda, constituir EIRELI de natureza empresarial ou simples, caracterização esta submetida ao art. 966 do Código Civil. Dando tratos à bola, a EIRELI simples - de propósito específico e desconectado da atividade de empresa - por entendimento do MPDG o MPDG, não configura ato de gestão ou administração de sociedade. Tal regulamentação, contudo, não afasta a proibição de que o servidor público atue como administrador ou gerente de empresa.
Nesse ponto, uma alternativa pode ser a nomeação de terceira pessoa para que ocupe tal posição, desde que seja pessoa natural e não jurídica, diante da permissão derivada do §6º do art. 980-A, do Código Civil. De acordo com o citado dispositivo, serão aplicadas à EIRELI, no que couber, as mesmas regras previstas para a sociedade limitada.
O que se entende é que a flexibilização das regras a respeito da constituição de EIRELI por servidor público federal deve observar não só a verificação de atos de comércio, mas, também, a efetiva administração ou gerenciamento da empresa para que indique eventual responsabilização disciplinar.
A conclusão, portanto, é a de que a proibição legal se destina àquelas sociedades constituídas com propósito de promover atividades empresariais. Em se tratando de EIRELI constituída com o objetivo de promover atividades não-empresárias, não há tal vedação.
Frise-se que, no que importa às atividades de natureza empresarial, estas são as que obedecem a uma organização econômica para produção de circulação de bens ou serviços, na literalidade do já citado art. 966 do Código Civil. Lado outro, as profissões intelectuais, "de natureza científica, literária ou artística" não são consideradas típicas de empresário.
É dizer que a EIRELI constituída como forma de receber os rendimentos de atividade intelectual - mesmo que com apoio de outros profissionais - isto é, a EIRELI simples, não gera responsabilização ao servidor público. Ressalvada, todavia, a hipótese em que o exercício da profissão intelectual constitua um elemento da empresa, circunstância a ser avaliada no caso concreto.
De toda sorte, por se tratar de norma restritiva que tem importantes impactos na vida particular dos servidores públicos - tendo como consequência até mesmo a aplicação de pena expulsiva - as hipóteses de restrição devem observar o que fora expressamente atribuído em lei, vedada a interpretação extensiva, buscando-se impedir circunstâncias de incompatibilidade de horários e atividades que prejudiquem a prestação adequada do serviço público.
----------
Lei 12.441/2011.
Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Enunciado 3, da I Jornada de Direito Comercial.
Nota técnica 2386/2020/CGUNE/CRG.
Manual de Processo Administrativo Disciplinar da CGU da lei 8.112/1990.
Portaria 5, de 15.6.2018 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
Instrução normativa 38/2017 (DREI).
Manual de Registro da EIRELI.
Enunciado 9 da CGU.
Ramos, André Luiz Santa Cruz. - Direito Empresarial/ André Luiz Santa Cruz Ramos. – 7. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
Tomazette, Marlon - Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1 / Marlon Tomazette. – 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.