Era uma vez o decreto-lei em um tempo já distante. Ele podia ser promulgado pelo presidente da República com força de lei ordinária e tinha vigência até a sua eventual revogação. Era uma excrescência do ponto de vista da pureza legislativa, pensando-se na divisão tripartite dos poderes em uma democracia. Afinal de contas, tratava-se de atribuir ao chefe do Governo Federal o direito de promulgar leis, o que seria privativo do Poder Legislativo. Ao primeiro, portando, caberia tão somente a incumbência de regulamentar as leis oriundas daquele. Bem, os decretos-leis se multiplicaram, uns bons, outros ruins, ao lado das leis oriundas das nossas casas legislativas, e assim seguia a nossa vida na Terra Brasilis.
Durante a elaboração da Constituição de 1988 surgiu a ideia de se extinguir o tal do decreto-lei, deixando no seu lugar a possibilidade de o presidente da República editar outro tipo de normas, que tomou o nome de medida provisória, o qual apresentava três fundamentos: (i) ter validade limitada no tempo; (ii) ser relativa a interesse relevante; e (iii) revelar-se como medida urgente, que não poderia aguardar o trâmite demorado de uma lei ordinária no Congresso. Este teria a prerrogativa de rejeitá-la, aprová-la in totum, ou emendá-la de acordo com sua avaliação, para o fim de ser depois reencaminhada ao Presidente que deveria promulgar a lei em que tivesse se convertida. Mas a novela poderia ter prosseguimento por meio de vetos a cargo daquele, os quais seriam objeto de apreciação pelo Legislativo.
E nunca se esqueça que as MPs produzem efeitos, que serão mantidos, extintos ou modificados, podendo ter a sua validade efetiva ter-se espraiado por meros sessenta dias ou o dobro, com efeitos jurídicos consolidados. Ou seja, segurança e certeza quanto ao direito que dela é objeto são problema dos pobres destinatários e dos juízes ou árbitros que terão que resolver pendências futuras.
Foi então que o decreto-lei suscitou saudades, com ou sem razão.
Ora, recentemente encaminhada a MP 1.040/2021 pelo pesidente da República ao Congresso, como tantas outras, não se verifica o preenchimento dos pressupostos de relevância e de urgência, que devem ser tomados dentro de um conjunto inseparável. Dessa forma não podem prosperar normas desse tipo que sejam relevantes, mas não tenham urgência, bem com as urgentes que não tenham relevância. E quando examinamos o teor da MP sob comentário, vemos claramente que tais fundamentos estão ausentes. E sobre esses aspectos, observe-se que o seu relator na Câmara, ao tratar do mérito de tal MP, expressa-se no sentido de que, "quanto ao mérito, consideramos conveniente e oportuna a matéria".
Pelo que eu aprendi da língua portuguesa, entre outras fontes, com a minha saudosa professora Lucy Musa Julião, do famoso Instituto de Educação Otoniel Mota de Ribeirão Preto, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou seja, conveniente e oportuno não coincide com relevante e urgente. E essa circunstância pode ser vista de maneira indubitável quando se faz o exame da tal MP, desde a sua origem na presidência da República, até o seu remendo feito no âmbito da Câmara, objeto dos inoportunos jabutis que se tornaram uma prática inafastável no nosso vergonhoso processo legislativo. E esses aspectos serão vistos por outros artigos que os membros do GIDE estão preparando, servindo o atual como um trailer desse filme de terror jurídico em que a referida MP se transformou. Passemos a examiná-la esquematicamente e de forma preparatória.
Primeiro, ela cuida de assuntos diversos, a pretexto da facilitação para a abertura de empresas; da proteção de acionistas minoritários; da criação de um Sistema Integrado de Recuperação de Ativos; da profissão de tradutor e intérprete público; da obtenção de eletricidade, da desburocratização societária; e de atos processuais; e da prescrição intercorrente (ufa!). Na verdade, cuida-se de uma sopa indigesta, feita com legumes e outros ingredientes que não combinam muito bem entre si, com o alegado pretexto de matar uma fome ingente, sem a qual os seus destinatários não poderiam continuar vivendo nem sequer alguns dias mais.
Vamos a alguns destaques, que absolutamente não esgotam a crítica, sem no momento discutir em profundidade e extensão o seu mérito (que pode ser, na verdade, demérito).
Um dos ataques dessa MP foi contra a lei 6.404/1976, que cuida das sociedades anônimas, nela tendo inserido diversas modificações pela via da nova redação dada a alguns dos seus dispositivos, tanto para a companhia fechada, quanto a aberta. A partir da tutela do voto plural, vários institutos da LSA foram atingidos. Observe-se que esse tipo de voto vem sendo discutido pela doutrina estrangeira e nacional desde muito tempo, notando-se diversas formas de sua utilização no direito comparado e observando-se que não há unanimidade do pensamento jurídico a seu respeito entre nós. Ora, parece que o legislador solitário, ao qual depois se agregaram outros pais, entendeu que tudo está resolvido nesse campo e que era hora improrrogável de baixar o martelo e dar o assunto por encerrado. Como já foi possível notar, chuvas e trovoadas têm caído sobre essa terra, com muitos e relevantes comentários em desfavor da orientação adotada.
Paralelamente a MP 1.040/2021 fez diversas alterações no tocante à realização de assembleias gerais, cujo mérito será oportunamente avalizado.
Pulando alguns dos seus dispositivos, vemos que a MP em pauta entrou pelo tratamento da profissão de tradutor e de intérprete público. Ora, qual a relevância e urgência disso? Terá a categoria ou os seus usuários se manifestado no sentido dessa tutela, que não pudesse esperar uma lei ordinária, se fosse o caso?
Nem vou falar aqui sobre a obtenção de eletricidade que, para mim, se refere a ligar um aparelho na tomada. Mas certamente virão comentários a respeito em breve.
Muito sério, mas muito sério mesmo foram as medidas destinadas à alegada desburocratização empresarial, quando essa metralhadora giratória disparou para todos os lados, destruindo institutos presentes no Código Civil, a começar pela extinção da sociedade simples (art. 40) e a transformação das empresas individuais de responsabilidade limitada em sociedades limitadas unipessoais, independentemente de qualquer alteração estatutária (art. 42). Os regimes jurídicos desses dois institutos são distintos, ainda que sejam ambos instrumentos voltados para o estabelecimento de uma separação patrimonial, do que deverão resultar sérios problemas de adaptação do velho ao novo modelo, absolutamente desprezada a vontade dos titulares.
Depois seguiram-se mudanças no Código Civil, por meio, mais uma vez, da nova redação dada a alguns dos seus diversos dispositivos. No tocante à sociedade limitadas, uma vez extinta a sociedade simples e transformado o seu tratamento em normas gerais das sociedades, percebe-se a priori que incongruências, lacunas e superposição de tutela poderão estar presentes em diversas situações, dando-se lugar ao trabalho de montar um quebra-cabeças que pode ter pelas faltando; algumas que são de outro tabuleiro; e algumas que estão em dobro. A conferir, registrando-se que o Código Civil foi extremamente criticado desde a sua promulgação de ter feito um tratamento inadequado do empresário e da sociedade empresária, além de outros pontos também negativos, que não compete aqui discutir.
Uma pérola dessa MP está na nova redação ao parágrafo primeiro do art.1.142 do CC/2002, quando diz que "O estabelecimento não se confunde com o local onde ser exerce a atividade empresarial, podendo ser físico ou virtual". De entendimento dúbio, nascido talvez de uma referência ligada ao imóvel no qual o estabelecimento se situa (situação modificada pela novidade da vida virtual), esse mistério fica para ser revolvido em próxima oportunidade, ficando aqui a desculpa de se manter os destinatários da norma em estado de tensão.
Bem, vamos esperar que no Senado essa nave desgovernada possa ser colocada no devido rumo ou, quem sabe, recolhida ao depósito para dele nunca mais sair.
Até breve!