Migalhas de Peso

A questão da guarda e a faina do advogado

Com o tempo e os casos em que me vi envolvido, passei a entender que o papel do advogado como apaziguador é um dos mais importantes que há.

9/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Algumas vezes nos deparamos com casos aparentemente simples, sob o ponto de vista do Direito, mas que nos fazem parar e refletir. Recentemente tive a oportunidade de atender a um caso desses. Aparentemente uma simples questão de guarda; casal com dois filhos, o pai caminhoneiro, a mãe, grávida do terceiro filho, se socorre da ajuda dos avós, que entram na rotina das crianças e passam a cuidar delas a maior parte do dia, incluindo alguns pernoites.

Em meio à atual pandemia, a mãe se contamina com o Sars-19 e acaba contraindo a infecção que, após breve e injusto combate, a leva a óbito, junto com o filho não nascido.

O pai, dividido entre o luto e as premissas ingratas de sua profissão, acaba relegando integralmente os cuidados das crianças aos avós maternos, em cuja casa passam a residir em definitivo, e a situação se consolida, a ponto de serem tratados até mesmo valores de ajuda de custo do pai aos avós, como uma espécie de "pensão".

Com o tempo, a instabilidade emocional do pai se acentua e ele chega ao extremo de tentar o suicídio, após cujo frustrado episódio, as relações com os sogros se deterioram, e ele passa a fazer ameaças de retirar em definitivo as crianças dos avós, que, justificadamente receosos, buscam ajuda profissional.

E obviamente, a busca pela guarda das crianças acaba sendo a consequência natural, como em quase todos os conflitos de relações humanas em que na prática não se conseguem solucionar por si, seja pela interferência externa, seja pela dificuldade emocional de se buscar um caminho não conflituoso, e acabam convergindo ao Poder Judiciário.

Tomemos a lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – o "controverso" Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seu artigo 33 dispõe os ônus daqueles que detém a guarda, visando o bem estar do menor.

Art. 33. A guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.

"Inclusive os pais". Uma frase até meio tímida, meio "deixada" ali no finalzinho, mas que muda toda sistemática de um instituto jurídico inteiro.

Embora pessoalmente (e todos, apesar de profissionais, temos nossas convicções pessoais) me seja repugnante a ideia de viver em uma sociedade em que o Estado deva intervir a fim de proteger os filhos dos próprios pais, ao mesmo tempo é uma certa satisfação em poder ter à mão elementos que nos possibilitem, como operadores do Direito, lançar mão de ferramentas específicas para estas finalidades.

Recordo meus tempos de novato ainda na carreira, cheio de ímpetos, quando aderi ferrenhamente aos críticos desse estatuto – o então "famigerado ECA", devido às fortes raízes tradicionalistas na qual fui concebido e criado. E embora ainda guarde algum resquício desse ranço, hoje, com o peso dos anos e de quase 30 anos de atuação na área, agradeço pela sua existência. Afinal, nada que o tempo e a jurisprudência não resolvam.

De volta ao caso, pudemos ver que os avós, claramente, já exerciam em sua plenitude, e com muita tranquilidade, todos os "ônus" da guarda, suplantando em muito os chamados "deveres básicos" e proporcionando aos netos um lar amoroso e acolhedor, e uma criação sólida, já que, apesar de avós, ainda novos, dividam a casa com outros dois filhos, um deles recém ingresso na adolescência.

E embora eu entenda (e defenda ferrenhamente) que os laços familiares de fato importam, e fazem parte de uma evolução emocional saudável aos petizes, também não posso deixar de analisar a questão sob o ponto de vista das crianças, da conveniência ou não de se levar tão a ferro e fogo a ideia de que a figura dos pais seja imprescindível. No caso em comento a pessoa do pai se tornou, por sua própria conduta, algo negativo para as crianças, e a sua instabilidade emocional – normal e aceitável até um certo ponto após uma tragédia familiar de tamanhas proporções – passou a se tornar motivo de justificado temor aos avós que, atentos e amorosos, prontamente identificaram nas crianças o medo e, no caso da menor das duas (ainda na primeira infância), a verdadeira "repulsa" em relação à figura paterna, que ela mal conhecia.

Sob a abordagem técnica, a lei assegura uma contrapartida aos ônus da guarda, consignando aos seus detentores o direito de pleitear o seu reconhecimento e a proteção por parte do Estado, em casos como estes.

Art. 33. (...)

§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.

§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados.

(...)

Via-se claramente dos fatos que a realidade fática das crianças já era a de "guarda" em relação aos avós maternos, que mesmo antes da trágica perda de sua filha, se responsabilizaram integralmente por dar-lhes abrigo, amor, cuidados, educação e lhes suprir todas as necessidades. E o Código Civil, prevendo situações que tais, traz no §5º do art. 1584, a solução jurídica para a caso:

§ 5º. Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.

Simples. "Só que não"!

A solução jurídica cabível se mostrava clara, ingressar com o pedido de guarda e frustrar a intenção do pai de se valer de sua posição para tomar as crianças dos sogros. Porém, entendo que se tratamos de Direito de Família, não é correto observarmos o ângulo de apenas um dos lados, mas "pensar em família" e procurar entender o contexto em que se inserem essas crianças, a fim de que a solução, que juridicamente nos parecia clara como o dia, não assuma, com o passar do tempo (especificamente para as personagens envolvidas nos fatos), consequências salomônicas.

Imbuído desse pensamento e ainda um pouco atrelado àquelas velhas raízes que a minha criação me deu, sugeri aos avós que cumulássemos o pedido com uma proposta de visitas ao pai, obviamente restritas num primeiro momento, pai esse que até aqui não tivera ainda oportunidade de ver o seu lado da história sopesado.

Além da questão profissional, que o obriga a constantes e, muitas vezes, extensas ausências, o pai viu-se às voltas com a perda da esposa grávida e com duas crianças para cuidar. Não se pode esperar de todos a mesma tenacidade emocional que seria a ideal em situações de abalo emocional extremo. Uma das características dos seres humanos é justamente a de que não existem duas pessoas iguais no mundo, embora o Direito exija que não haja distinções. E é justamente esse o ponto.

Com o tempo e os casos em que me vi envolvido, passei a entender que o papel do Advogado como apaziguador é um dos mais importantes que há. Ao contrário da crença popular – e infelizmente da mentalidade de muitos dentro da profissão – a beligerância deve se restringir às partes, sendo o papel do Advogado buscar dirimir os conflitos durante sua atuação. E isso se torna particularmente sensível em relação ao Direito de Família.

Foi prevendo que, embora com total respaldo legal e de precedentes absolutamente favoráveis, um trauma maior poderia vir a assombrar esses pequenos para o resto de suas vidas, optei por oferecer um caminho para a paz. Afinal, um dia essas crianças irão crescer e indagar: "e o meu Pai?" Será que é justo condena-las, ainda em tão tenra idade, a toda uma vida carregando consigo aquele sentimento ruim ou dúbio em relação ao pai? Será que não estaria eu, ao simplesmente postular pelo rompimento da relação pai-filhos, como o fazem, em sentido contrário e infelizmente, muitos colegas em casos semelhantes (pesem os valorosos esforços do Ministério Público com os quais me deparei em minha jornada) roubando desses petizes o direito de optar por construírem por eles mesmo a imagem paterna e sua importância em suas vidas?

Se o pai, por força do destino ou por suas próprias escolhas acabar por se revelar pessoa de temperamento instável, soturno, e irascível, além de haver remédio jurídico também para esse fim, isso há de refletir na psiquê dos filhos de forma negativa, porém, garantida a segurança Estatal com relação à guarda, o restante é consequência das vicissitudes naturais da vida, não sendo função dessa proteção, criar uma "bolha" ilusória ao redor dessas crianças, já que a vida fora do processo não é assim.

Todos nós temos conflitos familiares e, de uma forma ou de outra, estamos sujeitos aos acertos e aos erros que nossos pais possam ter cometido em nossas criações. De forma que a ponderação e o bom senso (mais uma vez o bom senso...) devem ser o termômetro de nossa atuação, a fim de evitar os radicalismos que, por vezes, nosso ímpeto profissional e a paixão que nos move pela defesa de nossos clientes, acaba nos levando a cometer.

Se o pai atualmente, por alguma razão, deixou de possuir condições de dispor livremente do contato com os filhos, evidente a necessidade de que haja uma regulamentação, a fim, não apenas de garantir aos menores a segurança necessária a fim de evitar maiores traumas em sua já conturbada realidade, porém, sem lhes roubar o direito de, se as circunstâncias amainarem, garantir-lhes acesso de um mínimo convívio saudável com o pai, evitando assim, ainda maiores e futuros traumas. 

De volta ao caso, infelizmente, não pude acompanhar o desenvolvimento dos fatos pois, por circunstâncias da vida, acabei por deixar o patrocínio da causa. Porém a lição que tirei dela, e a ideia que me faz trazer o tema à presente reflexão, é a de que muitas vezes "estar com a razão" pode não ser a melhor solução, tamanho o peso da responsabilidade de nossa atuação, não apenas em auxílio de nossos clientes, mas para cumprirmos firmemente o mister de nosso papel como auxiliares da JUSTIÇA. 

Ricardo Colasuonno Manso
Advogado, atualmente residente na cidade de Sorocaba/SP, ex-membro do corpo de funcionários do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com mais de 26 anos de atuação na área jurídica. Atualmente é Content Writer na empresa Facilita Jurídico e colabora em análises e revisões de casos.

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