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Nova resolução do Banco Central sobre arranjo Pix não pode implicar retrocesso a direito do consumidor

Ao se olhar a jurisprudência, então, a situação é alarmante e traz uma necessária reflexão sobre qual causa deve ter dado sopro de vida a este normativo.

2/7/2021

 

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 8 de junho de 2021 foi publicada pelo Banco Central a Resolução 103/21, a qual altera a Resolução BCB n. 1, de 12 de agosto de 2020, que disciplina o funcionamento do arranjo de pagamentos conhecido como Pix.

Destaque-se desta resolução mudanças no chamado Mecanismo Especial de Devolução. Por ele, diferente do sistema anterior, em que somente se permitia devolução de valores por meio de procedimentos bilaterais e dispendiosos entre as instituições envolvidas e o usuário pagador, será possibilitada a devolução por iniciativa deste (ou mesmo dos prestadores de serviço de pagamento recebedor e pagador) em duas hipóteses.

É o que está vazado no artigo 41-B da citada Resolução: (i) situação de fundada suspeita do uso do arranjo para a prática de fraude; ou, (ii) ocasião em se que verifique falha operacional no sistema de tecnologia da informação de qualquer dos participantes na transação.

Sobre a primeira forma de devolução, a priori, é de se ver que o enunciado normativo “fundada suspeita do uso do arranjo para a prática de fraude” parece carecer de completude conceitual apta a evitar divagações no campo de aplicação do referido dispositivo. De modo objetivo: quem aferirá com precisão a fundada suspeita de fraude autorizadora de imediata devolução? Quem permitirá bloqueio ou suspensão unilateral e automática de valores transacionados pelo arranjo Pix?

Em princípio, a Autarquia parecer ter buscado delimitar essa vasta margem hermenêutica por meio de duas exceções, as quais constam do parágrafo único do artigo 41-B, isto é, não se incluem nas hipóteses de devolução de pix pautado em fundada suspeita de fraude: (i) as controvérsias relacionadas a aspectos do negócio jurídico subjacente à transação de pagamento; ou (ii) as transações com fundada suspeita de fraude em que os recursos forem destinados à conta transacional de terceiro de boa-fé.

De outra banda, há a possibilidade de se acionar o Mecanismo Especial de Devolução por parte do participante prestador de serviço de pagamento do usuário recebedor quando, a teor do inciso II do artigo 41-C da Resolução, a solicitação para tal surgir do participante prestador de serviço de pagamento do usuário pagador. Para tanto, este deverá se valer do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT) caso a conduta supostamente fraudulenta tenha ocorrido no âmbito dos sistemas desse participante.

Chega-se a inarredável questão: para que se autorize esses bloqueios e consequentes devoluções de valores feitos por meio do arranjo Pix (para quem for de direito) toda a sistemática dependerá do atendimento, à toda evidência, das regras do CDC, nomeadamente das que dizem respeito à prestação do que a doutrina e a jurisprudência têm cunhado de dever de esclarecimento1 ou de informação qualificada2 3.

Isso acontece na medida em que, para que esses agentes tenham autorização para proceder à restituição pela sistemática do Mecanismo Especial de Devolução será necessário que haja “prévia e expressa autorização do usuário” (§ 2º do artigo 41-C).

Outra previsão legal segue igual caminho: “a autorização (...) poderá ser concedida no contrato firmado com o correspondente prestador de serviço de pagamento, mediante cláusula em destaque no corpo do instrumento contratual, ou por outro instrumento jurídico válido”.

É dizer, sob o necessário olhar protecionista da parte vulnerável (artigo 4.º, I, CDC4) dessas relações de consumo: há de haver, por parte das prestadoras de serviço de pagamento, fornecimento de informação clara e adequada (artigo 6.º, III5), em destaque (art. 51, IV6e, em se tratando de contratos de adesão, em estrito cumprimento ao que determina o artigo 467 do CDC, sob pena de ineficácia dessas obrigações:

Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

A bem da verdade, na ligeira prática do arranjo Pix no Brasil, que completará seu primeiro ano em outubro de 2021, o que se percebe é omissão por parte das instituições financeiras quanto ao mencionado destaque. Isto se nota, por exemplo, da ausência até mesmo do vocábulo “devolução” (quanto mais fraude) em “páginas facilitadoras” criadas  na internet, as quais se propõem a simplificar a informação aos usuários.8

Ao se olhar a jurisprudência, então, a situação é alarmante e traz uma necessária reflexão sobre qual causa deve ter dado sopro de vida a este normativo.

Corre no TJ-SP9 ação em que, sob a égide da instrução normativa do Banco Central anterior a que ora se comenta (Resolução n. 1/12/8/2020, artigo 40), trava-se verdadeira briga entre bancos por “alegação de falha sistêmica no Pix” ocorrida nas operações do Banco Itaú, ocasião em que foi transferido cerca de um milhão de reais indevidamente para diversos correntistas de outros bancos, como o Bradesco, Banco do Brasil, Nubank, Sicred, Bancoob, Banco Original e Banco Inter.

Na espécie, e em desprestígio a todo e qualquer basilar direito do consumidor previsto na Lei n. 8.078/1990, o juízo de origem concedeu tutela de urgência de natureza antecipada para que o Itáu promovesse bloqueio dos referidos valores nas contas que supostamente teriam sido movimentados valores de forma errônea por falha sistêmica no arranjo Pix.

Acertadamente, contudo, decidiu o Tribunal Bandeirante que: “(...) referida decisão se mostra ilegal, haja vista que a legislação norteadora das condutas relacionadas ao Pix, mais precisamente o Capítulo XI da Resolução BCB n. 1 de 12/08/2018, que trata ‘da devolução das transações’, prevê, em seu art. 40, § 1º, que a devolução de um pix deve ser iniciada pelo usuário recebedor” ou seja, não há previsão para que a devolução seja realizada pela Instituição Financeira na qual mantém sua conta”.

A inevitável reflexão: seria esta Resolução a chave para que bancos possam, ao invés de coibir fraudes pautadas em fundada suspeita, passar a bloquear valores em conta de forma automática e unilateral como no milionário e escandaloso caso acima narrado? Ainda não se sabe.

De todo modo, pois, conclui-se por solicitar interpretação cum grano salis à Resolução que se avizinha (entrará em vigor em 16 de novembro de 2021) pois, como bem se sabe, se de um lado o direito deve tentar de alguma maneira seguir a velocidade com que as relações sociais se redesenham e se reestruturam, de outro não pode retroceder em enunciado normativo fundamental.

Numa linha, e em paráfrase ao insuperável Nelson Rodrigues: no Brasil o óbvio (artigo 5.º, XXXII, Constituição Federal de 1988) todos os dias precisa ser dito10.

_________

1- KHOURI, Paulo. Do direito à informação e o contrato de seguroIn: CARLINI, Angélica; MIRAGEM, Bruno. Direito dos segurosfundamentos do direito civil, direito empresarial e direito do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 137-138.

2- Assim: MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 298.

3- REsp 418.572-SP.

4- CDC. Artigo 4.º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

5- CDC. Artigo 6.º São direitos básicos do consumidor: (...) III – a informação clara e adequada sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

6- CDC. Artigo 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

7- CDC. Artigo 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

8- Assim, por exemplo, veja-se: Central Pix Nubank: Clique aqui. Pix BBClique aqui.. Acesso em 11 jun. 2021.

9- Nota resposta do Itaú: O Itaú Unibanco não comenta processos que correm em segredo de justiça. InClique aqui.

10- RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululanteprimeiras confissões. 5ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2016.

Jonas Sales Fernandes da Silva
Advogado. Membro diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor - BRASILCON. Vice-presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/DF, Subseção Núcleo Bandeirante.

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