Em meados de abril de 1988, o plenário da Assembleia Nacional Constituinte discutiu e votou destaques para excluir a previsão do imposto sobre grandes fortunas (IGF) no então projeto da nova Constituição. Todos os destaques foram rejeitados pela ampla maioria dos 400 constituintes presentes. O argumento para manter a criação do IGF mediante lei complementar estava no objetivo fundamental da futura Constituição: dirigir o Brasil a uma sociedade livre, igualitária, justa, sem pobreza e com garantia de desenvolvimento.
De fato, a nossa Constituição é um documento político que toma partido. Embora delineie direitos e deveres para o cidadão e organize o Estado, assim como faz grande parte dos textos constitucionais mundo afora, a Constituição dá um passo adiante. Por ser ambiciosa, estabeleceu objetivos e programas para que a sociedade os concretize com a ajuda do Estado. E para que este assuma sua responsabilidade, foi desenhado um modelo tributário que se pretende distributivo, progressivo e igualitário.
Nesse contexto é que o IGF foi previsto no texto originário e por essa razão necessita ser regulamentado como ordena a Constituição. De todos os tributos que foram previstos, é o único sem concretude. Há, por exemplo, projetos em trâmite no Congresso Nacional que preveem a aplicação do imposto com alíquota de 0,5% somente para pessoas físicas, a considerar patrimônio líquido de, no mínimo, R$ 22 milhões. Sabe-se que esse imposto, tal como implementado em alguns países, é altamente elástico e pode incentivar a conduta de o contribuinte subdeclarar bens, realocar ativos e exportar recursos para paraísos fiscais, como demonstrou a Gazeta do Povo a partir de estudo do Insper. Porém, argumentos consequencialistas, apesar de importantes, não são unicamente viáveis para afastar o cumprimento do texto constitucional, dada a realidade social do país.
Os representantes do povo brasileiro em 1988 almejavam a participação das grandes fortunas no combate à desigualdade e à pobreza. Nosso contexto social ainda não atingiu essa realidade, infelizmente. Apesar dos avanços, ainda assim o imposto sobre a renda arrecada excessivamente do trabalhador assalariado e dos servidores públicos. Há exacerbados tributos indiretos sobre o consumo, com pesada carga sobre a renda da classe média e das classes mais pobres; e, em contrapartida, existem alíquotas mínimas em sucessões de heranças que tampouco cumprem o papel redistributivo. A efetiva criação do IGF poderia auxiliar na redução desse contexto de desigualdade, pois, segundo a própria Constituição, o tributo teria objetivo claro: compor o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, conforme art. 80, III do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Se o Estado deve atuar com ação redistributiva com os instrumentos que lhe foram permitidos, qual o motivo para que não sejam utilizados? Entre buscar a criação de uma sociedade com mais equidade e, ao contrário, impor barreiras à sua conquista com base na possível conduta ineficiente do contribuinte, é preciso escolher a primeira, mesmo que haja pouca arrecadação efetiva.
A omissão injustificável, que perdura há mais de três décadas, levou partido político a questionar o fato perante o Supremo Tribunal Federal. Semana passada, o ministro Marco Aurélio votou acertadamente pela procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 55 e abriu a possibilidade de a União adotar as providências necessárias para a regulamentação do IGF. O caso segue em julgamento e, sustenta-se, com possibilidade de manifestações da sociedade civil via intervenção de amici curiae, dada a importância da matéria.
É tempo, portanto, de efetivar a Constituição em mais esse ponto, pois ainda que não se espere o fim do julgamento da ADO 55, deputados e senadores podem, enfim, discutir a viabilidade do IGF e cumprir mais um passo para buscar a erradicação da pobreza.