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A essencialidade diante dos votos do Supremo – Uma análise do RE 714.139

Os reflexos da decisão da Suprema Corte no julgamento da seletividade em função da essencialidade.

2/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a julgar o RE 714.139 - tema 745, o julgamento de repercussão geral é aguardado por quase dez anos, em vista da necessidade de definição da matéria julgada. O Plenário vem analisando se a alíquota de 25% de ICMS fixada pelo estado de Santa Catarina (SC) sobre o fornecimento de energia elétrica e a prestação do serviço de comunicação viola o princípio constitucional da seletividade do ICMS, que determina a graduação do imposto em função da essencialidade das mercadorias e serviços tributados.

A segunda turma já decidiu no exame dessa matéria, em agosto de 2014, que a aplicação da alíquota de 25% de ICMS para o fornecimento de energia elétrica e telecomunicações para o Estado do Rio de Janeiro era ofensivo à seletividade. Mas mais importante que talvez vir a decidir se é a energia elétrica um bem essencial ou não, e qual a devida graduação em função de sua essencialidade, é o que dirá esse julgamento a respeito do conceito de seletividade e do critério pelo qual é a seletividade aplicada.

O julgamento do RE 174.139 é emblemático dada sua matéria, mas também o contexto histórico e social em que deverá ser consagrada sua decisão. A situação de pandemia devido ao covid-19, e seus reflexos sociais e econômicos evidenciaram a necessidade discutirmos temas como a instituição de uma renda básica universal, a insegurança alimentar por meio do mapeamento da fome no Brasil e o acesso à saúde, diante da crise na saúde pública evidenciada pela pandemia.

Nesse cenário, fica evidente que a pandemia fez insurgir uma preocupação maior com o tema da essencialidade, e isso se prova pela enumeração das problemáticas que suscitaram nossa atenção, quais sejam, problemáticas relacionadas à manutenção do mínimo existencial. Assim, a essencialidade que é o critério para aplicação da seletividade da carga tributária, é capaz de impactar temas que são de notável importância social, e terão reflexos para além do campo tributário, refletindo no âmbito econômico e social.

Isso porque, a seletividade significa que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade do produto, da mercadoria e dos serviços, de maneira que, quanto mais essencial for a mercadoria ou o serviço, menor deverá ser a alíquota incidente. Essa graduação da alíquota deve ser aplicada pela perspectiva da essencialidade da mercadoria ou serviço, de forma a resguardar a manutenção do mínimo existencial, de encontro com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, diante do princípio da dignidade humana que veio fundamentar o Estado Brasileiro – pelo Estado Democrático de Direito –, fica subentendido pelo escopo constitucional, que para que ocorra sua concretização, é necessária a efetivação dos direitos sociais e fundamentais, convalidando o mínimo existencial como núcleo da dignidade da pessoa humana.

Em verdade, será o princípio da igualdade que fará a manutenção da vinculação entre todos os citados parâmetros constitucionais, como discorreu ÁVILA1. De forma que virá a seletividade a ser a concretização tributária da igualdade de tratamento de acordo com o parâmetro da dignidade da pessoa humana.

Assim, o ministro Marco Aurélio, na linha do precedente da segunda turma do STF, reconheceu em seu voto a inconstitucionalidade da lei do Estado de Santa Catarina, por entender que a energia elétrica e a telecomunicação são mercadorias e serviços dotados de essencialidade incontestável. O ministro afirma que o legislador estadual ao adotar alíquotas diferenciadas do ICMS não poderia se utilizar de outro critério senão o da essencialidade das mercadorias e serviços.

Contudo, o voto divergente, levantado pelo ministro Alexandre de Moraes que trouxe entendimento no sentido de que há violação ao princípio da seletividade na imposição de alíquota de 25% sobre as telecomunicações, mas diverge com relação à energia elétrica, pois entende que, nesse último caso, foi considerado além da essencialidade -único critério cuja previsão é constitucional, o princípio da capacidade contribuitiva.

Diante disso, pelo voto do ministro Alexandre de Moraes que apresenta uma tentativa de conjugação do princípio da seletividade do ICMS com o da capacidade contributiva, é importante que façamos entender a importância da correta interpretação da essencialidade pelo Judiciário, de modo a entender a importância da correta aplicação do critério da essencialidade.

Porque como se sabe a Constituição impõe a essencialidade como critério único para aplicação da seletividade pelo disposto no artigo 155, § 2º, inciso III, de forma que a essencialidade será único critério a ser determinado para aplicação da seletividade. Assim, a essencialidade dos produtos é a única possibilidade pela qual atualmente, poderá o legislador estadual graduar a alíquota seletiva do ICMS.

Embora o conceito de essencialidade não esteja disposto de forma expressa pela Constituição, em decorrência da variação do conceito do que é essencial em razão do espaço e do tempo. A essencialidade não deve ser estritamente interpretada para abarcar apenas as necessidades biológicas, devendo abranger também as necessidades de um padrão mínimo de integração social, de modo a satisfazer o mínimo existencial2.

De forma que resta compreender que a proteção mínima alcançada pela seletividade é efetivada pela aferição da essencialidade da mercadoria ou serviço, de forma que pela essencialidade já estará evidenciada a existência ou não de capacidade contributiva.

Interessante ainda observar que, embora não encontremos a definição de essencialidade disposta expressamente na legislação, em virtude do entendimento do que é essencial variar no espaço e no tempo, sendo necessária sua aferição para cada grupo social, em cada época e espaço, é possível extrair alguns contornos do que seja essencial. Como pode ser compreendido a partir do salário mínimo, dando base para que seja concebido um parâmetro do essencial ao nosso tempo, e fundando as bases para a discussão de uma renda básica universal, conforme evidenciado pela crise econômica resultante da pandemia.

Contudo, o voto do ministro Alexandre de Moraes no que confere à tentativa de conjugação da seletividade com a capacidade contributiva, tem a pretensão de consagrar a seletividade com base na existência de uma alíquota menos gravosa em função do consumo reduzido de uma mercadoria ou serviço, não demonstrando nenhuma relação com a essencialidade da mercadoria ou do serviço.

Essa tentativa de conjugação de um critério para graduação das alíquotas que não respeite a essencialidade das mercadorias ou serviços ou venha conjugar outro critério que não fora constitucionalmente determinado, pode vir a desvirtuar o sentido da seletividade enquanto instrumento tributário de manutenção social, conforme já veio a ser empregada, por exemplo no caso dos alimentos da cesta básica.

Nesse caso o tratamento concedido pela legislação aos produtos que integram a cesta básica, é dado por meio do convênio ICMS 128/19943, instituído pelo Conselho Nacional de Política Fazendária, com base na LC 24/1975 que visa a regulamentar as concessões de isenções do ICMS, instituiu a carga mínima tributária de 7% (sete por cento) sobre as saídas de mercadorias que compõem a cesta básica.

Isso só é possível por meio da aplicação da seletividade em função da essencialidade das mercadorias, de forma que é possibilitado ao legislador estabelecer alíquotas diferenciadas considerando a essencialidade da mercadoria. Tendo como fundamento para o exercício do instrumento da seletividade, enquanto meio de garantir a diferenciação de alíquotas em função da essencialidade dos produtos, a manutenção do mínimo existencial e a tutela da dignidade humana.

A importância da aplicação do correto critério à graduação das cargas tributárias, ou seja, da essencialidade das mercadorias e dos serviços vai além. Tamanha é a importância do tratamento tributário conferido aos produtos da cesta básica, que esse exemplo tem sido adotado como parâmetro de essencialidade em outras pretensões no Judiciário, como foi o caso do agravo em RE 1.566.084, pelo qual se pretendeu a submissão das operações de distribuição de medicamento ao mesmo regime jurídico aplicado aos produtos da cesta básica.

É importante aqui, se referindo à essencialidade no caso dos medicamentos, voltar ao conceito da essencialidade para mostrar que, em se tratando de medicamentos e acesso à saúde, teremos outra conceituação para o conceito de essencialidade, utilizada pela Organização Mundial de Saúde. De acordo com esta, utilizam-se os critérios de prioridade segundo a relevância dos medicamentos à saúde pública.

Por conseguinte, parece claro o tratamento a ser concedido aos medicamentos, no que se refere a essencialidade. Uma vez que há a necessidade de graduar a alíquota em consonância com a sua essencialidade, contudo, é necessário ainda considerar que, há uma essencialidade intrínseca a própria categoria, apta a discriminar entre os produtos quais são passíveis de maior necessidade de serem colocados à disposição da população, por questões estratégicas de saúde pública.

Nesse sentido, cumpre observar que no caso da tributação do IPI, que a Constituição determina obrigatória a aplicação da seletividade em função da essencialidade dos produtos, sua alíquota é estipulada em 0% para a maioria dos medicamentos, conforme consta na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados prevista no decreto Federal 8.950 de 29 de dezembro de 2016.

Não há dúvidas, portanto, que reconhecer o caráter essencial dos medicamentos e graduar a incidência de ICMS por meio do princípio da seletividade, garantindo o acesso da população a essas mercadorias é meio de satisfação ao mínimo existencial, bem como, de efetivar o direito constitucional à saúde.

De mesmo modo, consagrar a essencialidade como critério de aplicação da seletividade, é dever de uma Corte que busque efetivar as garantias constitucionais com a finalidade de manutenção da dignidade humana, buscando com a graduação das alíquotas tributárias em função da essencialidade uma forma de garantir o acesso de populações de baixa renda à determinados itens essenciais, de forma que a essencialidade se fixe enquanto critério concretizador da igualdade.

Pelos fundamentos aqui expostos, parece evidente que a decisão da Suprema corte não pode ser outra, a não ser aquela que venha consagrar a seletividade em função da essencialidade. Uma vez que tem a seletividade o atributo de proteger o mínimo existencial com relação as garantias constitucionalmente dispostas, devendo ser de aplicação obrigatória quando diante da tributação de mercadorias ou serviços essenciais, sendo a essencialidade fundamento norteador de acesso pleno à saúde, à alimentação e ao resguardo do mínimo existencial.

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1 ÁVILA, Humberto Teoria da igualdade tributária, 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
2 BRASIL. Convênio ICMS 128/1994. Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ).
3 TILBERY, Henry. O Conceito de Essencialidade como Critério de Tributação. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (coord.). Estudos Tributários em Homenagem à memória de Rubens Gomes de Souza. São Paulo: Resenha Tributária, 1974. p. 2969-3058.
4 Brasil. Presidência da República. Decreto 8.950, de 29 de dezembro de 2016. Aprova a Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI. Diário Oficial da União. 12 Dez 2016

Bruna Dandara
Bacharela em Direito pela Faculdade Nacional de Direito - UFRJ. Trainee no Daudt, Castro e Galotti Olinto Advogados.

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