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Direitos Humanos no Brasil e a legislação do retrocesso

Nos últimos anos, nota-se a proliferação de projetos de lei que representam evidente retrocesso nos temas relacionados aos Direitos Humanos. O "efeito cliquet" e as leis internacionais seriam suficientes para garantir nossa tímida evolução?

28/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O que entendemos hoje por "Direitos Humanos" são uma conquista histórica. Ao longo dos séculos, a proteção à autonomia, dignidade e inviolabilidade de cada indivíduo foi sendo positivada nos ordenamentos jurídicos de cada país e na ordem internacional. Não se trata, porém, de um "produto acabado" ou de um passado remoto. No Brasil, apenas em 1962, com a edição da lei 4.121, as mulheres puderam exercer uma profissão sem a autorização dos maridos; o racismo negrofóbico só foi tipificado em 1989; e até hoje, não existe uma lei federal que criminalize atos discriminatórios contra a população LGBTQIA+1; para ficar apenas em alguns poucos exemplos. Como se percebe, a luta para que todos sejam reconhecidos como "livres e iguais em dignidade e em direitos"2 é inexaurível.

Contudo, nos últimos anos, ao invés de avançar, nota-se a proliferação de projetos de lei que representam evidente retrocesso. Da tentativa de extinção dos povos originários (PEC 215/00) à redução da maioridade penal (PEC 115/15), passando pela retirada dos casais homoafetivos do conceito de família (PL 6.583/13), pela criminalização dos movimentos sociais (PLS 272/16 e PL 149/03) até à revogação do Estatuto do Desarmamento (PL 3.722/12). O Congresso, todavia, não está sozinho na tentativa de deterioração de garantias fundamentais. Os frequentes ataques do atual Presidente à imprensa, a corrupção, a violência policial, casos de racismo e violência sexual contra mulheres não passaram despercebidos no relatório de 2020 do Departamento de Estado americano sobre os Direitos Humanos no mundo3. No âmbito da Revisão Periódica Universal das Nações Unidas (Relatório de Meio Período, de 2019), de 190 recomendações avaliadas, o Brasil cumpriu apenas uma totalmente4.

Voltando ao aspecto da produção de normas sobre o tema, em uma eventual judicialização das questões, as iniciativas que vierem a prosperar no Legislativo devem esbarrar no que a doutrina chama de "efeito cliquet". Explico: cliquet é um termo usado no alpinismo, quando em determinado ponto da escalada, não é possível retroceder. O "efeito cliquet" seria então uma proibição ao retrocesso. Nesse sentindo, vale repercutir as palavras do ex-Ministro Celso de Mello, no julgamento do ARE 639.337 AgR / SP5: "o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive".

E mesmo que uma nova composição da cúpula do Judiciário tente mudar o entendimento ora dominante, é preciso destacar que o Brasil está sob jurisdição, no âmbito regional, da Corte Interamericana de Direitos Humanos (decreto 4.463/02), que no Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, estabeleceu no § 124 da sentença6 o seguinte: "o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana". Vale lembrar que a soberania nacional absoluta não existe mais desde a Paz de Westfalia, em 1648.

Ainda assim, não sejamos ingênuos. As recentes dificuldades que a Corte Europeia de Direitos Humanos vem enfrentando com a Hungria e a Polônia nos lembram da dificuldade de responsabilização efetiva dos Estados em matéria de Direitos Humanos nas cortes internacionais. Os únicos remédios para evitar o definhamento de nossa tímida evolução são uma educação voltada ao "fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais"7 e a eterna vigilância da democracia.

_______
 
1 Em 2019, o STF revelou, no julgamento da ADO 26, que o homotransfobia é uma espécie de racismo social, enquadrando a prática na lei 7.716/89 até que o Congresso venha a legislar sobre o tema.
2 Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
3 Disponível aqui.
4 Descumprimento foi motivo de debate na Câmara.
5 Dje, 15/9/2011.
6 A sentença pode ser encontrada completa e em português no sítio do CNJ.
7 Art. 26, § 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Poandson Santos
Estudante de Direito, pós-graduando em Direitos Humanos.

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