A recente reforma da legislação penal pela lei 13.964/19 (“Lei Anticrime”) provocou diversas alterações no sistema de justiça criminal brasileiro. Na proposição originária, advinda de anteprojeto de lei do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, defendia-se de um lado o maior rigor para os crimes cometidos por organizações criminosas enquanto, de outro, buscava-se criar mecanismos com o intuito de “desafogar” a Justiça criminal. Dentre estes, ganharam notoriedade as propostas de expansão da justiça penal negocial, com o acordo de não persecução penal (incorporado ao CPP no art. 28-A) e o chamado “acordo penal” (rechaçado pelo Poder Legislativo).
Outra modificação relevante, tendente a reduzir a incidência de feitos para a apuração de delitos patrimoniais, foi a previsão de que a ação penal no crime de estelionato passa a ser condicionada à representação do ofendido. Nos termos do recém-criado § 5.º do art. 171 do CP, exige-se representação do ofendido para que o fato possa ser investigado e, eventualmente, torne-se objeto de ação penal. Não basta que o fato chegue a conhecimento das autoridades; somente haverá responsabilidade penal do autor do estelionato se houver manifestação de vontade da vítima nesse sentido.1
A análise da nova regra condicionando a ação penal no crime de estelionato à representação do ofendido traz uma importante reflexão: pode haver retroatividade da norma para fatos ocorridos anteriormente à vigência da lei e que já deram azo à instauração de inquérito policial ou ação penal? A questão está pendente de resolução definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, havendo decisões conflitantes, tanto no STF quanto no STJ, a depender do posicionamento adotado.
Uma coisa é certa: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o acusado (art. 5.º, XL, CR). Esse postulado é elementar ao direito penal, e se encontra também no art. 3.º do CP. No problema em análise, parte do cerne da controvérsia reside no fato de que a exigência de representação da vítima consiste, em primeira leitura, em dispositivo de natureza processual (condição de procedibilidade), mas que enseja consequências relevantes de natureza penal material, que condicionam a própria punibilidade do fato e a apuração da responsabilidade penal de seu autor.
Por brevidade, partamos da noção — que parece ser consensual — de que a exigência de representação da vítima como requisito para investigação e oferecimento de denúncia quanto ao crime de estelionato beneficia indivíduos que tenham praticado, venham a ser investigados e possam vir a ser denunciados pela prática de tal delito. Isso porque cria um requisito legal para exercício do poder punitivo, ensejando a existência de hipóteses que impedem a investigação do fato e o oferecimento de denúncia. Aí caberá analisar, em resumo, se a exigência da representação da vítima será aplicada retroativamente (i) a fatos ocorridos anteriormente à vigência da lei, (ii) a investigações que já estejam em curso quando da vigência da lei, (iii) a ações penais que já estejam em curso quando da vigência da lei e (iv) para casos em que já houve condenação.
Essa discussão já foi levada aos Tribunais Superiores, havendo a adoção de diferentes entendimentos nos órgãos colegiados.
No Superior Tribunal de Justiça, a 5.ª Turma — sob a relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, acompanhado pelos ministros Ribeiro Dantas, Felix Fischer e Jorge Mussi2 — reconheceu que “o novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade”. Contudo, ante a inexistência de regra quanto à aplicação do dispositivo a casos já em trâmite, a Turma decidiu que “seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo” (STJ, 5.ª T., HC 573.093/SC, rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julg. 9 jun. 2020).
Já a 6.ª Turma, em posicionamento divergente — sob a relatoria do ministro Sebastião Reis Junior, acompanhado pelos ministros Rogério Schietti Cruz, Nefi Cordeiro, Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz —, decidiu que a exigência da representação consiste em condição de procedibilidade e não enseja a extinção da punibilidade nos feitos em curso em que não houve manifestação da vítima (antes da vigência da Lei). Contudo, a Turma decidiu que a exigência de representação deveria ser aplicada retroativamente aos feitos em curso, sem trânsito em julgado, aplicando-se analogicamente a regra prevista no art. 91 da lei 9.099, de 1995, com a intimação da vítima para manifestação no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência (STJ, 6.ª T., HC 583.837/SC, rel. ministro Sebastião Reis Junior, julg. 4 ago. 2020).
Ante a divergência dos órgãos colegiados do STJ, a questão foi posta a julgamento em 24 de março de 2021 — no HC 610.201/SP — pela 3.ª Seção, a qual “pacificou” naquele Tribunal o posicionamento de que a exigência da representação para o crime de estelionato não pode ser aplicada de forma retroativa em processos que já estavam em curso quando da entrada em vigência da lei 13.964. Vencidos os ministros Nefi Cordeiro (relator) e Sebastião Reis Junior, os ministros Ribeiro Dantas (prolator do voto vencedor), Antonio Saldanha Palheiro, Felix Fischer, Laurita Vaz, Otávio de João Noronha e Rogério Schietti Cruz decidiram que a representação não seria exigível nos processos já em curso, porque (i) ambas as Turmas do STF já haviam decidido nesse sentido, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, bem como a 5.ª Turma do STJ, (ii) o Congresso, exercendo o poder popular, já decidiu tratar-se de condição de procedibilidade, e não de “prosseguibilidade” (conforme constava originalmente no anteprojeto do chamado “Pacote Anticrime” do MJSP), e (iii) seria necessário evitar a abertura da “Caixa de Pandora” que seria a aplicação retroativa sem algum parâmetro limitador.
Até o presente momento, portanto, a questão está aparentemente resolvida no âmbito do STJ. Embora aquela Corte tenha mencionado que o STF também já teria se posicionado no mesmo sentido em ambas as suas Turmas, atualmente não há consenso no Supremo a respeito da questão.
De fato, a 1.ª Turma — sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, no HC 187.341/SP — já decidiu que a exigência de representação quanto ao crime de estelionato consiste em norma de natureza mista, com aplicação retroativa para todos os casos em que ainda não tiver ocorrido o oferecimento de denúncia, independentemente da data da prática do fato (STF, 1.ª T., HC 187.341/SP, rel. ministro Alexandre de Moraes, julg. 13 out. 2020). Limitou a Turma, porém, o alcance da exigência aos casos ainda sem denúncia oferecida, pois nos demais a peça acusatória teria sido oferecida em momento em que a lei processual não previa a referida condição de procedibilidade. Esse entendimento foi mais tarde reiterado pela Turma no HC. 190.683, julgado em 7 de dezembro de 2020, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.
O caso julgado pela 2.ª Turma e mencionado no acórdão da 3.ª Seção do STJ consiste no AgRg no ARE 1.230.095/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual o relator entendeu por indeferir pleito preliminar de baixa dos autos a fim de fosse intimada a vítima a respeito da exigência da representação. A fundamentação do voto, nesse tocante, deu-se inteiramente de forma remissiva ao parecer ministerial, no sentido de que a norma seria de conteúdo processual e irretroativa, e, subsidiariamente, não poderia retroagir ao caso, pois já havia ocorrido instrução processual e decisão condenatória. No mais, o voto tratou da questão do (des)cabimento de recurso extraordinário interposto pela parte. Note-se que embora o posicionamento do ministro Gilmar Mendes tenha sido acompanhado pelos ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Edson Fachin, a questão da retroatividade da exigência da representação surgiu apenas incidentalmente, em caso específico no qual já havia condenação mantida em segundo grau.
Embora parecesse haver consenso na Corte até esse ponto, recentemente a 2.ª Turma adotou posicionamento diverso. No julgamento de agravo regimental no HC 180.421/SP, finalizado em 22 de junho de 2021, a Turma concedeu ordem de ofício a fim de trancar a ação penal originária, ante “aplicação retroativa do § 5.º do art. 171 até o trânsito em julgado”. O ministro Edson Fachin, relator do feito, asseverou no dia 15 de junho que o dispositivo em questão deve retroagir para beneficiar o réu, não podendo a aplicação da norma mais favorável ser condicionada por regulação legislativa. O ministro Gilmar Mendes acompanhou o posicionamento e ressaltou a natureza mista — material e processual — da norma, ressaltando que a Corte adotou o mesmo entendimento quando da previsão de exigência de representação nos casos de lesão corporal leve e culposa, na lei 9.099, de 1995. Os ministros Nunes Marques, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski acompanharam o entendimento do relator quanto à retroatividade (embora tenha havido divergências em outros pontos no caso), tendo havido unanimidade na Turma quanto à aplicação da exigência de representação e necessidade de intimação da vítima para manifestação mesmo nos casos com denúncia oferecida antes da vigência da lei 13.964, de 2019.
Com esse novo posicionamento da 2.ª Turma do STF, e ainda não havendo decisão com força vinculante em âmbito nacional, a questão está pendente de resolução definitiva.
Até o presente momento, os argumentos mais coerentes — tanto do ponto de vista jurídico técnico processual quanto do ponto de vista dos aspectos práticos e operacionais da justiça criminal — são os adotados pela 5.ª Turma do STJ — posicionamento que prevaleceu na 3.ª Seção — e pela 1.ª Turma do STF. Ou seja, a posição de que a exigência de representação da vítima nos casos de crimes de estelionato não ser aplicada retroativamente aos casos em que já havia denúncia oferecida quando da entrada em vigência da lei 13.964, de 2019.
Não há dúvidas a respeito do seguinte: a alteração legislativa em comento é um grande acerto da recente reforma operada na legislação penal e processual penal. A exigência de representação para os casos de estelionato, em resumo, (i) favorece a composição civil entre os envolvidos, na medida em que encoraja a reparação voluntária do prejuízo no interesse da renúncia ou retratação da representação, (ii) potencialmente reduz a incidência do aparato persecutório sobre situações que consistiram em desacordos comerciais e/ou contratuais e (iii) atenua e relativiza o questionável peso elevado dado ao Código Penal ao bem jurídico do patrimônio — em comparação com outros como a vida, a liberdade e a integridade física. De fato, a exigência da representação poderia perfeitamente ser estendida a outros crimes contra o patrimônio, como o furto e a receptação3. Isso muito provavelmente ensejaria, ao mesmo tempo, alguma redução nos casos de lesões patrimoniais que chegam à seara penal e maiores oportunidades de composição consensual de prejuízos financeiros pequenos e médios.
Por outro lado, isso não significa que a exigência da representação deva retroagir de forma absoluta.
Como apontado inicialmente pela 5.ª Turma do STJ, a representação consiste em condição de procedibilidade cuja ratio está indissociavelmente associada à fase pré-processual anterior ao oferecimento de denúncia. A natureza de norma penal mista — visto que também enseja efeitos diretos sobre a punibilidade em si, e não apenas sobre questões processuais — não altera o fato de que a exigência da representação só faz sentido se considerada até o oferecimento da peça acusatória, visto que esse é o marco processual já estabelecido pela lei processual penal como divisor nesse tocante. Justamente por isso, a lei processual penal já prevê que a representação será irretratável depois de oferecida a denúncia (art. 25, CPP).
Isso significa dizer que, para além da discussão da natureza do dispositivo em análise, a sua aplicação está inseparavelmente relacionada à instauração da ação penal: a partir do momento em que a peça acusatória é oferecida, não mais importa a vontade da vítima quanto ao prosseguimento da persecução penal.
Na situação em análise, nos casos em que a denúncia já foi oferecida antes da vigência da lei 13.964 — e, portanto, sem a exigência da representação —, o marco processual até o qual o interesse da vítima é condicionante já foi ultrapassado validamente (art. 1.º, CPP: tempus regit actum). Embora realmente se possa reconhecer a natureza mista da exigência da representação, a aplicação retroativa só faz sentido para os casos em que ainda não houve oferecimento válido da peça acusatória sob a égide da lei vigente à época.
Lembre-se que a alteração da legitimidade para persecução do estelionato — de ação penal pública para ação penal pública condicionada — não indica redução da reprovabilidade do delito. Não somente as penas permanecem as mesmas — ou seja, não foram reduzidas — como foram criadas (i) uma nova hipótese incriminadora com penas consideravelmente elevadas (fraude eletrônica – art. 171, § 2.º-A) e (ii) uma majorante para casos praticados contra idosos e pessoas vulneráveis (art. 171, § 4.º). Isso demonstra que a exigência da representação decorre de razões de natureza prática, operacional, de política criminal numérica, e não propriamente de redução no juízo de reprovabilidade que o legislador faz sobre o fato abstrato criminalizado.
Em havendo exigência de representação tão somente por razões de ordem prática, não faz qualquer sentido estender a retroatividade dessa exigência para os casos em que o marco processual divisor — a partir do qual a representação deixa de ser relevante, pois irretratável — já foi ultrapassado pelo oferecimento válido da denúncia sob a égide da lei anterior vigente à época. Se a intenção do legislador é, presumidamente, reduzir números e economizar atos processuais, a retroatividade desmedida da exigência de representação para os casos que já estavam em fase de ação penal quando da vigência da lei nova causa justamente o contrário: o surgimento da necessidade de praticar um sem-número de atos processuais — buscas de endereços, intimações, abertura de vistas às partes, conclusão aos julgadores, prolação de decisões — que simplesmente não fazem mais sentido após o início válido da ação penal.
Cite-se, inclusive, a existência de outras dificuldades de ordem prática que decorrem da aplicação retroativa da exigência da representação para os casos com denúncia já oferecida quando da entrada em vigor da nova lei: Qual será o termo inicial para apresentação da representação? O prazo legal “geral” de 6 (seis) meses para exercício da representação não exige intimação prévia da vítima; no caso em comento, exigir-se-á ou contar-se-á o prazo a partir da entrada em vigência da nova Lei? Qual será o prazo a partir do termo inicial estabelecido?
Sobre isso, o posicionamento pela retroatividade da exigência da representação às ações penais em curso — atualmente esposado pela 2.ª Turma do STF — entendeu pela aplicação analógica do art. 91 da lei 9.099, de 19954, conforme o qual o ofendido e/ou seu representante devem ser intimados para manifestação em 30 (trinta) dias, sob pena de decadência. Tal solução, contudo, cria mais problemas que resolve. Afinal, não havendo expressa previsão legal de termo inicial para a contagem do prazo decadencial, o único termo inicial válido seria a data em que o ofendido ou seu representante legal toma conhecimento da autoria da infração (art. 38, CPP). Nesse caso, o estabelecimento de um termo inicial posterior — e possivelmente posterior ao decurso de seis meses da data em que o ofendido veio a saber quem foi o autor da infração — dilata o prazo decadencial para data posterior àquela que seria em se aplicando a regra geral do processo penal. Paradoxalmente, tratar-se-ia de analogia in malam partem, e não in bonam partem, como defendem segmentos da doutrina e da jurisprudência.
Por fim, a situação ora discutida parece diferir consideravelmente da discussão a respeito da aplicabilidade retroativa do acordo de não persecução penal. Enquanto esse instrumento prevê diversas consequências de natureza eminentemente material — como a exigência de confissão, necessidade de reparação do dano causado e até aplicação de penas restritivas de direitos —, a exigência de representação trata de mera condição processual de procedibilidade, com efeitos materiais reflexos, e cuja ratio se esgota quando já instaurada validamente a ação penal.
Como se vê, diante da evidente previsibilidade de alcance de fatos praticados anteriormente à vigência da nova regra, andou mal o legislador a não estabelecer, de forma clara, uma regra de transição, da forma como feito na lei 9.099, de 1995. A solução ora apresentada, de impossibilidade de alcance dos fatos já denunciados, somente resolve este problema em parte. Não há segurança jurídica para a persecução penal dos fatos havidos anteriormente à vigência da lei 13.964, de 2019, ainda sem denúncia oferecida.
Considerando que a discussão ainda se encontra “aberta”, é importante levar em conta todas essas questões antes da formação de uma solução definitiva. A fim de evitar o surgimento de novos problemas advindos da própria solução, parece coerente reconhecer que, nos casos em que houve oferecimento válido de denúncia antes da entrada em vigência da nova lei, a exigência da representação não deverá retroagir.
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1 Ver MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2020. p. 166-169.
2 Ausente, justificadamente, o ministro Joel Ilan Paciornik.
3 Ver MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? São Paulo: Tirant Lo Blanc, 2020. p. 168-169.
4 Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.