A lei 8.666/93 estipula, como forma de resguardar o interesse público, a possibilidade de aplicação de punição pela administração pública aos contratados, quando da ocorrência da inexecução total ou parcial do contrato.
Dentre as punições estabelecidas pela norma, estão a advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a administração pública, além da declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a administração pública. Veja-se:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Note-se, de antemão, que a norma estabelece indiscutivelmente o destinatário da punição: O CONTRATADO! Portanto, a extensão dos efeitos da punição a qualquer outra pessoa, seja física ou jurídica, depende da desconsideração da personalidade jurídica da empresa penalizada, o que somente pode ocorrer nos casos de abuso de personalidade evidenciado.
Trilhando este mesmo caminho, o Colendo Tribunal de Contas da União tem se manifestado, estabelecendo 03 critérios principais para o reconhecimento da existência do abuso de personalidade, quais sejam: a) a completa identidade dos sócios-proprietários; b) a atuação no mesmo ramo de atividades; c) a transferência integral do acervo técnico e humano. Veja-se:
“O abuso da personalidade jurídica evidenciado a partir de fatos como (i) a completa identidade dos sócios-proprietários de empresa sucedida e sucessora, (ii) a atuação no mesmo ramo de atividades e (iii) a transferência integral do acervo técnico e humano de empresa sucedida para a sucessora permitem a desconsideração da personalidade jurídica desta última para estender a ela os efeitos da declaração de inidoneidade aplicada à primeira, já que evidenciado o propósito de dar continuidade às atividades da empresa inidônea, sob nova denominação. (...) No caso vertente, anotou o relator, há “muito mais elementos de convicção acerca da existência de tentativa de burla ao disposto na Lei 8.666/1993 do que a hipótese delineada no acórdão mencionado”. Em seu entendimento, “três características fundamentais permitem configurar a ocorrência de abuso da personalidade jurídica neste caso: a) a completa identidade dos sócios-proprietários; b) a atuação no mesmo ramo de atividades; c) a transferência integral do acervo técnico e humano”. Prosseguindo, anotou que, embora a legislação civil garanta às pessoas jurídicas existência distinta da de seus donos, “tal proteção não abrange os casos de abuso, a exemplo de simulações que operam à margem da lei, como a aqui examinada”. Nesses termos, considerando que os elementos colhidos em contraditório não foram capazes de afastar “os indícios de que a incorporação foi realizada exclusivamente com o intuito de possibilitar a supressão da pena administrativa anteriormente aplicada”, o Plenário acolheu a proposta do relator, julgando procedente a Denúncia e cientificando os órgãos competentes de que a declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública imposta à incorporada se estende à empresa incorporadora”.
Acórdão 1831/2014- Plenário, TC 022.685/2013-8, relator Ministro José Múcio Monteiro, 9.7.2014.
Assim, para eventual extensão da penalidade imposta de uma empresa para outras, que detenham personalidade jurídica própria e distintas conforme entendimentos havidos, devem ser avaliadas as circunstâncias, os fatos concretos e os indícios de que houve a criação ou uso pessoa jurídica exclusivamente com o intuito de possibilitar a burla da pena administrativa anteriormente aplicada, observado o devido processo legal.
Havendo elementos suficientes da referida fraude, hipoteticamente, segundo entendimentos existentes, a Administração Pública poderia desconsiderar a personalidade jurídica e estender a sanção de impedimento de licitar e contratar à outra empresa que se beneficia indevidamente.
O Superior Tribunal de Justiça referendou a extensão dos efeitos da penalidade administrativa de proibição de licitar e contratar à empresa constituída ulteriormente com o propósito de fraudar a lei, conforme se depreende da ementa do julgamento proferido no RMS 15.166-BA:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS. - A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída. - A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. - Recurso a que se nega provimento.”
(RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262)
Vale ressaltar que o eminente doutrinador Marçal Justen Filho[1] apresenta posicionamento similar, conforme exposto abaixo:
“Tema que tem merecido pequena atenção no âmbito da contratação administrativa é o da desconsideração da pessoa jurídica (...). Trata-se de doutrina desenvolvida no âmbito do direito comparado, destinada a reprimir a utilização fraudulenta de pessoas jurídicas. Não se trata de ignorar a distinção entre a pessoa da sociedade e a de seus sócios, que era formalmente consagrada pelo art. 20 do Código Civil/1916. Quando a pessoa jurídica for a via para realização da fraude, admite-se a possibilidade de superar-se sua existência. Essa questão é delicada, mas está sendo enfrentada em todos os ramos do Direito. Nada impede sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo, desde que adotadas as cautelas cabíveis e adequadas. Não se admite que se pretenda ignorar a barreira da personalidade jurídica sempre que tal se revele inconveniente para a Administração. A desconsideração da personalidade societária pressupõe a utilização ilegal, abusiva e contrária às boas práticas da vida empresarial. E a desconsideração deve ser precedida de processo administrativo específico, em que sejam assegurados a ampla defesa e o contraditório a todos os interessados”.
Portanto, sob esse aspecto, o Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF passou a emitir um alerta informando quando empresas com identidade de sócios recebiam punição baseada no art. 87, da Lei de Licitações.
Infere-se, pois, que o objetivo do alerta desenvolvido não fora uma extensão objetiva de punição aplicada à pessoa jurídica distinta, que possuía sócios comuns. Muito pelo contrário, o intuito foi chamar a atenção dos gestores para averiguarem, após o aviso dado pelo sistema, se tratava-se de uma burla à penalidade imposta, caracterizando o abuso de personalidade jurídica.
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1 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários a lei de licitações e contratos administrativos. 12ª edição. Dialética:São Paulo, 2008. p.765.