A Ordem dos Advogados do Brasil seção São Paulo lançou o 1° CENSO para a advocacia paulista. Com a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD e sua entrada em vigor para seus princípios basilares, a partir de 20 de agosto de 2020, elaborar uma pesquisa deixou de ser meramente criar um questionário e enviar ao público-alvo, pois, de acordo com o artigo 6° da aludida lei, há a necessidade de explicação clara sobre as perguntas e qual o objetivo pretendido, tanto do questionário, quanto das questões em si.
No caso do CENSO 2020 da OAB/SP, em que pese o pioneirismo e a inovadora iniciativa, resta claro que há flagrante descumprimento aos preceitos contidos na LGPD, como dúvidas acerca da anonimicidade, transparência e a proteção dos dados, como também, outros elementos que precisam ser analisados: os vícios, desconhecimentos e preconceitos daqueles que elaboraram tal questionário e não respeitaram as particularidades e necessidades dos mais variados grupos que compõe a advocacia bandeirante tais como: mulheres, negros, LGBTQIA+, jovens e idosos. Ademais, há a falha de não conter nenhum questionamento acerca das condições da advocacia paulista durante a pandemia do COVID-19, como se esta não fosse relevante à realidade das estagiárias, estagiários, advogadas e advogados.
A pandemia que trouxe reflexos no cotidiano das pessoas e modificação econômica, social e laboral, será que não deveria estar inclusa no questionário a fim de compreender as novas e atualizadas demandas da advocacia bandeirante? Ao ver de seus criadores, não é uma das prioridades.
Outro grave problema está na metodologia utilizada, afinal, qual é o objetivo precípuo do CENSO? A análise seria etnográfica, sociológica, sociográfica, socioeconômica, qualitativa ou quantitativa? E quais serão as consequências? Como metrificar os resultados? Quais serão os critérios para analisar os dados? Como serão certificados? Quais comissões estarão envolvidas? Haverá percepção social? O objetivo é liderar a classe e buscar melhorias e alternativas aos problemas para os variados segmentos? Para nenhuma dessas perguntas há qualquer resposta na exposição de motivos da secional paulista.
Na esteira do que demonstramos nos artigos anteriores ao analisar a relevância do CENSO para as mulheres advogadas, os advogados idosos, a advocacia LGBTQIA+, agora, traremos as questões relacionadas ao exercício da advocacia por advogados negros e negras.
Em nosso entendimento saber quantos inscritos nos quadros da advocacia são negros é importante, já que, atualmente, o número é absolutamente desconhecido.
A OAB secional de São Paulo lança seu primeiro Censo em 14 de dezembro de 2020, a fim de identificar quais as carências da advocacia bandeirante e como melhorar a prestação de serviços.
No entanto, seu interesse na questão racial, resumiu-se em encontrar um quantitativo de brancos, amarelos, indígenas, pardos e negros. Sem se aprofundar com relação a eventual dificuldade enfrentada pelos advogados inscritos em seu quadro, em razão de sua raça ou cor.
Em que pese a necessidade de se saber estatisticamente quantas advogadas e advogados negros temos no Estado de São Paulo, ainda mais após a decisão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ter decidido que nas próximas eleições das secionais – em São Paulo na segunda quinzena de novembro de 2021 – há a obrigatoriedade de 30% dos membros da chapa serem negros, entendemos é que se perdeu uma oportunidade de se atender da maneira que se digna a Ordem dos Advogados do Brasil, o seu quadro de inscritos, sobre quem tem a obrigação legal e moral de zelar pelo exercício pleno e digno da advocacia.
Desta forma, ao suprimir fatores tão importantes sobre as reais demandas dos seus inscritos, a questão que se coloca é: será que o interesse do CENSO da OAB/SP é somente saber se haverão participantes para as chapas eleitorais (como se o interesse fosse meramente quantitativo) ou, além disso: quantificar, e catalogar seus inscritos de acordo com sua raça e cor? Sabendo-se dela, não há mais interesse em saber se há demandas em razão destas, especialmente em saber se nossa nobre profissão tem sofrido com algum tipo de exclusão ou dificuldade em razão de raça, cor ou sexo?
Ora, será que a demanda da advocacia, no que tange a identificação da etnia, é unicamente saber se uma pessoa é branca, preta, amarela, parda ou indígena como menciona o CENSO? Apesar de haver outros elementos que podem ser cruzados com a cor da pele como a formação acadêmica, idade, renda mensal e a relação no exercício da advocacia será que haverá verificação a fim de implementar políticas públicas?
Afinal, será possível saber, se a metodologia do CENSO for clara, o que não o é, qual a percentagem de negros na advocacia, qual a renda média, a escolaridade e, especialmente, a participação deles nos escritórios e na relação de comando. Porém, questões críticas como o preconceito no exercício regular da advocacia seja no Judiciário, no serviço público, ou em delegacias e repartições públicas não foram contempladas no CENSO da advocacia paulista. Será que seria o caso de ter incluído?
Conhecendo a sociedade brasileira, o ambiente jurídico e, infelizmente, tendo ciência dos abusos regulares sofridos por nossos colegas no exercício da função, e aqui inclui-se: racismo, sexismo, etarismo e o abuso de poder, não é possível que não interesse à nossa Ordem, ouvir as demandas e angústias dos seus inscritos. E se não interessa, só nos resta supor que sobre estes temas não há propostas de atendimento.
O fato é que os problemas da sociedade civil podem ser repetidos na realidade do exercício do direito, como o preconceito, a discriminação, o racismo estrutural, dentre outros. E ter metodologia que consiga, minimamente, identificar como a OAB/SP pode atuar para mitigar essas desigualdades parece essencial no caminho da inclusão e da diversidade na advocacia.
O CENSO ainda falha em não buscar conhecer o ambiente de trabalho de seus inscritos, não há uma estatística sobre quantos estão locados em escritórios próprios ou na qualidade de empregados, quantos desses escritórios empregam advogados e advogadas negros, se há diversidade no seu quadro de funcionários, além de conhecer se contemplam departamentos com demandas específicas ou coligadas.
Fica claro, portanto, que a OAB/SP desconhece, e não se interessa em conhecer as necessidades e reivindicações dos advogados, em especial das demandas específicas dos advogados e advogadas negros, e como o sistema, incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil, os tem atendido.
Como então poderia interceder para fazer cessar o preconceito e a discriminação? Não há sequer uma única e singela abordagem que contemple qualquer uma das indagações acima.
Quais as consequências da pandemia para a advocacia? Se há algum reflexo específico para as negras e negros?
Fora todas essas questões que foram colocadas e estão silentes, o mais importante que tem de ser debatido é o que fazer com os dados obtidos a partir do CENSO. Afinal, o presidente da secional paulista contratará mais funcionários negros? Terá negros nos cargos de comando? Abrirá espaço para capacitação? Quais políticas públicas serão aplicadas a fim de trabalhar contra as estruturas excludentes?
Sejam estas motivadas pela raça ou cor, ou também pelo abismo social que afeta também a nossa classe. Há projeto que persiga a inclusão de colegas com formação fora da bolha da elite intelectual brasileira para estágios e empregos em ambientes qualificados para contribuir com sua formação profissional? Ou algum projeto que vise a inspeção ou controle de abertura de novas faculdades de Direito que não prossigam padrões de excelência na formação de seus acadêmicos de direito?
Ao mesmo tempo a formação profissional do estudante na busca para o estágio quebrará a “bolha” de ter de estudar em uma das quatro principais faculdades de direito para se viabilizar em estágios qualificados? Como lidar com esse preconceito e preferência na formação acadêmica? Fato este que pode macular a carreira do futuro causídico se for proveniente de uma faculdade não considerada como de referência.
Como equacionar o déficit do ensino público para os menos favorecidos economicamente e, ao mesmo tempo, propiciar um ensino superior de qualidade? O Brasil prima negativamente pela desigualdade social e o reflexo está na formação acadêmica e na relação com os empregos e a qualificação profissional. Atualmente 25% da população jovem – entre 18 e 24 anos – está desempregada, dentre outros motivos, por falhas na sua formação educacional. Claramente há um problema na educação brasileira que se estende para o ensino superior e o direito é apenas um desses setores.
Como incentivar a presença assertiva das negras e negros na advocacia e, mais do que isso, que eles tenham acesso a bons estágios e, posteriormente, colocação em escritórios de advocacia de referência para estarem aptos a exercer cargos de liderança?
A questão precípua é que o líder da advocacia paulista tem a árdua missão de equacionar essas indagações e alinhar políticas públicas para mitigar o tema. Do contrário, o CENSO não terá cumprido com seu papel de indicador das realidades e problemas da advocacia e, mais do que isso, se o presidente nada fizer, a inovação e a iniciativa decorrentes do CENSO igualmente estarão comprometidas e desperdiçadas.
E, finalmente, será que o CENSO paulista irá cumprir com o objetivo que se propõe de analisar e demonstrar estatisticamente a realidade da advocacia bandeirante e suas dificuldades? Ou será que o pretendido será apenas e tão somente uma pesquisa voltada para o marketing, isto é, ser um instrumento para a formação de um catálogo de vendas que será instituído de acordo e consonância com as necessidades apuradas no próprio CENSO? Se esta for a resposta se perderá a oportunidade de se ter nas mãos um real instrumento de transformação social. Todavia, para que tal intento se concretize necessário será ter coragem, liderança e iniciativa para atender as demandas da advocacia paulista, será que o presidente da maior secional do país está à altura do desafio?