Migalhas de Peso

Os contratos eletrônicos, os smart contracts e a inteligência artificial

Novos rumos da teoria geral do contrato.

18/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A evolução tecnológica vem trazendo novidades na seara dos contratos, como aqueles dito eletrônicos e dos smart contracts, devendo se verificar, em uma abordagem não aprofundada, dadas as limitações deste texto, o que são e como se acomodam na teoria geral do contrato. Trata-se aqui se um ensaio, sujeito a revisão futura, dentro de um processo de aprendizado contínuo.

Os contratos eletrônicos são aqueles celebrados no ambiente da internet, no mais das vezes em operações configuradas como relações de consumo, que não fazem parte das preocupações específicas deste texto, como já foi dito acima.

Quanto aos contratos eletrônicos, tem sido buscada uma classificação desses contratos que possa abrangê-los na sua individualidade, da seguinte forma: (i) interpessoais; (ii) interativos; e (iii) inter sistêmicos.

Os contratos interpessoais seriam aqueles nos quais pessoas naturais e/ou jurídicas interagem entre si, dando-se a manifestação da vontade por via eletrônica (e-mail, aplicativos de mensagens, "chats", etc.).

Os contratos interativos corresponderiam àqueles em relação aos quais uma pessoa interage com um sistema e adere às convenções previamente determinadas pelo fornecedor.

Por sua vez, nos contratos inter sistêmicos, trata-se de um sistema interage com outro, discutindo-se a natureza jurídica dessa operação, se é que ela existe. Isto porque é altamente discutível reconhecer e atribuir a um desses sistemas uma vontade que se expresse de forma autônoma e livre, em manifestações próprias dos sujeitos de direito. Explicações a respeito poderiam estar fundadas no instituto do mandato ou da gestão de negócios.

No primeiro caso seriam dados ao mandatário poderes para agir em nome do mandante, dentro de limites previamente estabelecidos, os quais podem ser bastante amplos. Tais poderes integrariam o algoritmo do sistema, que passaria a exercê-los a bem do interesse do mandante. Diversas questões se apresentam para a aceitação desse entendimento, na medida em que o mandatário (o sistema) não é sujeito de direitos, apto a receber poderes da espécie.  Então, ao invés de mandatário, o sistema seria uma ferramenta tecnológica a serviço do agente, a qual atuaria como se fosse ele mesmo, apenas aparentemente despersonalizada. Mas o assunto encontra-se inteiramente em aberto.

Quanto à gestão de negócios, não seria esse instituto idôneo para explicar tais sistemas, em princípio, porque ela surgiria de uma atuação não autorizada do beneficiário, que é o dono do negócio. Pelo que se sabe, não há sistemas que saiam por aí para realizar negócios em tais condições. Isto significa dizer que o direito deverá debruçar-se sobre o fenômeno das tecnologias inteligentes para o fim de agasalhá-las em seu seio.

Um dos pontos que importam para a teoria geral do contrato é saber se os contratos eletrônicos são celebrados entre presentes ou à distância (entre ausentes) para o fim da identificação do direito aplicável.  Vejam-se as discussões que se dão em um ambiente em tese presencial como é o do Skype e das lives via WhatsApp, pelo recurso ao Zoom, por exemplo, que proliferaram com grande velocidade como efeito da pandemia do covid-19. Nesse sentido, as tratativas se desenvolvem de forma verbal e visual e em alguns casos a proposta e a aceitação se dão no momento final daquelas, por meio de declaração verbal, confirmadas ou não depois por um e-mail ou mensagem escrita dentro do próprio veículo.

Os contratos eletrônicos propriamente ditos seriam negociados pelo acesso a sítios da internet, seja diretamente, seja como marketplaces. Os primeiros vendem em seu próprio nome e, evidentemente, sob a sua própria responsabilidade. Os segundos operam por meio de uma aproximação feita entre o marketplace e as partes (clientes e fornecedores), vindo os primeiros a assumir os riscos da negociação, tanto em favor dos vendedores ou dos prestadores do serviço, como também em favor dos compradores ou dos tomadores dos serviços. Para essa finalidade os contratos que se relacionam, uns de forma direta outros indiretamente, cobrem desde o pagamento até a entrega do bem ou a prestação do serviço.

 Nos sites os fornecedores apresentam as informações mínimas necessárias para a análise do interessado, cuidando-se de operações dirigidas a destinatários indeterminados. Entre as informações a serem disponibilizadas destacam-se a validade da oferta; a disponibilidade do bem; o lugar e prazo da retirada/entrega; as condições de entrega no domicílio do comprador e o preço do frete. Assim sendo, por meio do recurso a clicks sucessivos em seu computador, tablet ou celular, o interessado progride sucessivamente nas tratativas até fechar o negócio, pelo click final, depois de haver optado pela forma de pagamento acessível, condicionada à conclusão do acordo quando da confirmação do pagamento.

Nesse cenário não há qualquer elemento que faça esses contratos eletrônicos destoarem da sua inserção na teoria geral do contrato, muito mais ainda quando eventuais pendências jurídicas nascem e se desenvolvem no ambiente virtual, sem a necessidade de se recorrer a qualquer documento físico. Essas operações se dão tanto no campo das relações de consumo, quanto nas empresariais, aplicável o direito próprio.

Outra coisa diferente em grande medida é a questão dos smart contracts, entre nós chamados de contratos inteligentes. São operações realizadas em ambientes puramente virtuais sem a participação direta de pessoas naturais e sim de computadores dotados de inteligência artificial, chamados no mercado de robôs. O que se poderia dizer em princípio é que o contrato em si não é inteligente, mas sim esse "ser eletrônico" que lhe dá andamento desde as tratativas até a conclusão.

Uma pergunta preliminar, está em saber se já existe na realidade essa inteligência artificial, que funcionaria como uma máquina à qual se daria partida (ligando-se o computador de manhã) e, a partir desse momento ela tomaria a iniciativa de fechar negócios ao seu inteiro alvedrio e, quem sabe, adotar outros parâmetros de conduta negocial que não tenham constado originalmente do seu programa e, dessa forma, assumindo uma personalidade própria das pessoas. Se isso for verdade, qual seria a natureza jurídica da relação entre o criador do robô e esse novo ser dentro do direito? Talvez ela possa ser explicada, conforme se disse acima, como mandato a gestão de negócios ou, ainda, a título de trust puro. Mas, em tal caso, repita-se a pergunta, como se daria a responsabilidade do agente, robô, no caso em que ele fugisse pelos seus atos à configuração original da operação? Seria ele uma pessoa de direito e, assim sendo, qual seria o seu patrimônio, suscetível de sofrer uma medida de indenização por alguém prejudicado?

Como nos parece nenhum teste de Turing até agora tenha detectado a existência efetiva de uma inteligência artificial – mesmo que esses robôs aprendam cada vez mais no dia a dia de sua vida (digamos assim) – devemos concluir que a sua natureza jurídica, se assim podemos dizer, corresponde à de um preposto eletrônico de quem o programou e o colocou no mercado com um nome de identificação qualquer, sempre sem sobrenome, porque ele não tem genealogia1. Mas essa pode não ser a palavra final.

A respeito dessas questões anote-se o que aconteceu um uma experiência do Facebook, que havia desenvolvido chabots2 destinados a aprender e a negociar entre si, tendo sido utilizados para tanto dois robôs, batizados de Alice e Bob3. O objetivo era o de se fazer uma experiência para o fim de monitorar a sua capacidade de negociação. Com o passar do tempo os mecanismos de aprendizagem das duas inteligências artificiais começaram a inventar novas frases, tendo criado uma linguagem fora dos padrões estabelecidos pelos programadores. Os chatbots deveriam aprender entre si como os humanos se comunicam, mas os robôs em dado momento haviam criado uma linguagem própria, mais eficiente que, no entanto, não servia para realizar as negociações que eram a pretensão dos seus criadores.

Não tendo interesse em monitorar o amadurecimento dessa nova forma de linguagem, o Facebook decidiu desligar os robôs.

Em outra experiência o Google criou três robôs, Alice, Bob e Eve, dotados de missões definidas. Alice deveria mandar uma mensagem criptografada para Bob, o qual deveria ser capaz de decodificá-la, de maneira a que Eve não conseguisse espioná-la, o que não havia sido ensinado pelos programadores. O que se observou foi que Alice e Bob desenvolveram seu próprio método de criptografia e se comunicaram de forma totalmente confidencial, secretamente entre eles4

Diante desses cenários, façamos um exercício de imaginação, destacando que os casos acima relatados são de um passado de poucos anos que, em termos de desenvolvimento de inteligências artificiais pode ser considerados como o equivalente ao período cretáceo. Suponhamos dois desses robôs que sejam postos a negociar, ambos programados para a automatização na realização de negócios. Se Alice e Bob foram capazes de enganar Eve, por que Alice não poderia enganar Bob por um sistema de captura, levando-o a concluir um contrato prejudicial à empresa que representa? Ou vice-versa. Ou, em um mundo imaginário de ficção científica, mas nem tanto, ambos poderiam se acumpliciar para dar nascimento a um terceiro empreendimento, locupletando-se em detrimento dos seus dois proprietários? Para esse fim eles poderiam criar uma empresa nova, totalmente regularizada e dotada de administradores até mesmo humanos, se assim entendessem mais adequado.

Do ponto de vista da teoria geral do contrato, diante desse novo mundo, caberá ao direito entender o ente que age no mundo virtual, para o fim de identificar uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica que possa ser considerada titular dos robôs nele atuantes, para o fim do estabelecimento das responsabilidades cabíveis.

Claro que um primeiro problema estará em identificar a presença de uma vontade passível de ser considerada juridicamente consciente, atribuível a um sujeito de direito, que possa dolosamente ter agido em prejuízo da contraparte. Esse é um ponto.

Vamos mais longe ainda. Digamos que Alice ludibriou Bob e este fez um negócio que o prejudicou ou a quem ele representa. O prejudicado ingressa com uma ação em juízo contra o dono do robô. Este alega que o dito robô extravasou os poderes com os quais foi programado, por iniciativa exclusivamente sua, mediante o recurso à inteligência artificial que dentro dele se tornou autônoma e que, portanto, não cabe responsabilidade a ele mesmo, o dono do robô mais esperto do que o outro. Aduziu este em sua defesa que a culpa era do prejudicado, que não inseriu adequados programas de proteção em seu favor, conforme o risco normal de um novo modelo de negócios. 

O caminho clássico de celebração de contratos, como se sabe, está fundado no exercício da autonomia privada, sendo constitucionalmente permitido que pessoas naturais ou jurídicas os celebrem segundo modelos típicos ou inominados, de forma a que as partes atinjam os objetivos econômicos e jurídicos almejados. Pessoa e vontade são, portanto, elementos essenciais dos contratos e será necessário ao direito eventualmente reconhecer outros tipos de sujeitos e outras formas de manifestação de vontade. Ao fim e ao cabo, se uma inteligência artificial puder ser considerada em algum momento do futuro um sujeito de direito, tendo ela um patrimônio, será um processo logicamente simples estabelecer a sua responsabilidade por prejuízos causados a terceiro (mesmo outra inteligência artificial) e fazer recair a condenação patrimonial correspondente. Dano moral seria outra longa história.

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1 Esse teste foi criado por Alan Turing, pesquisador britânico, em artigo de 1950 ("Computing Machinery and Intelligence"), para o fim de aquilatar a capacidade de uma máquina no sentido de apresentar um comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano ou que não possa distimguir-se deste.
2 Tipo de inteligência artificial que pode ser usado para automatização de vendas, entre diversas outras finalidades.
3 Cf. "Facebok desliga inteligência artificial que criou sua própria linguagem", in "Facebook desliga inteligência artificial que criou sua própria linguagem | Downloads | TechTudo", acesso em 14.6.2021.
4 Cf. "Robôs do Google aprendem a se comunicar – secretamente – entre si", por Bruno Garattoni, 21.12.2016, acesso em 14.6.2021.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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