A quarta turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em recente julgamento concluído em abril de 2021, entendeu, por maioria de votos, em negar provimento ao RE 1819075/RS, decidindo em linhas gerais que "existindo na convenção de condomínio regra impondo destinação apenas residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares para outras finalidades que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela residencial". O voto vencedor e não unânime do Ministro Raul Araújo concluiu que no caso concreto a conduta fática daquele processo deveria ser enquadrada como contrato atípico de hospedagem e não como locação de curta temporada. Considerou-se, também no caso concreto, que a convenção de condomínio poderia limitar o direito de propriedade em situações pontuais onde fosse constatada a violação dos direitos de vizinhança e coletivos.
Não obstante o voto vencido proferido pelo ministro Luis Felipe Salomão em sentido diametralmente oposto ao acórdão e a existência de recursos ainda pendentes de julgamento, gostaríamos de contribuir com o acirrado debate com as seguintes provocações: (i) qual o papel do Poder Judiciário na regulação da economia de compartilhamento?; (ii) o caso concreto seria representativo por si só para gerar um precedente para parâmetros comportamentais de utilização da economia de compartilhamento? e (iii) existem limites à convenção de condomínio? Em caso positivo, quais seriam esses limites?
A globalização, facilidades de mobilidade e de comunicação, alteraram radicalmente a dinâmica da produção econômica mundial. Além disso, a nova realidade trazida pela pandemia de covid-19 e a repetição do slogan clássico de prestígio ao isolamento social "fique em casa" nos impõe necessariamente a construção de uma nova relação para utilização de nossos próprios domicílios. As concepções tradicionais de domicílio "residencial" e domicílio "comercial" nunca se mostraram tão desnecessárias e até obsoletas. Se há hoje uma inevitável evolução da chamada economia de compartilhamento, nada mais justo do que tentar transformar nossas residências em ativos econômicos; até por uma questão de sobrevivência. A questão é tão sensível e óbiva que basta lembrarmos que o Facebook funcionou na garagem de seu criador por cerca de dois anos antes de se tornar uma das maiores empresas do mundo.
Imaginemos as seguintes hipóteses: um chefe de cozinha que resolve receber 2 casais em sua casa e proporciona um jantar pago customizado. Ou, ainda, um professor de Yoga que passa a atender um número restrito de clientes em sua casa ou até um advogado que atende seus clientes em seu apartamento. Tratam-se de cenas absolutamente contemporâneas e algumas delas não disciplinadas por lei. O que deve fazer o Poder Judiciário diante de hard cases que advenham dessas situações? No nosso sentir, desde que não haja excessos ao interesse coletivo e aos direitos de vizinhança, o Judiciário deveria sim prestigiar o emprego econômico do bem imóvel. Diante da boa conduta social e adequada de todos, não cabe à convenção de condomínio restringir essa utilização.
Igualmente, não nos parece adequado utilizar esse julgamento como precedente para outros casos que tratam de utilização de unidades residenciais sob a ótica da economia de compartilhamento, especialmente as locações pontuais e mais informais como as que são oferecidas por plataformas, como por exemplo o Airbnb. O carreamento de provas no caso concreto que ensejou o RE 1819075/RS, recentemente julgado, nos leva a crer que, exclusivamente naquela hipótese, possa ter ocorrido uma utilização desmedida e excessiva da unidade residencial. No caso concreto, as provas demonstram que os chamados "anfitriões" realizaram mudanças significativas na estrutura do imóvel, transformando-o em um "hostel", com grande fluxo de pessoas. Além disso, há provas e elementos que demonstram, também, que os proprietários também ofereciam a terceiros a realização de serviços de lavanderia, o que gerou em efetivo desconforto entre os demais moradores do condomínio. Bem por isso, o julgamento desse caso específico pelo STJ não nos permite afirmar que em todos os casos de locação residencial de curta duração firmados via plataformas digitais causem "perturbação do espaço residencial e insegurança dos demais condomínos".
Além disso, não nos parece legítima, constitucional e legal qualquer vedação injustificada, mesmo que prevista em convenção de condomínio, que importe em limitação arbitrária ao exercício pleno ao direito de propriedade e à liberdade econômica, o que é devidamente tratado e regulado pelos artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil. A convenção de condomínio, ainda que pela lei tenha caráter de força normativa (artigos 1.333 e 1.334 do Código Civil) deve, portanto, ser interpretada à luz da Constituição e às finalidades sociais e econômicas da propriedade.
O papel dos Tribunais Superiores é muito maior do que simplesmente fiscalizar a aplicação da lei e dos conceitos jurídicos ao caso concreto. É irrelevante, a nosso sentir, a tentativa de enquadramento desse caso julgado como um caso de locação residencial (por temporada) ou de locação comercial. Ao tentar fazer isso, nosso Judiciário pretende montar um quebra cabeça com peças estranhas à sua composição.
O que se julgou no caso concreto não foi o simples enquadramento técnico e jurídico da situação, mas sim o fato de que os proprietários usaram inadequadamente o seu imóvel, e causaram grande desconforto/riscos aos demais condôminos, gerando grande circulação de pessoas estranhas no condomínio. Essa foi, inclusive, parte relevante tratada pelo voto vencedor.
Estamos diante de um contrato atípico e novo. Esse tipo de sitação jurídica será cada vez mais comum e é inevitável aceitarmos essa condição do ponto de vista de enquadramento da nossa economia como uma economia moderna e globalizada. A lei, muitas vezes obsoleta, não definirá o que somos. As convenções de condomínio devem regular simplesmente regras de conduta e de bom convívio coletivo, mas nunca limitar o direito de propriedade de uma forma ampla.
Fica o alerta, portanto, para que esse recente julgado não venha a contaminar de forma inconsequente outras tantas milhares de relações jurídicas e negócios gerados pelas plataformas digitais. A economia compartilhada é uma boa realidade e não cabe ao judiciário frear a sua evolução.