Nos últimos dias ganhou grande repercussão no meio jurídico o caso de Diane Valentina - doravante apenas chamada de Valentina para não causar ainda mais danos à sua integridade. Valentina é uma criança de 4 anos que conseguiu a tutela para ter seu nome retificado (extirpando-se o prenome “Diane”), conforme acórdão do Resp nº 1.905.614 - SP, após o seu pai, que teve apenas um breve namoro com sua mãe, ter registrado o nome da criança fazendo alusão direta ao contraceptivo que a mãe tomava no período em que mantinha relações sexuais com este.
O que se vê, do exposto, é que a colocação do prenome “Diane” serviu tão somente como modo de chacota, de modo a questionar a mãe pela ineficácia do mecanismo preventivo que nada preveniu na concepção da infante. Ou seja, em nenhum momento houve o consenso dos genitores para que o nome da criança fosse Diane, sendo certo que dos autos ficou comprovado que o nome que seria atribuído à criança era apenas Valentina.
Partindo ao acórdão propriamente dito, ficou estampado que não é importante analisar a motivação do pai, pois o ato por si próprio já se configura ilícito pela simples quebra do consenso entre as partes quanto ao nome da prole. Isso significa que, mesmo se o pai não estivesse de má-fé, mas quebrasse o consenso atingido com a mãe, seria motivação suficiente para a retificação do registro.
A grande celeuma se dá porque, acaso interpretado o art. 55, parágrafo único, da lei de Registros Públicos, através de uma ótica puramente tecnicista, sem levar em conta o que levou o agente a proceder de tal maneira, de fato não se teria como exigir qualquer conduta do oficial que deu seguimento ao registro, visto que este não havia como ter conhecimento das motivações do genitor, e o nome “Diane Valentina” por si não aparenta expor a recém-nascida ao ridículo. Logo, não haveria o que se falar em desrespeito ao disposto na legislação.
Corroborando com o acima exposto, vejamos a redação do referido art. 55, parágrafo único:
“Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.”
Por isso que se propõe aqui a ênfase não somente na atitude, mas também no que buscava o pai da criança com isso. Assim, ainda que o fator motivador da conduta do pai seja apenas moralmente reprovável para os olhos de alguns (como realmente o é - na medida em que nas outras duas instâncias em que tramitou o pai teve ganho na causa), tal fato tem relação com o tipo de sociedade em que vivemos, uma vez que, se interpretada a questão perante os aspectos sociais do contexto em que vivemos, vemos apenas o reflexo repugnante de uma sociedade alicerçada em valores patriarcais e de superioridade masculina. Nada de novo em terrae brasilis.
Veja-se que a conduta é tão abjeta que também é juridicamente reprovável se interpretada pela perspectiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos da criança. Nessa senda, ressalta-se a noção de dignidade da pessoa humana sugerida por Kant, que transmite a ideia de que o ser humano deve ser visto como fim e não meio para algo. Logo, a atitude do pai, de utilizar-se do nome da criança como um meio para se vingar da genitora pela gravidez indesejada, rompe com esse conceito e noção de dignidade tão bem preconizada pela Constituição da República, pelo Código Civil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não se olvida aqui que o oficial pode se recusar a registrar nome que exponha o portador ao ridículo, mas o nome Diane por si não traz consigo essa pecha de ridículo - é o contexto que integra esse sentido. Então não há como se atribuir eventual responsabilidade ao registrador, o que não significa dizer que a conduta do pai é menos repugnante ou lesiva para a criança.
Ora, imagine a situação em que a criança, em sua fase infanto juvenil (que é responsável por moldar parte de quem você é e suas percepções do mundo) se depare com o questionamento acerca da origem de seu nome, quais impactos tal cenário causaria à imagem que a criança tem de si ou até mesmo da relação que a gerou? Resta evidente que o nome escolhido pelo pai fere a integridade moral da criança, também de forma objetiva (perante terceiros) mas, principalmente, de forma a atingir sua honra subjetiva, como bem destacado pela Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão:
“O direito ao nome, assim compreendido como o prenome e o patronímico, é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, uma vez que diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si mesmo, mas também no ambiente familiar e perante a sociedade em que vive.”
Nesse diapasão, a atitude do genitor em utilizar-se do nome da criança de forma jocosa, claramente fere a integridade moral de Valentina. Evidentemente, pois o nome está intrinsecamente ligado aos direitos da personalidade, tanto em seu aspecto individual quanto público, sendo certo que o nome representa uma forma crucial e primária de identificação, sendo, inclusive, objeto da primeira indagação quando conhecemos uma pessoa nova.
Acerca do nome, o art. 16 do Código Civil dispõe que “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”. Entendemos que, dentro dessa disposição, exista uma cláusula tácita protegendo a pessoa de ter o próprio nome usado como forma de martírio psíquico-social, principalmente, quando tal martírio advém da quebra do consenso na escolha deste.
No que tange propriamente à conduta do pai, esta reflete-se como puro abuso de direito, uma vez que para o ordenamento civil vigente também se considera como ato ilícito o ato em que o titular de um direito excede seus fins usuais (sociais ou econômicos), a boa-fé ou os bons costumes, de acordo com o art. 187 do Código Civil, como podemos verificar:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Ainda, a escolha do nome da prole considera-se como ato bilateral e consensual, nos termos do art. 1.634 do Código Civil, isso pois entende-se que a escolha do nome faz parte do exercício do poder familiar, este que compete a ambos os pais, independentemente de sua situação conjugal. Ou seja, o poder familiar não compete só ao pai, sendo por isso incorreto referir-se a tal poder com a vetusta forma pátrio poder.
Outro apontamento importante a se fazer aqui é o da importância do princípio do duplo grau de jurisdição, este oriundo do princípio do devido processo legal, e da ampla defesa, que permite às partes uma nova apreciação daquilo que se pleiteia em sede jurisdicional, desde que preenchidos os requisitos recursais para tal. Tal princípio, se mostra de extrema importância no presente contexto, pois foi através da possibilidade de, no caso, dois recursos (a apelação e o recurso especial), que foi possível finalmente que se findasse a lesão. Veja-se, a despeito de a violação ao direito de Valentina ser mais que escancarada, só foi alcançada a Justiça através do julgamento do recurso pelo Superior Tribunal de Justiça, no exercício da competência especial.
Em contrapartida, frise-se a completa desatenção ao princípio da duração razoável do processo, expressamente previsto tanto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República, quanto no art. 4º do Código de Processo Civil, isso porque, como bem apontado no próprio recurso especial, o processo tramita desde 2017, tendo a criança enfrentado todo esse contexto de aflição e “batalha”, carga que envolve os conflitos judiciais atualmente no Brasil, para que fosse decidido algo que no mínimo beira à obviedade.
Nesse sentido, destaca-se também que, pela ótica do Estatuto da Criança e do Adolescente, a tônica do procedimento processual deveria de fato ter possuído uma natureza mais célere, pois diante do desgaste emocional e moral sofrido pela criança ao ser utilizada como um mero mecanismo vingativo por seu pai, cabia à tutela jurisdicional e àqueles que a exercem, resguardar o mais rápido possível sua integridade moral e psicológica, em absoluta atenção ao Princípio do Melhor Interesse da Criança, e ao postulado da Doutrina da Proteção Integral. Não bastasse, ainda prevê o art. 17 do referido Estatuto, ipsis litteris:
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”
Em suma, entendemos como correto o julgamento exarado no acórdão, porém destacamos que a fundamentação para tal não abarca somente a quebra do acordo entre os pais, mas também a ofensa à dignidade da criança, bem como sua integridade moral, em decorrência da irresponsabilidade do genitor. Ademais, a inobservância dessas nuances pelas instâncias anteriores - que apenas se calcaram numa visão antiquada do Direito, sem dar concretude à finalidade da norma -, somente obstaculiza a duração razoável do processo e a rápida correção do mal causado à criança, o que não pode ser aceito na terceira década do século XXI.