A presença da inteligência artificial no cotidiano tem sido um fato crescente, sem que haja indícios da diminuição da sua presença nos aparelhos de uso diário (computadores, smartphones, videogames e inclusive em aparelhos domésticos - como os robôs aspiradores de pó). Não é de se estranhar, portanto, que tal proliferação da utilização cause preocupações ao desenvolvimento de estudos que delimitam o impacto de sistemas inteligentes sobre os mais variados ramos do direito, e no presente caso, o direito civil.
Seguindo esse ideal mercadológico, há um aumento significativo do uso de sistemas de inteligência artificial na formação dos contratos eletrônicos, ao qual podem ser definidos como o tipo contratual em que a proposta e a aceitação são realizadas, imprescindivelmente, por meio de uso de sistemas de computador.
Embora seja uma definição simplória, alguns aspectos de relevância na análise desses negócios jurídicos eletrônicos acabam por aprofundar o entendimento doutrinário sobre o tema. Assim, por mais que não haja uma relação específica entre o tipo de contrato e seu conteúdo - seja ele inteiramente negociado pelas partes ou contratos de adesão -, há uma diferença substancial pela forma na qual a vontade é declarada, bem como ocorre a execução das obrigações após a contratação.
Nesse sentido, entre os primeiros contratos eletrônicos que surgiram historicamente, estão o click-wrap e o browse-wrap, entendidos como similares aos contratos de adesão. Em suma, nesse tipo de negócio, o contratante adere aos termos contratuais que lhe são apresentados como condições básicas para instalar algum programa ou software ou ter acesso a determinados tipos de serviços. É algo extremamente aplicado nos dias atuais, em que a utilização de computadores é imprescindível e todas as cláusulas contratuais são apresentadas, em uma única tela, para o contratante-aderente. Com isso, aquele que concorda com os termos informados realiza a aceitação com apenas um clique e a execução é automática, liberando acesso ao serviço pretendido.
Em sequência, há uma crescente utilização de aplicação de contratos eletrônicos em que as partes estipulam as normas igualmente. Esse tipo de caso pode ser verificado em várias instâncias, sendo elas das mais simples, como prestação de serviço a distância, em que as partes conversam eletronicamente e igualmente formam o contrato sem nunca estarem juntos presencialmente; até os modelos mais complexos em que programas de inteligência artificial são embutidos com uma rede neural com capacidade de redigir contratos com apenas poucos comandos.
Nesse último caso, podemos apresentar como exemplo a Inteligência Artificial conhecida como GPT-3, desenvolvida pela empresa OpenAI, que, com base em machine learning e um conhecimento de 45 Terabytes de textos¹, possui a capacidade de escrever uma grande gama de gêneros textuais com extrema verossimilhança a qualquer trabalho apresentado por um humano².
Há, ainda, dentro do grupo de contratos eletrônicos em que as partes são capazes de estabelecer os seus parâmetros, o tipo contratual que vem ditando uma nova forma de transacionar bens em mercado e promete atender às novas dinâmicas comerciais: o smart contract ou contrato inteligente. Essa forma contratual, em suma, representa um conjunto de obrigações definidas pelas partes em forma de software, incluindo protocolos dentro das quais os contratantes pactuam vinculando entre si à execução dos efeitos predefinidos que estão armazenados em uma plataforma.
Em outras palavras, é um mecanismo de efetivação das prestações materiais de um contrato qualquer, inscrito em um código computacional pré-programado e estruturado de tal modo que a sua execução se dê de forma automática assim que ocorre a verificação de determinadas condições preestabelecidas. Tais contratos são insertos em uma rede de blockchain extremamente segura, com algoritmos avançados e com uma grande apuração técnica, permitindo a automatização da execução da prestação, impedindo que o devedor simplesmente não realize a sua parte na relação contratual.
Um importante - e extremamente atual - exemplo da aplicação comercial dos smarts contracts em rede blockchain é a criação e popularização do Non-Fongible Token (NFT). Em forma simples, os NFTs são uma espécie de certificado digital, estabelecido via blockchain, que define a originalidade e exclusividade de bens digitais. Em tese, seguindo a doutrina clássica, os bens digitais (músicas, fotos, vídeos, mensagens, postagens, artes e etc) que existem em forma eletrônica são bens fungíveis, uma vez que podem ser substituídos por outro de mesma espécie, qualidade e quantidade pela grande facilidade que é fazer cópias desses tipos de arquivos. Assim, ao atrelar um token a qualquer tipo de item digital esse se torna algo infugível, uma vez que é o único existente que detém aquela certificação.
A título de exemplo da aplicação e dos mecanismos do NFTs, considere o presente caso real: no começo do mês de março, um artista digital chamado Beeple criou uma arte denominada “Everydays: The First 5.000 days” que é uma montagem de todas as artes digitais que ele já desenvolveu ao longo de mais de uma década de carreira. Assim, ele registrou essa arte como algo não fungível, incluindo ela na rede blockchain e inserindo um token específico e único a essa obra. Tal arte digital foi, posteriormente, leiloada por 69 milhões de dólares na prestigiada casa de leilões Christie’s.
Toda essa transação foi, portanto, realizada por meio da rede blockchain e via smarts contracts. Assim, o contrato é colocado dentro de uma cadeia de blocos, que é a via blockchain, que são trancados por uma camada de criptografia. Tão logo é confirmada a compra, tudo é executado automaticamente: o dinheiro sai da conta vinculada do comprador diretamente para a do artista, assim com o token e a arte são transferidas para a posse do comprador pelo vendedor.
Como se vê, portanto, os contratos inteligentes seguem quatro passos para o seu correto adimplemento. Em primeiro lugar, as partes concordam nos termos que foram propostos no contrato. Na sequência, o acordo é incluído na rede blockchain, juntamente com as informações de conta bancária (e, principalmente, de uma carteira de criptomoedas), que é assegurada por uma extensa camada de criptografia. Em terceiro lugar, ocorre a auto-execução do contrato, ou seja, o smart contract recebe a informação de que as obrigações constituídas nas suas cláusulas foram adimplidas e o comando para a execução das consequências é gerado, liberando o dinheiro diretamente entre as contas vinculadas entre as partes. Por fim, é liberado um relatório dos dados da transação, sendo que o contrato em si muitas vezes é de caráter público.
A rede blockchain e os smarts contracts podem ser utilizadas com as mais diversas aplicações, com o poder de mudar radicalmente alguns aspectos puramente burocráticos e facilitar a troca em mercado. Um grande exemplo disso é o comunicado, por meio da IBM e da IPwe - duas grandes empresas do ramo tecnológico -, de que iriam começar a disponibilizar patentes corporativas por meio dos NFTs. Assim, a inserção desse token na propriedade intelectual promete uma facilitação na venda, negociação e comercialização das patentes, tornando mais fácil e menos burocrático negociar os seus usos.
A tecnologia aplicada nesses contratos com utilização de inteligência artificial é, como anteriormente apresentado, extremamente revolucionária, principalmente ao considerarmos o conceito de lex cryptographica. Os estudiosos Primavera de Filippi e Aaron Wright, em seu livro Blockchain and the law: the rule of code, foram os pioneiros a falar da capacidade de criar-se sistemas autônomos e sem a regulação estatal por meio dos contratos eletrônicos e, principalmente, das redes blockchain.
Com as blockchains, as pessoas podem construir os seus próprios sistemas de regras pelos smarts contracts. Estes sistemas criam uma ordem sem lei e implementam o que pode ser considerado como um sistema com regulamentação privadas, aos quais eles denominam como lex cryptographica. Esse tipo de tecnologia permite aos seus usuários o poder de criar ferramentas e serviços que evitem as jurisdições estatais, facilitando-os a operar transnacionalmente para coordenar uma série de atividades econômicas e sociais.
Em suma, os autores descrevem que o blockchain não somente detém o potencial de alterar como os sistemas de pagamento, financeiro, comercial, governamental e informacional funcionam, esse tipo de tecnologia igualmente pode proporcionar novos meios de para coordenar as interações sociais e as atividades comerciais de formas que anteriormente não seriam possíveis. Smarts Contracts podem apoiar as organizações (governamentais ou não), por exemplo, utilizando a cadeia blockchain para o sistema de votação e outros sistemas baseados em código e algoritmos para incrementar regras para racionalizar as operações. Ao mesmo tempo, a rede blockchain concede às pessoas novas ferramentas para organizar e coordenar as suas atividades com canais peer-to-peer, com a diminuição da necessidade de interferência de terceiros na relação e, até mesmo, o fim da atuação de autoridades centralizadas. A tecnologia blockchain pode, portanto, melhorar as organizações existentes e, ao mesmo tempo, apoiar novos sistemas que dependem da lex cryptographica para contornar as leis existentes.
Verifica-se, portanto, que as aplicações dos negócios jurídicos eletrônicos, principalmente os contratos inteligentes em rede blockchain, são uma revolução no modo de transacionar em mercado. A facilidade que advém da automatização dos resultados objetivados pelo contrato e a extrema segurança que a criptografia apresenta são, entre outros fatores, grandes chamarizes para as mais diversas aplicações dessa tecnologia. Desta forma, a fundamentação e a forma em que a tecnologia é executada faz com que sua aplicabilidade seja tamanha, podendo ser usada como um facilitador da venda de royalties, de garantir direitos autorais e, até mesmo, facilitar a compra de barras de ouro que estão em um cofre em Cingapura³.
Há uma clara necessidade para que entendamos se tais contratos realizados eletronicamente são válidos e aplicáveis no ordenamento jurídico pátrio. É de suma importância que os juristas estudem sobre as implicações da citada descentralização em nosso sistema legal e mercadológico, uma vez que a crescente utilização desses tipos contratuais para grandes transações é um indicativo que o direito brasileiro deve estar apto a receber e controlar esse novo tipo contratual sem precedentes e sem limites da sua aplicação.
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1. Para efeito de comparação, um livro de 300 páginas tem um tamanho médio de 6.000 KB. Isso equivale a 0,00000558794 TB. Considerando que são 45 TB, há algumas trilhões de páginas de conhecimento textual formando a rede neural da GPT-3. Isso quer dizer que, tendo em vista a velocidade média de um ser humano, levariam entre 50 a 80 mil anos para a leitura de todos esses textos.
2. Em um estudo recentemente apresentado pela equipe de desenvolvimento, ficou comprovado que um pouco menos da metade das pessoas expostas aos textos redigidos pela inteligência artificial desconfiaram que não foi um ser humano o autor de seu texto. O estudo está disponível em Disponível aqui. Acesso em 18 de maio de 2021.
3. As empresas Lohko e Mattereum lançaram NFTs que representam a propriedade de barras de ouro físicas que estão armazenadas em Cingapura, gerenciada pela empresa Bullinstar. Informações. Disponível aqui. Acesso em 28 de maio de 2021.
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COMPAGNUCCI, Marcelo Corrales; FENWICK, Mark; HAAPIO, Helena. Legal Tech, Smart Contracts and Blockchain. Singapore: Springer, 2019.
FILIPPI, Primavera de; WRIGHT, Aaron. Blockchain and the Law: the rule of code. Massachusetts: Harvard University Press, 2018.
SZABO, Nick. Smart contracts: building blocks for digital markets. Extropy, v. 16, p. 1-10, 1996.