Migalhas de Peso

A decadência do Fisco no lançamento do IRPF

Entende-se, assim, que a decadência é regra jurídica pertencente ao direito positivo.

7/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O tempo atua como fato jurídico e é elemento de grande relevância para o direito. Assim, tem influência direta sobre alguns modos de extinção do direito, dos quais se sobressai a decadência, com amparo na própria razão da existência do direito, que é a mantença da paz social e da segurança jurídica. A estabilidade das relações econômicas e sociais demanda certeza jurídica. Assim sendo, não assiste razão, ao menos parcialmente, aos que defendem que a decadência não visa fazer justiça. Os doutrinadores jusnaturalistas podem até não concordar com a decadência, já que defendem que o direito possui a característica da imutabilidade no tempo. Porém, é indubitavelmente justo pacificar situações que se encontram incertas e castigar a inércia de um titular do direito em proveito do interesse social da estabilidade das relações jurídicas. 

Entende-se, assim, que a decadência é regra jurídica pertencente ao direito positivo. Portanto, embora as suas origens remontem às relações de direito entre os particulares, cada campo do direito pode construir as suas próprias particularidades referentes ao tema. Não se está pregando o isolamento de cada ramo do direito, pois se sabe que este é uno e toda norma é parte integrante de um dado sistema jurídico, mas se defende a posição de que o legislador ordinário pode alterar expressamente os institutos jurídicos de um ramo do direito para o outro, desde que respeitada a competência formal e material instituída pelo texto constitucional.

Desse modo, no direito tributário, a decadência ocorre antes da constituição formal do crédito tributário e deve ser conceituada de duas formas: a) a perda do direito de expressamente homologar a atividade realizada pelo sujeito passivo em virtude da inércia da autoridade administrativa durante certo período (art. 150, § 4°); b) perda do direito de constituir formalmente o crédito tributário pelo lançamento em virtude da inércia do seu titular durante certo período (art. 173).

No que concerne a decadência do Fisco no lançamento do imposto de renda de pessoa física (IRPF), chama-se atenção para a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que, no caso de omissão de rendimentos, a contagem do prazo de cinco anos se inicia do primeiro dia do exercício seguinte ao ano da entrega da declaração¹. Vamos a um caso concreto real que já transitou em julgado para demonstrar as dificuldades e incertezas na aplicação da jurisprudência de que a entrega da declaração é parâmetro jurídico para a contagem do prazo decadencial do IRPF.

Trata-se de ação anulatória de lançamento tributário, com o objetivo de desconstituir auto de infração lavrado em 21/9/17, referente ao IRPF decorrente de rendimentos recebidos em outubro e novembro de 2011 e declarados em ajuste anual em 2013. A sentença de primeiro grau, em que pese acertadamente reconhecer que a renda objeto do auto de infração lavrado tenha sido obtida em 2011, com base na citada jurisprudência do STJ, denegou o pedido de anulação, por entender que o lançamento do IRPF, referente aos valores recebidos pelo contribuinte em 2011, poderia ter ocorrido somente com entrega da declaração à receita realizada em 2013, afirmando-se, assim, que o início do prazo decadencial ocorreria na data de 1/1/14 e o auto de infração poderia ser lavrado até 31/12/19, isto é, quase inimagináveis dez anos após a ocorrência do fato gerador.

A nosso sentir, a sentença equivoca-se ao afirmar que o início do prazo decadencial seria em 1/1/14. Isso porque o termo inicial da decadência deve se dar no primeiro dia do exercício seguinte da data em que o lançamento poderia ser efetuado, consoante o art. 173, I, do CTN, pois, se o fato gerador do IRPF ocorre no último dia do ano-calendário da renda auferida, que, no caso ocorreu incontestavelmente em 31/12/11, o prazo decadencial deve ser contado a partir do primeiro dia do exercício seguinte a ocorrência do fato gerador, ou seja, a partir de 1/1/12.

É, e sempre foi, esse o entendimento do STJ e dos TRF’s ao garantir que, no caso de não pagamento, em se tratando de lançamento por homologação do IRPF, o termo inicial da decadência é o dia seguinte ao término do ano calendário da renda auferida. Confira-se a seguir precedente ilustrativo, in verbis: “O imposto de renda é tributo cujo fato gerador tem natureza complexiva. Assim, a completa materialização da hipótese de incidência de referido tributo ocorre em 31 de dezembro de cada ano-calendário. O prazo decadencial para a constituição do crédito tributário é quinquenal e, em se tratando de tributos sujeitos a lançamento por homologação, deve ser contado da ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4º, do CTN) no caso de pagamento incompleto da exação, e a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado (art. 173, I, do CTN), em caso de inexistência de pagamento”².

Como se observa, o entendimento acertado é de reconhecer que: (i) a data de ocorrência do fato gerador do IRPJ é 31 de dezembro de cada ano-calendário da renda auferida (31/12/11) e; (ii) o prazo decadencial para cobrança pelo Fisco inicia-se do primeiro dia da ocorrência do fato gerador (1/1/12), para findar 05 anos depois (1/1/17). Não é demais relembrar, nesse sentido, de decisão do STJ de 2009, em recurso repetitivo, a saber: “O dies a quo do prazo quinquenal da aludida regra decadencial rege-se pelo disposto no artigo 173, I, do CTN, sendo certo que o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado corresponde, iniludivelmente, ao primeiro dia do exercício seguinte à ocorrência do fato imponível, ainda que se trate de tributos sujeitos a lançamento por homologação”³.

Decerto, o prazo decadencial para o fisco formalizar o referido lançamento teve início em 1/1/12, uma vez que o fato gerador do IRPF ocorreu em 31/12/11. Assim, o prazo decadencial iniciou em 1/1/12 e encerrou em 1/1/17, sendo totalmente nulo o auto de infração lavrado em 21/9/17. Nessa senda, a data da entrega da declaração pelo sujeito passivo torna altamente inseguro o início do prazo decadencial do IRPF, pois o início do prazo tributário fica na dependência e condicionante única de ato subjetivo e exclusivo do particular. Na verdade, é juridicamente irrelevante, para fins de contagem do decurso do prazo decadencial, a data em que o contribuinte entregou a declaração, uma vez que o termo inicial para constituição do crédito tributário é o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, que, sem sombra de dúvidas, é a data da ocorrência do fato gerador do IRPF.

Decerto, a regra disposta no inc. I, do art. 173, do CTN, deve ser aplicada nos tributos sujeitos inicialmente ao lançamento por homologação, caso o sujeito passivo, antes do ato de homologação, não realize as atividades legalmente atribuídas a sua pessoa ou as efetue com inexatidão, abrindo à autoridade administrativa a possibilidade de praticar o lançamento de oficio dentro do prazo de cinco anos a contar do primeiro dia do exercício seguinte à ocorrência do fato gerador. Logo, a sentença ao afirmar que “em 1/1/14 teve início o prazo decadencial, de modo que o lançamento feito em 2017 respeitou o prazo” violou frontalmente o CTN, bem como a jurisprudência e a doutrina tributária predominantes.

___________

1. AgInt nos EDcl no REsp 1.660.121/MG, DJe 21/8/18, AgInt no REsp 1.551.707/PR, DJe 14/10/16. AgInt no REsp 1778663/RJ, DJe 18/10/19.

2. TRF1, Acordão 00432730520164010000, Des. Federal Ângela Catão, Sétima Turma, e-DJF1 17/11/17.

3. REsp 973.733/SC, Primeira Seção, DJe 18/09/09.

Edvaldo Nilo de Almeida
Pós-Doutorando em Direito Tributário pela UERJ. Pós-Doutorando em "Derechos Humanos: de los derechos sociales a los derechos difusos" pela Universidade de Salamanca. Pós-Doutorado em Democracia do Ius Gentium Conimbrigae associado à Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Público pela PUC/SP. Procurador do Distrito Federal. Vencedor do Prêmio Luis Eduardo Magalhães com a tese sobre CPI. Sócio do escritório Nilo & Almeida Advogados Associados.

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