A profissão da advocacia obriga aqueles que a exercem a enfrentar diversas situações inesperadas, para não dizer absurdas, que por vezes não merecem a luz de um pensamento crítico.
Contudo, os casos envolvem o órgão máximo do poder judiciário e a segurança jurídica que tanto carece aos seus jurisdicionados merecem e devem ser trazidos para discussão.
Um destes casos é o ocorrido nos autos do processo 0003843-90.2020.8.17.9000 no Tribunal de Justiça de Pernambuco.
A referida ação foi ajuizada em março de 2020, com base no art. 15 da lei 12.016/09, c/c art. 4º, da lei 8.437/92 e art. 1º, da lei 9.494/97, com o intuito de suspender quaisquer liminares e sentenças que afastem o recolhimento do DIFAL nos seguintes casos:
(i) decisões proferidas em favor de contribuintes optantes do SIMPLES NACIONAL que alegam a suposta inconstitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquota de ICMS nas suas aquisições interestaduais destinadas a revenda. Essa tese equivale ao tema 517 de Repercussão Geral reconhecida no RE 970.821/RS (“Aplicação de diferencial de alíquota de ICMS à empresa optante pelo SIMPLES NACIONAL”), tendo sido determinado pelo STF o sobrestamento dos feitos que tratem da matéria; e
(ii) decisões proferidas em favor de qualquer empresa (optante ou não do SIMPLES), em processos nos quais se alega a inconstitucionalidade (por suposta violação ao art. 146 e art. 155, §2º, XII, 'a', 'd' e 'i' da Constituição Federal) do diferencial de alíquota de ICMS exigido conforme a sistemática instituída pela Emenda Constitucional 87/15 e regulamentada pelo Convênio ICMS 93/15, nas operações interestaduais realizadas com destino a consumidor final situado no Estado de Pernambuco. É o caso das vendas pela internet, em que o vendedor está em outro Estado da Federação, e o consumidor final da mercadoria situado em PE.
Da análise da peça inicial percebe-se que os fundamentos do pedido se baseiam, em síntese, na legalidade do DIFAL e no interesse público diante de grave dano causado pela pandemia do covid-19. Vejamos:
“II – EFEITO MULTIPLICADOR. GRAVE LESÃO À ECONOMIA. "ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA" EM PERNAMBUCO, DECORRENTE DA PANDEMIA COVID-19.
(...)
A manutenção das decisões liminares abrirá precedente para os demais contribuintes pleitearem a não cobrança do diferencial de alíquota, o que gerará perdas diretas significativas para o Estado, uma vez que essa arrecadação não é compensada posteriormente, como no regime Normal. Além disso, indiretamente, poderá causar danos aos fornecedores/produtores locais, uma vez que adquirir mercadorias de outra UF será mais vantajoso para o contribuinte.
Considerando que as duas teses jurídicas discutidas são aplicáveis à quase totalidade de contribuintes no Estado de Pernambuco, é patente o risco de multiplicação irrefreada de demandas com o mesmo objeto
Conclui-se, assim, pela existência de grave lesão à economia pública, como fundamento para a suspensão das decisões indicadas.
(...)
III - DA VIOLAÇÃO À ORDEM JURÍDICA
(...)
III - 2. DA LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DO DIFAL ICMS NAS VENDAS PELA INTERNET A CONSUMIDOR FINAL SITUADO NO ESTADO DE PERNAMBUCO (EC 87/15)
(...)
Inconteste, pois, a desnecessidade de edição de nova Lei Complementar, porquanto a LC 87/96 já ; sendo certo que o ICMS-DIFAL, disciplina, enquanto norma geral, o ICMS reajustado com a EC 87/15, traduz mera regra constitucional de partilha de receita do ICMS entre os Estados de origem e de destino.
Esse é, inclusive, o entendimento já sedimentado no âmbito dos Tribunais de Justiça de São Paulo, do Distrito Federal e Territórios, do Ceará e do Rio Grande do Sul, conforme julgados colacionados em anexo.
Avulta do exposto o escorreito disciplinamento legal do ICMS-DIFAL consumidor final, na forma disposta pela Lei Estadual 15.730/16, em perfeita simetria com a normatização geral da LC 87/96, e em consonância com os ditames constitucionais.”
A presidência do Tribunal de Justiça de Pernambuco concedeu o efeito suspensivo liminar, determinando que “as empresas voltem a recolher o diferencial de alíquota do ICMS nas operações interestaduais que promovem”, mesmo nos casos em que há depósitos judiciais relativos ao tributo discutido, para “garantir que os contribuintes continuem recolher diretamente aos cofres públicos”.
Os fundamentos da decisão possuem manifesta identidade com aqueles expostos pelo Estado de PE. Vejamos alguns trechos:
“Dito isto, devemos considerar alguns aspectos acerca da legalidade da controvérsia em questão, a qual gira em torno da exigibilidade do diferencial de alíquota do ICMS nas operações interestaduais.
Inicialmente, cumpre destacar que a análise a ser realizada nesse momento busca averiguar tão somente a plausibilidade do direito invocado, bem como o eventual risco de lesão ao interesse público, os quais, ao menos neste Juízo de cognição sumária, restaram demonstrados. Vejamos.
Dispõe o artigo 155, II da CF/88, que compete aos Estados instituir impostos sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”. Assim, conforme cediço o ICMS se trata de imposto de competência tributária estadual com finalidade nitidamente fiscal.
Ademais, também é de previsão Constitucional, nos termos do que dispõe o artigo 150, § 7º, que “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.” (grifou-se)
Contudo, em fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a exigência da DIFAL, no julgamento da ADIn 5.469 e da repercussão geral reconhecida no RE 1.287.019 (Tema 1093), fixando a seguinte tese:
“A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional 87/15, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais.”
O que mais surpreende é que, mesmo após o julgamento no STF, o Estado de Pernambuco continuou a requerer o aditamento para que os efeitos da decisão de suspensão das decisões afastando o recolhimento do DIFAL fosse estendido, de modo a alcançar diversos outros processos.
Não bastasse, para a surpresa (e terror) dos contribuintes, a presidência do TJ/PE vem deferindo esses pedidos, suspendendo liminares que afastem a exigência do DIFAL, demonstrando total desrespeito ao órgão do Supremo Tribunal Federal e à sistemática por trás de julgamentos de repetitivos e de decisões em sede declaração de constitucionalidade.
Além do mais, em que pese a Suprema Corte tenha modulado os efeitos da decisão, de modo que ela passe a produzir efeitos a partir de 1.1.22, não por acaso ressalvou expressamente que os processos em curso, em relação aos quais a decisão tem efeitos imediatos, inclusive para o passado.
Importante lembrar que, a declaração de inconstitucionalidade na ADIn 5469 tem efeito erga omnes, conforme o art. 927, I, do CPC:
“Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;”
No mesmo sentido é o disposto no art. 28, parágrafo único, da lei 9.868, de 10.11.99:
“Art. 28 (...)
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” (grifou-se)
O entendimento firmado no julgamento do Tema 1093 em regime de repercussão geral igualmente deve ser aplicado ao presente caso, por força do art. 927, III, do CPC:
“Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
(...)
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;” (grifou-se)
Veja-se que é de fácil compreensão que os fundamentos que suportam o deferimento do pedido de suspensão de liminares e sentenças caíram por terra, uma vez que a legalidade do DIFAL incidente em operações de remessa de mercadorias para consumidor final localizado em outra Unidade da Federação é, incontestavelmente, inconstitucional.
Quanto ao risco de grave lesão por causar prejuízo aos cofres públicos, mais uma vez a sorte não socorre o Estado.
Ora, se a exigência do tributo é inconstitucional e o Estado sequer pode cobrá-lo, não se pode falar em prejuízo. Afinal se está tirando zero de zero, uma vez que, não se aplicando a modulação de efeitos para os contribuintes que ajuizaram ações antes do julgamento, a exigência do tributo é inconstitucional desde a sua edição.
Diante disso, entendo que a situação criada pelo Estado de Pernambuco afasta a segurança jurídica e impõe aos contribuintes uma desconfortável situação de incertezas, onde o posicionamento do Tribunal de Justiça de Pernambuco demonstra não apenas o descaso com nosso ordenamento jurídico, como também com a estrutura do Poder Judiciário e põe em dúvida a supremacia do STF perante os Tribunais Estaduais.
Concluindo, é solar que promover a manutenção, ou ainda pior, alcançar-lhe maior abrangência, da decisão que suspende o afastamento da exigência do DIFAL julgado no Tema 1093 é, sem sombra de dúvidas, obrigar o contribuinte a recolher tributo cuja exigência é inconstitucional.
O julgamento dos recursos interpostos pelos contribuintes prejudicados está incluído na pauta de julgamento eletrônico desta segunda-feira (07/06/2021) com início da sessão às 09:00, oportunidade em que se espera ser revertida a situação em favor dos contribuintes."