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Sancionada a lei 14.155/21, que altera o Código Penal Brasileiro, materializando a resposta do Direito à elevação do número de crimes praticados com o uso de dispositivos eletrônicos

A finalidade da pena não se restringe à retribuição do delito, um castigo a quem o praticou, mas também visa o desestímulo do indivíduo – e, certamente, da sociedade – para que não cometa ou volte a cometer novos crimes.

2/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“Cibercrime: ataques no Brasil aumentam mais de 300% com a pandemia”1; “Interpol alerta para crescimento de crimes virtuais durante a pandemia”2; “A pandemia de cibercrime: por que os ataques de ransomware estão disparando?”3; “Prejuízo global do cibercrime passa de US$ 1 trilhão, diz McAfee”4; “Brasil figura como um dos países com mais ameaças cibernéticas do mundo em 2020”5; “Hackers brasileiros exportam trojan que ataca Internet Banking”6.

O presente artigo poderia ser inteiramente preenchido por títulos de matérias e pesquisas relacionadas à elevação do número de crimes praticados com o uso de dispositivos eletrônicos nos últimos anos, especialmente a partir da decretação do estado pandêmico e imposição de isolamento social, decorrentes do surto causado pelo covid-19.

Há pouco mais de um ano, empresas privadas, colaboradores, órgãos públicos e seus funcionários se viram compelidos a migrar bruscamente suas atividades de um ambiente majoritariamente central e controlado, para o ambiente pulverizado e virtual, sem tempo hábil para adotar todas as medidas de segurança técnicas, e também administrativas, necessárias para preservar os níveis ideais de segurança da informação. 

O isolamento social, do mesmo modo, impôs ajustes consideráveis à relação entre consumidores, prestadores de serviços e fornecedores de bens, que passaram a concentrar suas contratações em um ambiente digital.

As mudanças abruptas narradas acima, somadas à ausência - ou quase ausência - de dispositivos legais específicos sobre as novas modalidades de crimes, mostraram-se terra fértil às investidas criminosas indesejadas, atestando não só o despreparo das vítimas, mas também a necessidade de resposta proporcional do Direito ao novo cenário.

Foi nesse contexto que na última sexta-feira, dia 28 de maio de 2021, foi sancionada pelo Presidente da República, a lei 14.155/21 (“lei”).

A nova Lei materializa a resposta do Direito à elevação do número de crimes praticados com o uso de dispositivos eletrônicos, alterando o decreto-lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940, também referenciado como Código Penal Brasileiro, “para tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet” e ainda, “o decreto-lei 3.689, de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para definir a competência em modalidades de estelionato”, o que retratamos no quadro comparativo abaixo. Vejamos:

Conduta Típica

Antes da Llei 14.155/217

Depois da Llei 14.155/218

Art. 154-A - Invasão de dispositivo informático

Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não a` rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ili'cita:

Pena – detenc¸a~o, de 3 (tre^s) meses a 1 (um) ano, e multa.

(...)

§ 2ºAumenta-se a pena de um sexto a um terc¸o se da invasa~o resulta prejui'zo econo^mico.

§ 3o Se da invasa~o resultar a obtenc¸a~o de conteu'do de comunicac¸o~es eletro^nicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informac¸o~es sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto na~o autorizado do dispositivo invadido:

Pena – reclusa~o, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta na~o constitui crime mais grave.

Invadir dispositivo informático de uso alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular usuário do dispositivo ou de instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita:      

Pena – detenc¸a~o, de 3 (tre^s) meses a 1 (um) ano reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.     

(...)

§ 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terc¸o 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se da invasão resulta prejuízo econômico.

§ 3o Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido:

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos  2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 155 § 4o - Furto Qualificado

Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mo'vel:
Pena – reclusa~o, de um a quatro anos, e multa.

(...)
§ 4o - A pena e' de reclusa~o de dois a oito anos, e multa, se o crime e' cometido:

I – com destruic¸a~o ou rompimento de obsta'culo a` subtrac¸a~o da coisa; II – com abuso de confianc¸a, ou mediante fraude, escalada ou destreza; III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas.

§ 4º-A A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.

 

Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mo'vel:
Pena – reclusa~o, de um a quatro anos, e multa.

(...)
§ 4o - A pena e' de reclusa~o de dois a oito anos, e multa, se o crime e' cometido:

I – com destruic¸a~o ou rompimento de obsta'culo a` subtrac¸a~o da coisa; II – com abuso de confianc¸a, ou mediante fraude, escalada ou destreza; III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas.

§ 4º-A A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.

§ 4º-B. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

§ 4º-C. A pena prevista no § 4º-B deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso: 

I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional;

II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é praticado contra idoso ou vulnerável.

Art. 171 – Estelionato / Fraude Eletrônica

Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artificio, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.

(...)

§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:

Disposição de coisa alheia como própria

(...)

Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

(...)

Defraudação de penhor

(...)

Fraude na entrega de coisa

(...)

Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

(...)

Fraude no pagamento por meio de cheque

(...)

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Estelionato contra idoso

§ 4º Aplica-se a pena em dobro se o crime for cometido contra idoso.

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.  

(...)

§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:

Disposição de coisa alheia como própria

(...)

Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

(...)

Defraudação de penhor

(...)

Fraude na entrega de coisa

(...)

Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

(...)

Fraude no pagamento por meio de cheque

(...)

Fraude eletrônica

§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

§ 2º-B. A pena prevista no § 2º-A deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso, aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional.

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Estelionato contra idoso ou vulnerável    

§ 4o Aplica-se a pena em dobro se o crime for cometido contra idoso.  

§ 4º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é cometido contra idoso ou vulnerável, considerada a relevância do resultado gravoso.  

 

Além das alterações destacadas no quadro comparativo acima, a lei acrescentou o § 4º ao artigo 70 do Código de Processo Penal, para estabelecer que nas hipóteses dos tipos penais previstos no artigo 171 do Código Penal, parcialmente transcritos acima, quando praticados mediante depósito, emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência será fixada pela prevenção.

Abordados os efeitos da nova lei, que recai predominantemente sobre a criação de novas modalidades de crimes cibernéticos e o agravamento das sanções penais de condutas já tipificadas, resta-nos refletir sobre a finalidade da pena.

O artigo 59 do Código Penal dispõe que  “o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

        I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

        II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

        III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

        IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.” (Grifo Nosso). 

Como visto, a finalidade da pena não se restringe à retribuição do delito, um castigo a quem o praticou, mas também visa o desestímulo do indivíduo – e, certamente, da sociedade – para que não cometa ou volte a cometer novos crimes. Portanto, deve tanto refletir a proporcionalidade entre a ação e a consequência do crime, quanto considerar uma razão que seja suficiente para desestimular a prática criminosa.

É nesse sentido que, e sem a intenção de apreciar o quantum condenatório de cada modalidade criminosa, entendemos que acertou o legislador ao adequar, com a sanção da lei 14.155/21, a norma pré-existente ao novo contexto social e tecnológico, relevando os valores atuais da sociedade, como forma não apenas de punir aquele que atentar contra eles, mas também de desencorajar os indivíduos na perpetração dos tipos penais ali previstos.

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1 Fonte: clique aqui (acessado em 29 de maio de 21).

2 Fonte: clique aqui (acessado em 29 de maio de 21).

3 Fonte: clique aqui (acessado em 30 de maio de 21).

4 Fonte: clique aqui (acessado em 29 de maio de 21).

5 Fonte: clique aqui (acessado em 30 de maio de 21).

6 Fonte: clique aqui (acessado em 30 de maio de 21).

7 Fonte: clique aqui (acessado em 30 de maio de 21).

8 Fonte: clique aqui (acessado em 30 de maio de 21).

 

Renato Opice Blum
Advogado e Economista. Patrono Regente do Curso de Pós-graduação em Direito Digital e Proteção de Dados da Escola Brasileira de Direito - EBRADI; Professor coordenador na FAAP.

Ana Rita Bibá Gomes de Almeida
Advogada no escritório Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados, com atuação profissional em demandas Consultivas em Privacidade e Proteção de Dados.

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