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STJ e a insegurança jurídica com a nova interpretação da regra de compensação em embargos à execução

Mas e quando a aplicação de um precedente é completamente desconfigurada pela interpretação conferida por outros julgados?

1/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A busca pela segurança jurídica é tema de interesse de toda a sociedade, sobretudo neste cenário de crise, quando qualquer surpresa pode significar a queda de uma empresa, levando com ela postos de trabalho, diminuição na arrecadação de tributos etc., causando um impacto social negativo. E é por esse contexto que estudiosos do processo civil buscam, ao longo dos anos, discutir mecanismos que tragam maior estabilidade às relações comerciais. Como fruto deste debate, emerge a figura dos precedentes, positivada no atual Código de Processo Civil (lei 13.105/15), em seu artigo 927, que ressalta a força vinculante de determinadas decisões judiciais, que devem ser aplicadas pelos Tribunais de maneira uniforme.

Mas e quando a aplicação de um precedente é completamente desconfigurada pela interpretação conferida por outros julgados? O que fazer diante de um giro interpretativo que, no final das contas, retira direitos fundamentais do contribuinte, limitando seu direito de defesa, em contrariedade ao próprio entendimento vinculante? É justamente este o dilema que vivem diversas empresas, diante dos novos julgados acerca da Tese 294, que contrariam o direito de petição do contribuinte, maculando os princípios do acesso à justiça e da inafastabilidade do poder judiciário, ao impedir a alegação de compensação tributária pretérita indeferida administrativamente como meio de defesa em embargos à execução fiscal.

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 1.008.343/SP sob a sistemática de recurso repetitivo, firmou a Tese 294, que, ao menos aparentemente, havia sedimentado o caminho já traçado pela doutrina e jurisprudência quanto à possibilidade de alegação da compensação pretérita como matéria de defesa em sede de embargos à execução fiscal.

A tese afastava a aplicação do §3º, do art. 16, da lei 6.830/80 para os casos em que o contribuinte, cumulativamente, tivesse preenchido os seguintes requisitos: (i) a formulação do pedido (ou da declaração) de compensação previamente à propositura da execução fiscal; (ii) a comprovação da existência de crédito e débito passíveis de encontro de contas; e (iii) a demonstração da existência de lei autorizando a compensação. Ou seja, o contribuinte não poderia requerer a compensação pela primeira vez nos autos dos embargos à execução, mas poderia discutir sobre requerimento de compensação realizado previamente, seja na esfera administrativa, seja na judicial.

No entanto, se, por um lado, é pacífica a discussão acerca da aplicação impositiva das teses firmadas pelo STJ nos julgados sob a sistemática de recurso repetitivo (arts. 926, 927 e 928 do Código de Processo Civil), por outro, definir o escopo de aplicação do precedente oriundo da Tese 294 ainda é matéria que carece de análise mais cuidadosa pelo Judiciário, haja vista os recentes e surpreendentes julgados, que têm desconfigurado a própria tese firmada pela 1ª Seção do STJ.

Isto porque, em um verdadeiro giro hermenêutico e a despeito da clareza do precedente, estas novas decisões¹, sob a premissa de aplicarem o entendimento firmado na Tese 294, têm exigido do contribuinte novos e injustos requisitos, que não aqueles dispostos no leading case, para admissão da compensação como meio de defesa, limitando o alcance do paradigma e interpretando-o de forma restritiva.

Nesta interpretação equivocada, se exige que, previamente à distribuição da execução fiscal, o contribuinte comprove o reconhecimento (com a homologação) da compensação. Em outras palavras, passou-se a afirmar que a alegação de compensação no âmbito dos embargos restringe-se àquela já definitivamente reconhecida e deferida administrativa ou judicialmente antes do ajuizamento da execução fiscal.

A consequência desta interpretação absurda é a penalização do contribuinte de diversas formas. A primeira delas é o alijamento do seu direito inalienável de provocar o poder judiciário, de levar ao crivo judicial a aferição de validade de eventual decisão de não homologação da compensação, ato administrativo vinculado. O jurisdicionado também é penalizado ao ser compelido a demandar ação própria, com todas as dificuldades inerentes à efetiva garantia do juízo, para se defender de injusta execução fiscal, não podendo fazê-lo pelo meio da defesa cabível, os embargos à execução, onde há diversos tipos de garantia admitidos.

Esta situação se torna ainda mais penosa ao contribuinte quando lembramos que, para suspender a exigibilidade do crédito tributário e discutir a validade do indébito em ação anulatória, o STJ não admite outra garantia além do depósito integral da quantia supostamente devida, inviabilizando, em muitos casos, a própria possibilidade do contribuinte se defender.

É importante frisar que a alegação de compensação como matéria de defesa em processo judicial pode ser entendida de duas maneiras. Se a compensação em análise já foi arguida na esfera administrativa, sendo o feito executivo fruto de uma decisão que não a homologou (ou fez parcialmente), deve se permitir a sua arguição como meio de defesa em sede de embargos, pois se aferirá a legalidade do ato administrativo vinculado proferido pela Receita Federal, não sendo possível afastar o poder judiciário quando provocado com este intuito.

Quando tratamos de defesa baseada em compensação feita previamente à propositura de execução fiscal, impera a ideia de que os valores executados pela Fazenda sequer existem. Isto porque tais valores foram (ou deveriam estar) devidamente extintos pela compensação, que, nos termos do art. 156, inciso II, do Código Tributário Nacional, é uma forma de extinção do crédito tributário. Há, aqui, uma alegação de fato, por meio de uma objeção ao suposto direito creditório do exequente em face de uma execução injusta, fundada em valores já extintos, ou ao menos que deveriam se encontrar extintos se a decisão administrativa acerca da compensação não tivesse sido equivocada.

A outra forma de se interpretar a alegação de compensação se verifica quando o executado pretende promovê-la no curso da execução fiscal. Nessa hipótese, se reconhece a existência de um valor devido, mas se alega um contradireito para que a cobrança constante na demanda executiva – neste caso ajuizada corretamente – seja afastada pelo acolhimento do direito do contribuinte à compensação. Aqui o contribuinte não pretende negar a existência do direito creditório da Fazenda, mas sim apresentar uma oposição a ele, com o fito de extinguir esta dívida por meio de um encontro de contas posterior à execução.

Esse pedido de compensação, formulado nos próprios autos executivos, é indiscutivelmente vedado pelo §3º do art. 16 da lei 6.830/80, que, do mesmo modo que impede o contradireito da reconvenção, também não permite que o encontro de contas seja demandado diretamente como meio de defesa à execução.

O que a lei de Execução Fiscal e o STJ buscaram foi inibir essa alegação de um contradireito – como o caso da reconvenção, que poderia consistir em óbice no recebimento do crédito tributário pela Fazenda Pública; situação completamente distinta da compensação declarada à Receita Federal previamente ao feito executivo, pois aqui se demanda do juízo apenas o reconhecimento de fato pretérito à discussão judicial, qual seja, a quitação do crédito tributário por uma das formas de extinção legalmente previstas no artigo 156 do CTN, mais precisamente no seu inciso II.

Além disso, a análise da Tese 294 já havia esclarecido a extensão dos parâmetros firmados pelo STJ para que a alegação de compensação como meio de defesa em embargos à execução seja passível de apreciação. Destaca-se a exigência de que o pedido de compensação tenha sido realizado previamente ao ajuizamento da execução fiscal, a existência de lei que autorize a própria compensação, além da configuração do crédito e do débito a que se pretende compensar.

As decisões em comento, ao interpretarem a Tese 294, fazem crer que o paradigma exige que a decisão seja homologada, quando, na verdade, a interpretação da tese nos direciona para outro caminho, o da exigência da entrega do pedido (ou da declaração) da compensação pelo contribuinte previamente à inscrição em dívida ativa e à execução fiscal.

E esta mudança interpretativa sequer pode ser considerada um overruling, já que nenhuma das condições para a superação do precedente (§§2º, 3º e 4º do art. 927 do CPC) foi alcançada. Tampouco os julgados analisados pretendiam firmar uma superação do paradigma, mas sim dar-lhe uma nova interpretação, que, no caso concreto, se perfaz em exigências eminentemente ilegais, desconfigurando o próprio precedente.

Ora, se a compensação, como meio de extinção do crédito tributário, é um direito do contribuinte e pode ser exercida, inclusive, sem a prévia autorização do Fisco, realidade inexistente na época da edição do art. 16, §3º, da lei 6.830/80, por que não se admitir a aferição, pelo poder judiciário, da validade do ato que porventura não lhe homologar?

Proibir a alegação da compensação não homologada por meio de embargos à execução significaria admitir a supressão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, bem como violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, garantidos no art. 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição de 1988. Isto porque, retiraria do contribuinte o seu direito inalienável de se socorrer do poder judiciário para corrigir atos ilegais praticados na esfera administrativa, bem como a se defender por meio processual cabível e menos oneroso.

Vale destacar, ainda, que a vedação do §3º, do art. 16, da LEF também não se aplica aos casos em que a homologação sequer é apreciada pelo Fisco, que, diante do pedido de compensação, precisa oferecer uma resposta – cuja natureza é de um ato administrativo vinculado – ao pedido formulado pelo contribuinte. Resposta esta que poderá ser objeto de revisão judicial, em observância aos princípios da inafastabilidade do poder judiciário, do acesso à justiça e do direito de petição (art. 5º, XXXIV e XXXV da CRFB/88).

É preciso ressaltar, ainda, que não há coisa julgada administrativa desfavorável ao contribuinte, inexistindo razão pela supressão do direito de levar ao crivo do judiciário a análise da decisão administrativa – ou da sua omissão – quanto ao pedido de compensação.

O que está em jogo, portanto, é a possibilidade de aferição, na esfera judicial, dos elementos legais que embasaram a decisão administrativa de não homologação da compensação pela Receita Federal. Ou seja, o juízo não exercerá cognição sobre um novo pedido de compensação, mas se debruçará sobre um pedido de compensação já realizado, averiguando sua validade, com o auxílio dos meios de provas comportados nos embargos à execução fiscal, como, por exemplo, perícia técnica contábil. O judiciário, portanto, apenas irá aferir a validade daquele ato administrativo plenamente vinculado, que, pela sua natureza jurídica, comporta este tipo de revisão

Além disso, não se pode perder de vista o contexto histórico acerca da temática. Isto porque o artigo 170 do Código Tributário Nacional, apesar de já existir na época da promulgação da lei de Execuções Fiscais, só foi regulamentado muito posteriormente à promulgação da LEF. Deste modo, a vedação contida no §3º do art. 16 da lei 6.830/80, logicamente, não tinha como objeto a compensação de créditos fiscais com as Fazendas, por iniciativa do contribuinte, porque essa modalidade de extinção do crédito tributário sequer era regulamentada na época.

Portanto, a limitação imposta pelo §3º, do art. 16, da lei 6.830/80 não se aplicaria às hipóteses de compensação previstas atualmente.

Neste sentido, a exposição de motivos da lei de Execuções Fiscais deixa claro qual foi o interesse do legislador na elaboração do §3º, ao dispor: “ainda que, em casos expressamente previstos em lei, a compensação pudesse vir a ser arguida como matéria de defesa” – o que, repita-se, não existia na época, visto que a regulamentação só veio futuramente – “o devedor somente poderia fazê-lo depois de ter tornado líquido e certo o seu crédito, como impõe o citado art. 170 do Código Tributário Nacional” – e conclui “Isso, sem dúvida, em processo outro que não o da própria execução proposta pela Fazenda Pública, salvo se a lei especial vier a permitir a compensação

A mera leitura da exposição de motivos da LEF não deixa margem a outra interpretação, senão a de que a alegação da compensação como meio de defesa em embargos só seria permitida no caso do avento de uma lei especial que viesse a regulamentá-la. E foi justamente o que fizeram as leis 8.383/91 e 9.430/96 em âmbito federal, e diversas outras em âmbitos estaduais e municipais. Não por outra razão, um dos requisitos firmados pelo STJ no precedente em análise é a existência de lei prévia.

Fica claro, portanto, que é imprescindível que se interprete a lei de Execuções Fiscais levando em conta todas as alterações legislativas que modificaram e impactaram a forma como o instituto da compensação é tratado em nosso ordenamento, visto que previsões contidas na LEF sequer poderiam prever os fenômenos hoje existentes.

Não por outra razão, assim caminhava a jurisprudência antes mesmo do Superior Tribunal de Justiça promover o julgamento do Recurso Especial 1.008.343/SP em sede de recurso repetitivo.

Além disso, exigir a homologação da compensação – e não o seu pedido – como requisito é incoerente, porque se a declaração tivesse sido considerada válida, não haveria crédito a ser executado pelo Fisco, eis que os valores já teriam sido extintos pela Administração e, portanto, sequer ocorreria a inscrição em dívida ativa e a consequente execução fiscal. E, como visto, tampouco foi esta a interpretação conferida pelo STJ quando de sua Tese 294.

E mais, a discussão em sede de embargos à execução fiscal não trará qualquer prejuízo ao Fisco se, ao final da demanda, restar comprovada a correição da não homologação da compensação, porque estará a execução fiscal garantida, tendo em vista ser esse um dos pressupostos para a oposição de embargos. Ou seja, também por esse motivo, verifica-se que a não admissão da compensação prévia como matéria de defesa em embargos à execução é uma medida, além de ilegal, injusta com o contribuinte.

É preciso lembrar, ainda, que diversos embargos à execução já foram opostos com amparo na Tese 294, tendo como único argumento a alegação de que o débito então executado deveria ser extinto, pela regular e pretérita compensação declarada administrativamente, que equivocadamente não foi homologada. Esta surpreendente mudança interpretativa traria inesperados prejuízos para estas demandas em andamento, “mudando as regras do jogo no meio da partida”, atentando contra a tão almejada segurança jurídica, em um país que clama por maior estabilidade das normas tributárias.

Um olhar atento para o leading case, que considere o histórico de elaboração da lei de Execução Fiscal, o caminhar jurisprudencial e os apontamentos doutrinários sobre o tema, levam ao entendimento de que a compensação poderá ser admitida como matéria de defesa em sede de embargos à execução, para os casos em que o contribuinte tenha realizado o pedido (ou declarado a compensação) previamente à execução fiscal, afastando a aplicação do §3º do art. 16 da LEF, que terá sua incidência limitada às hipóteses de compensação formulada no bojo do feito executivo.

Tendo em vista a aplicação impositiva do precedente exatamente nos termos em que foi firmado, diante da sistemática do recurso repetitivo (arts. 926, 927 e 928 do Código de Processo Civil), a limitação dos meios de defesa do contribuinte configura-se em verdadeira afronta ao direito de petição, ferindo os princípios do acesso à justiça, da inafastabilidade do poder judiciário e do contraditório e ampla defesa.

Este cenário traz ainda mais insegurança jurídica ao cidadão, que é compelido a demandar ação própria, sobrecarregando o judiciário, além de ter que arcar com garantia específica, que, em alguns casos, se desdobra na exigência de depósito integral do montante executado. Isto poderá causar ao jurisdicionado um inesperado rombo em suas contas, de forma completamente contrária ao que preceitua a legislação tributária nacional quando determina a adoção de meios menos gravosos ao executado na satisfação da suposta dívida, sendo que os embargos podem ser garantidos por outras garantias menos onerosas.

Se concretizada a nova e equivocada interpretação da Tese 294, haverá mais insegurança jurídica no complexo sistema tributário nacional, confrontando completamente com a tese firmada pelo precedente (cuja natureza é impositiva), deixando o contribuinte, em muitos casos, de mãos atadas diante de uma cobrança de débito já quitado (por regular compensação), sem que possa apresentar o meio processual adequado e menos oneroso, isto é, os cabíveis embargos à execução.

____________

1Vide AgInt no AREsp 1735012/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA DO STJ, julgado em 8/3/21, DJe 16/3/21; e ApCiv 00013886220094036123 SP, Relator: Desembargador Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA, Data de Julgamento: 18/11/20, 4ª Turma do TRF3, Data de Publicação: e - DJF3 Judicial 1 DATA: 23/11/20.

Rafael Henrique Fiuza de Bragança
Sócio do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.

Fabio Silva
Associado do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.

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