Migalhas de Peso

CPI da covid: Defesa da vida e da democracia

A CPI sistematiza as informações, a cronologia, os contextos; individualiza personagens... Somos atores e plateia da tragédia; agora assistimos ao nosso próprio filme, com roteiro, direção e legenda.

28/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A maior crise sanitária do século. As vidas e saúdes perdidas já se contam na ordem de grandeza do milhão. Em meio a isso, em pouco mais de um ano, o Brasil já está no quarto Ministro da Saúde. E a população – parte dela – segue mal informada quanto às medidas eficazes de proteção (máscara, álcool gel, distanciamento, vacina...).

Não fizemos testagem em massa; monitoramos coisa nenhuma.

E olha que tivemos uma baita colher de chá: um “delay” de 3 meses em relação à Ásia e 2 meses em relação à Europa. Não aproveitamos. Caímos no samba em fevereiro e nas UTIs a partir de março. Países que monitoraram, fizeram o manejo populacional, “lockdowns” cirúrgicos, quarentenas pontuais, sequer ficaram dependentes de vacina: em muitos, a taxa de transmissão caiu a ponto de a epidemia ficar sob controle.

O tempo passou, amassou a vida. Pouca testagem pública (e ainda assim milhares de kits caducaram nas dobras burocráticas de uma pança “logística”); não corremos atrás de vacina. Sem monitoramento, a vacina seria a única bala na agulha para eliminar o vírus – ressalvado algum remédio milagroso da pipeta dos alquimistas planaltinos. Ou alguma pregação fanática em “lives”, um tipo de reza braba pós-moderno.

Mas não corremos atrás de vacina.

“Eles que me procurem, afinal sou o consumidor!”, disse o chefe, mesmo alertado que o imunizante se tornara vital, bala única, e sua produção inicial seria escassa. “Pra quê essa ansiedade toda?”...

A articulação e “logística” nacional foram e vêm sendo pífias, construídas a fórceps e com muita bateção de cabeça pelos entes locais. Não fosse um sistema público com estrutura médico-hospitalar capilarizada, efetiva e funcional, o SUS, o dano seria incomparavelmente maior. O governo federal, em direção oposta aos organismos internacionais, refutando a ciência, apostava em panaceias, num empirismo “fake”, de silogismo distorcido: fulano, com covid, comeu jujuba e melhorou; ou seja, jujuba é a cura. Isso, no século XXI. Destacado político “da base”, médico por formação, no mês de março/20 apostava alegremente com colega governista que a pandemia iria levar 2 ou 3 mil vidas.

E o chefe da Economia do País, já em plena transmissão comunitária do vírus da pandemia, dizia que “com 2 bilhões de reais nós vamos aniquilar o vírus” e vamos providenciar “passaporte” para identificar os que já tiveram a doença. Mas... Neca de pitibiriba!

E o coração do brasileiro sendo destroçado dia após dia. Falta ar. Faltou oxigênio. Choramos a agonia em Manaus.

Temos proporcionalmente 4 vezes mais mortes aqui do que a média mundial. Considerada a média, 3 em cada 4 mortes não deveriam ocorrer.  De 400 mil, 300 mil óbitos seriam evitáveis... E num contexto em que, em meio aos quase 200 países do mundo, estamos entre os 5% de maior PIB, ou seja, com muito mais recursos do que a média. O Brasil deveria estar melhor que a média, jamais 4 vezes pior!

Esse o quadro. Se isso, por si só, não justifica que o poder mais democrático de todos, aquele responsável por elaborar normas, fiscalizar, propor políticas e metas e afetar aos outros os recursos e o orçamento, nada mais justificará.  Já fizemos CPI de quase tudo: Bingo, Futebol... Nunca, em tempo algum, tivemos maior motivação para uma CPI e mais legitimidade para os representantes da Federação a embalarem.

Um grande mérito a CPI da covid já atingiu em poucos dias: sistematizou as informações da pandemia, organizou a cronologia, esquadrinhou contextos, individualizou personagens, desmascarou falácias.  Todos vivenciamos o período, somos atores e plateia dessa tragédia, mas agora vemos nosso próprio filme com roteiro, com direção, com legenda, com explicação. Enxergamos causas e consequências, entendemos o desencadeamento e a cronologia dos fatos e o papel de alguns dos personagens principais. As incoerências começaram a gritar ainda mais alto. E o escurinho das omissões, inundado por holofotes.

Busca-se a preservação da vida. E se desenha, em cores mais vivas e traços mais firmes, o retrato dos que dela desdenharam.

Como bônus, o fortalecimento da democracia. O resgate da dignidade do parlamento (como diria o jusfilósofo prof. Jeremy Waldron), de modo público, inclusivo. O cidadão está lá, acompanha, participa, torce, sofre, mas recobra as esperanças e as rédeas do destino do País. 

Como sociedade participativa, poderemos encontrar a estrada certa e atingir mais rápido a linha de chegada e, a um só tempo, identificar e alijar os sabotadores. Aqueles que, os Dick Vigaristas da vida, vinham invertendo as sinalizações: “vai morrer gente, e daí?”.

Há pouco tempo, a mídia acomodou-se em ser pautada pelos meandros judiciais, num exercício de retroalimentação viciosa e de tabelinhas dissimuladas que comprometeram a atuação de ambos. Escafedia-se a isenção: a cópula entre o jornal “tribunalizado” e o jurista midiatizado revelou-se infértil ou, pior, pariu monstrengos.

Com a CPI da covid dá-se o inverso: na pauta da mídia, agora, o que já é público; o agir comunicativo, sem véus, máscaras ou estratégias; é o sopro da vida e o choro da morte que se redesenham no parlamento tais como de fato foram, como são e como deveriam ser.

Emerge do caos, enfim, uma simbiose virtuosa em prol da democracia. Muito mais que isso: pela vida!

Vacina já!

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG, ex-Procurador de Justiça.

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