Migalhas de Peso

IPTU verde e a democratização do urbanismo no Brasil

Uma análise dos incentivos fiscais como meio para o bom desenvolvimento urbano.

28/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

IPTU verde e a democratização do urbanismo no BrasiNão há como falar de urbanismo sem falar do desenvolvimento das sociedades moderna e contemporânea, já que ele surge muito recentemente, em meados do século XIX. Suas bases foram teorizadas por Ildefons Cerdà em seu planejamento da cidade de Barcelona, que começava a crescer pelo advento da industrialização. Este conhecimento está intrinsecamente conectado às necessidades geradas pela mera existência das cidades, situação em que passam a ser relevantes o zoneamento de áreas (comerciais, residenciais e industriais), a ampliação de redes sanitárias, a distribuição de espaços públicos (como ruas e praças), etc. No frenético ambiente dos centros econômicos, começam a pesar as consequências sociais de um ou outro planejamento urbano, de maneira que esta área das ciências humanas obteve bastante relevância no século XX¹.

No Brasil, este campo começou a ganhar espaço com a pura criação de novas capitais, como Belo Horizonte, Goiânia e, principalmente, Brasília. Porém, o desenvolvimento urbano gradual mais perceptível é no Rio de Janeiro. Na antiga capital, política e mudanças urbanas ficaram extremamente ligadas, como se demonstrou pela polêmica reforma de Pereira Passos no início do século passado², e foram desenvolvidos diversos planos urbanos para a cidade, de maneira que é possível perceber suas idiossincrasias em certos bairros, dada a época de povoamento de cada um. Em menos de um século, foi vista a inspiração em cidades europeias, o surgimento do arranjo quadrilátero de ruas e a criação de largas avenidas decorrentes da democratização do automóvel. Ainda assim, a questão ambiental continuava em segundo plano, entrando em cena apenas décadas depois.

Com o grande desenvolvimento econômico mundial depois do segundo pós-guerra, as últimas décadas registraram altos índices de poluição ambiental e desmatamento, impulsionando o ativismo ambiental e a preocupação com a alteração climática. A preocupação mundial oficializou-se com o Acordo de Paris de 2015, com o compromisso de várias nações de conter o aumento da temperatura global e a crescente preferência por energias sustentáveis³. Portanto, a agenda ambiental passou a ser seriamente considerada na política interna dos países, com destaque para a responsabilidade do Brasil.

As pressões internacional e popular foram um divisor de águas no que concerne à percepção do papel da preservação da natureza. Inclusive, é nesse sentido que o art.182 e o art. 225 da Carta Magna inserem, respectivamente, as fundações da política urbana e da preservação do meio ambiente.  Nossa Lei Maior reserva a propriedade predial e territorial urbana ao espectro tributário municipal (art. 156, I, CRFB), o que garante não apenas uma importante fonte de receita, mas também um instrumento poderoso para o fomento e incentivo de atitudes voltadas à melhoria do espaço urbano. Assim, diante da discricionariedade constitucionalmente permitida aos municípios, a aplicação do IPTU passou a gradualmente ser cogitada como um instrumento de fomento às atitudes biossustentáveis, fazendo crescer o número de leis municipais implementando descontos na alíquota do imposto como incentivo à conservação ambiental – é o chamado IPTU Verde, presente em cidades como São Paulo, Salvador, Curitiba, Goiânia e diversas outras.

O uso inteligente do Direito Tributário para o referido fim vai de encontro com o desenvolvimento do Urbanismo. Na teoria, espaços verdes eram cogitados dentro do espectro do lazer e socialização, fundamentais nas cidades desenvolvidas. Porém, sua presença se tornara ainda mais importante com a consciência ecológica das últimas décadas, trazendo prioridade a esta pauta. Olhando retrospectivamente, os urbanistas hoje percebem que os veículos automotores deixaram de ser a prioridade na dinâmica urbana, dando lugar aos transportes públicos e à retomada de espaços perdidos pelo asfalto. Muitas cidades atualmente procuram renovar e revitalizar áreas antigamente poluídas ou ermas, dando lugar a jardins e árvores (como pulmões no meio da cidade). Foi o caso da reforma urbana preparatória para os jogos olímpicos da Rio 2016, sendo este objetivo ainda mais visível nos projetos parisienses para a olimpíada de 20244.

Por mais que a mentalidade da sociedade esteja cada vez mais verde, os projetos de reformulação urbana como os referidos geralmente ficam restritos a grandes cidades ou “cidades-vitrine”, sendo o custo de obras similares economicamente inviáveis para outros centros populacionais. É justamente neste ponto que o IPTU Verde revoluciona: a renúncia de receita em prol de atitudes sustentáveis acarreta alguma perda de arrecadação, mas, ainda assim, é viável em praticamente qualquer município – o emprego e o custo de atitudes sustentáveis ficam a cargo apenas do dono da propriedade, sendo o poder público apenas vigilante em relação às balizas legalmente criadas para a aplicação do desconto no tributo. O legislativo municipal possui, portanto, autonomia para delimitar a forma mais eficiente de se incentivar as atitudes ecológicas, podendo tratar desde a plantação e preservação de espécies de plantas nativas à delimitação de parcelas de propriedade rural a serem conservadas. A ampla gama de possibilidades de aplicação do instituto pode ser ainda mais incentivada, se envolver iniciativas estaduais visando à organização e implementação de medidas similares na totalidade do Estado, a exemplo do Programa Município VerdeAzul promovido pelo governo de São Paulo5.

Com esse sistema, um cálculo financeiro inteligente na criação da lei pode, a um só tempo, convencer muitos proprietários a aderirem às “cláusulas verdes” que gerarão o desconto e não chafurdar as finanças públicas, ficando dentro do orçamento municipal. Ainda, tais leis levam em conta as características específicas do município, de maneira que cada um deles poderá estipular os melhores requisitos de acordo com suas vicissitudes. O incentivo ecológico por meio de descontos no IPTU, chega, portanto, em momento oportuno e com grande potencial de promover a proliferação de atitudes sustentáveis, entrelaçando os princípios comuns do Direito e do Urbanismo em uma medida altamente individualizável e democratizante. A questão é: este incentivo fiscal está sendo aplicado eficientemente?

Dadas as amplas chances de adequação e sucesso do IPTU Verde, a afirmativa seria intuitiva. Porém, os casos de sua utilização continuam escassos: em pesquisa feita nos sites oficiais dos 155 municípios com mais de 200 mil habitantes, apenas 38 possuem lei instituindo IPTU sustentável, sendo que nem todos efetivamente foram implementados pelo executivo. Este dado desanimador pode advir, entre outras questões, da persistente falta de consciência ambiental, seja por quem paga o tributo, seja por quem estipula os casos de sua redução. Como dito anteriormente, o cálculo financeiro inteligente tem o potencial de gerar os efeitos desejados, mas somente se for realmente bem pensado pelos gestores públicos. O incentivo deve ser restrito o suficiente ao ponto de não gerar rombos orçamentários e os requisitos devem ser amplos e fáceis de concretizar ao ponto de tais restrições serem atraentes economicamente para os proprietários (se comparadas ao potencial econômico da propriedade perdido pelas restrições) para que estes queiram aderir à proposta. Cabe citar que, enquanto o “furo do teto” de gastos é punível por lei contra o administrador, a não concordância com o incentivo não o é.  Assim, o comprometimento da receita pode ser visto como muito arriscado e, quando aplicado em circunstâncias de baixa flexibilidade orçamentária (gerando incentivos irrisórios), ineficiente. Portanto, é possível dizer que a atratividade do IPTU Verde ainda é baixa no cenário brasileiro.

Mesmo com a renovação nos parâmetros de política urbana, mais voltados à ecologia, é difícil dizer que grande parte da população iria se dispor a escolher as atitudes elencadas nas leis municipais por crença na emergência ambiental – apenas faria isso se fosse economicamente vantajoso. A despeito disso, o dispositivo possui grande potencial para melhorar o ambiente urbano, sendo a conscientização ambiental o passo primordial para a disseminação deste modelo no país, em qualquer município. Afinal, o benefício não se traduz apenas em descontos e biossustentabilidade, mas na melhora fática do bem-estar em comunidade, tornando-se uma ação benéfica para todos. E, diferentemente das reformas urbanas do passado, a obtenção do incentivo reflete completamente a vontade dos cidadãos locais, ao passo que cada um tem liberdade para escolhê-la ou dispensá-la.

___________

1. Disponível aqui.

2. Disponível aqui.

3. Disponível aqui.

4. Disponível aqui.

5. Disponível aqui.

Raphael Dias de Almeida
Graduando na Escola Direito Rio da Fundação Getúlio Vargas, atualmente no 3º Período.

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