A CPI da covid-19 convocou nove governadores para prestar depoimentos e especialistas levantaram dúvidas sobre a constitucionalidade do ato. Passa-se a demonstrar que a convocação não só é inconstitucional como também pensar o contrário levaria a letra morta a autonomia estadual e municipal, colocando-se em xeque os princípios constitucionais estruturantes da separação de poderes e do federalismo.
Por certo, não se quer imunizar governadores e prefeitos de investigação parlamentar de verbas federais, mas sim não permitir que uma comissão de inquérito obrigue juridicamente um Chefe do Poder Executivo Estadual ou Municipal a prestar depoimento de forma compulsória, podendo-se valer do convite.
Nessa senda, persiste, hoje, a ideia de separação constitucional de competências. Um órgão estatal pode desempenhar funções, até mesmo as precípuas de outros órgãos, basta que a Constituição assim determine, o que acarreta um verdadeiro entrelaçamento de funções. O Texto Maior fixa a função e os limites em que cada órgão estatal deve exercer sua atribuição, não podendo o órgão extrapolar os limites previamente fixados e invadir competência que não lhe foi atribuída. Também não pode a legislação infraconstitucional e o intérprete do direito criar novas competências, caso a Constituição seja rígida como a brasileira, sob pena de ferir o princípio constitucional da separação de poderes.
A doutrina moderna se interessa cada vez menos pela elaboração de uma teoria geral das funções estatais como elemento primordial ou universal do princípio da separação de poderes. Ao fixar qualquer análise sobre a separação de poderes, não se adota mais um método abstrato-dedutivo ou a priori, e sim um método normativo-concreto ou a posteriori, partindo da partilha de competências constitucionais preestabelecidas para se verificar a conformidade ou desconformidade da tarefa exercida pelo órgão. A Lei Máxima brasileira adotou o modelo de colaboração ou coordenação de poderes que implica divisão e interdependência dos órgãos de soberania estatal. Na distribuição das funções estatais, verifica-se o controle de um poder em relação ao outro, isto é, os órgãos estatais, embora separados, harmonizam-se num sistema de freios e contrapesos. Mas fica a pergunta: de que forma é demonstrada a independência entre os poderes no texto constitucional brasileiro? É revelada de duas maneiras.
A primeira é o fato de a Constituição ser rígida e que o constituinte originário distribuiu, categoricamente, as competências entre os órgãos de soberania estatal (Legislativo, Executivo, Judiciário), sendo proibido o legislador infraconstitucional redistribuir ou alterar as competências já estabelecidas na Constituição. Nesse ponto, o caput do art. 50 da CF traça uma diretriz fundamental ao não prever a possibilidade de convocação por comissões parlamentares do Presidente da República e a necessária simetria com outros Chefes do Executivo.
A segunda é o reconhecimento de garantias e vantagens, bem como impedimentos a determinadas pessoas que exercem cargos em órgão de soberania estatal ou de Chefia de Poder. Ao Legislativo são reconhecidas imunidades aos parlamentares, como também são estabelecidos impedimentos. Ao Judiciário, são salvaguardadas garantias aos magistrados, bem como vedações de exercer determinadas atividades. No caso do Executivo, a sua independência é reconhecida pelas competências privativas que lhe são atribuídas e pelo cargo de direção da administração pública, seja federal, estadual ou municipal. Portanto, os parlamentares federais não podem obrigar os Chefes do Executivo Estadual ou Municipal a comparecerem ao Senado Federal, mediante convocação, pois estariam desobedecendo o sistema constitucional de freios e contrapesos, que ainda deve permanecer vivo na existência de órgãos governamentais para o cumprimento com independência das suas funções de Chefe de Poder.
Noutra senda, o princípio estruturante do federalismo disposto no caput, dos arts. 1° e 18, da Carta Magna de 88, implica a autonomia recíproca da União, dos Estados, Municípios e do Distrito Federal. Após a discriminação de competências dada pela Constituição, todos esses entes estão em pé de igualdade, de modo que não podem violar o âmbito de atribuições de cada um. É certo que tanto a União, representada pelas Casas Legislativas Federais, como os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, representados por suas Assembleias Legislativas Estaduais, a Câmara Distrital e as Câmaras Municipais, respectivamente, são competentes e têm poderes para criar suas comissões parlamentares de inquérito, mas todos devem respeito as normas jurídicas explícitas ou implícitas na Constituição Federal de 88.
Decerto, a CPI possui poder de investigação próprio da autoridade judicial e a convocação tem sentido muito mais amplo que solicitar ou pedir a presença, pois quem é convocado tem a obrigação de comparecer e importa em crime de responsabilidade a recusa, ou seja, o não comparecimento da autoridade importará em crime de responsabilidade e, ainda, a possibilidade de ser conduzido coercitivamente a sessão da comissão.
Portanto, em síntese apertada, não resta dúvida que a autonomia federativa estadual estará seriamente prejudicada caso o Parlamento federal por meio de suas comissões parlamentares de inquérito passem a convocar ordinariamente os Governadores e, no mesmo sentido, se a CPIs estaduais passarem a convocar ordinariamente os Prefeitos, pois, o poder para compelir os Chefes do Executivo a sua órbita de indagação, além de ferir a divisão de poderes, desmonta de vez a já combalida e desgastada cláusula pétrea da forma federativa de Estado.