Acredito, firmemente, que uma das grandes preocupações da nossa sociedade consiste em saber até onde vai a liberdade do Judiciário para interpretar a lei e o sistema jurídico. Pretendo, com este artigo, compartilhar com a comunidade jurídica algumas reflexões acerca de três possíveis parâmetros que, a meu ver, devem ser necessariamente levados em conta para que se considere que a liberdade interpretativa do juiz terá ficado dentro dos limites do possível.
Eu me considero até mesmo suspeita para falar desse tema, porque, desde sempre, sustento que o Poder Judiciário cria direito, isto é, que a pauta de conduta a que os indivíduos se submetem é fruto da cooperação da atividade do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Considero esse fenômeno não só inevitável (e, portanto, ignorá-lo é uma atitude que equivale à da avestruz, que enfia a cabeça na terra achando que está escondida), como também positivo para a sociedade, desde que se mantenha dentro de certas fronteiras.
A manutenção da atividade criativa do juiz, inerente à interpretação do texto normativo ou do sistema, como um todo, dentro de certos limites, é que faz com que esta possa ser aplaudida. Esse fenômeno não só é inexorável mas também necessário para a evolução do direito, sem que haja ofensa à regra da tripartição das funções do Poder – funções legislativa, judiciária e executiva. Mas, quais são estes limites?
O primeiro parâmetro que deve ser levado em conta é, sem dúvida, o texto da lei. Já se disse que quando se pretende interpretar um texto, deve-se levar em consideração aquilo que aquele texto tem a nos dizer. Assim, se a lei contém a palavra cadeira, pode- se entender que terá querido dizer banco, sofá, poltrona, pufe... mas, positivamente, não terá querido dizer tomate.
Em artigo ainda não publicado, lembram: Nelson Nery Jr., Maira Scavuzzi e Ricardo Fernandes,¹ de texto de Hans-Georg Gadamer²: “quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa”. Em seguida, os autores mencionam outra brilhante passagem de Georges Abboud et alli³: “Os sentidos produzidos pelo intérprete adquirem validade na medida em que são compatíveis com a ‘coisa ela mesma’ ou com a ‘coisa em si’ presente no texto. Se esta alteridade entre texto e intérprete se mostrar incompatível com a ‘coisa em si’, há a substituição dos sentidos atribuídos pelo intérprete por outros mais autênticos, e, assim, sucessivamente”
O segundo dos parâmetros que nos parece adequado para delimitar o espaço dentro do qual a interpretação da lei é bem-vinda, ainda que ela signifique, numa certa dimensão, a criação de uma norma jurídica, é aquilo que os ingleses chamam de “consistency”, que poderia ser bem traduzido pela palavra harmonia. Assim, por exemplo, num sistema em que se admite haver a figura da união estável entre pessoas do mesmo sexo; em que se admite casamento, entre pessoas de mesmo sexo, não seria harmônica a interpretação do sistema de molde que decidisse no sentido de que um casal homoafetivo não poderia adotar uma criança. Essa decisão seria reveladora de uma imensa e intolerável desarmonia interna no sistema jurídico, desarmonia essa que, de tão grave, seria capaz de comprometer a própria forma sistemática do direito.
O terceiro e último parâmetro que não pode ser deixado de lado, já que desenha o espaço dentro do qual o juiz tem liberdade saudável para interpretar a lei e o sistema, é a necessidade de que, com a sua interpretação, o juiz encampe algo que já aconteceu fora do Poder Judiciário. Com isso, quero dizer o seguinte: quando o juiz decide de forma criativa, se afastando da literalidade do dispositivo legal, é necessário que com essa decisão “criativa”, o juiz esteja trazendo para o direito, por exemplo, uma alteração de padrões morais ou éticos, que tenha acontecido na própria sociedade e que não tenha sido ainda foco de preocupação do Poder Legislativo, ou seja, que a situação não tenha sido disciplinada pelo legislador.
Foi o que aconteceu, por exemplo, ao longo da história do direito brasileiro, quando a jurisprudência se auto atribuiu a tarefa de criar direitos para a concubina, que era vista, durante muito tempo, como uma pecadora, que não deveria ter seus “direitos” protegidos. De rigor, ela não tinha direito algum, porque a sociedade a via com maus olhos. O Judiciário encarregou-se de criar soluções para remediar aquilo que passou a ser visto, pela própria sociedade, como uma injustiça, que poderia consistir, por exemplo, na situação de uma mulher que vivera 20 anos com um homem, sempre cuidando da casa, das roupas do companheiro, da sua alimentação, como se casada fosse, e que fora por este abandonada. Não havia dispositivo legal prevendo que a concubina abandonada teria algum direito a ser reclamado de seu companheiro. No entanto, tendo havido visíveis alterações nos padrões morais da sociedade, passou-se a enxergar essa situação como extremamente injusta e essa injustiça foi sentida pelo Judiciário, como uma injuridicidade, que foi neutralizada por decisões favoráveis à concubina. Estas decisões chegaram a reconhecer a existência, entre concubina e concubino, de uma sociedade de fato, até que o legislador da Constituição de 1988 criou um dispositivo praticamente equiparando essa situação ao casamento.
O mesmo ocorre quando o Judiciário encampa uma teoria que gera um afastamento daquilo que a lei prevê de forma expressa, como, por exemplo, a teoria da imprevisão. Esta teoria permite o afastamento da regra no sentido de que o contrato é lei entre as partes, caso aconteça, no plano dos fatos, algo que venha a criar um profundo desequilíbrio entre as partes, gerando vantagem desmedida para uma delas e desvantagem para outra, sendo que este acontecimento era imprevisível e não dependia da vontade das partes. A ocorrência desta situação, no plano empírico, gerava evidente sensação de “injustiça” e a lei não oferecia saídas. Não se tratou, pura e simplesmente, de uma “boa ideia” que, de repente, certo juiz teve, para resolver um caso concreto. Sabe-se da existência de inúmeras teorias que permitem o afastamento das regras que deveriam ser tradicionalmente aplicadas à resolução de determinados casos concretos. Mas, essas teorias não foram, pura e simplesmente, “inventadas” por algum juiz: elas foram construídas, pouco a pouco, com a ajuda da doutrina, que as encampou e as desenvolveu. O fato de a criatividade judicial estar condicionada a esse tipo de circunstância faz com que se neutralize, razoavelmente, a surpresa que a norma criada pelo Judiciário possa causar, na sociedade.
O respeito aos três parâmetros de que antes tratamos evita que se diga, no mau sentido, que o juiz “cria” direito! Evita que se fale num tom tão crítico, de ativismo judicial, expressão não mencionada neste pequeno texto propositadamente, porque acabou adquirindo conotação extremamente negativa...Obstam, também, que a sociedade seja surpreendida por uma regra inventada por um juiz criativo, rompendo total e completamente com a exigência de previsibilidade, inerente ao Estado de Direito. O Estado de Direito é, de fato, aquele que não surpreende os jurisdicionados, já que o homem, como dizem os ingleses, não pode ser tratado como um cão, que só fica sabendo que é proibido roubar o filé de cima da pia, depois que o bastão lhe atinge o nariz.
A criatividade judicial é inexorável, negá-la é uma atitude desprovida de racionalidade. Afinal, quando há uma contradição entre um dogma e uma realidade, o que cede é o dogma, porque a realidade aí está. Ademais, se se nega que o fenômeno existe, como discipliná-lo?
Mas, a criatividade do juiz deve existir apenas numa medida em que não comprometa a tripartição dos poderes, porque, na grande maioria das vezes, é exercida num segundo momento, a partir do texto Legislativo. Ela é inevitável e, a meu ver, deve ser vista com bons olhos. Em muitos campos do direito, realmente, a evolução se dá muito mais visivelmente por obra do Poder Judiciário do que do legislador. O direito de família é um excelente exemplo. Em outros, porém, o juiz deve ser mais contido, como, por exemplo, no direito penal ou no direito tributário. Nestas áreas, não se deve correr risco de comprometer, em medida alguma, a previsibilidade.
Tanto pugnar pela ideia de que as decisões judiciais devem guiar-se pela literalidade dos dispositivos legais quanto ignorar a realidade de que há criação na atividade interpretativa são atitudes estéreis. A atitude mais útil para a sociedade é reconhecer esta carga normativa, criar formas de uniformização, gerar incentivos para que a jurisprudência seja estável e pensar na modulação. Exatamente como fez o legislador de 2015.
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1. NERY JR., Nelson; SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi de Albuquerque; FERNANDES, Ricardo Yamin. Levando os limites do texto a sério: a taxatividade mitigada do agravo de instrumento à luz da Constituição e da hermenêutica. In: KUKINA, Sérgio; ARRUDA ALVIM, Teresa; FREIRE, Alexandre; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (coords.). O CPC de 2015 visto pelo STJ. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, no prelo.
2. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 15. ed., Petrópolis: Vozes, 2015, p. 358.
3. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2015, p. 449.