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A pandemia de covid-19 e o direito: Crise, criatividade e reinvenção

A pandemia de covid-19 pode servir de motor para o surgimento de soluções criativas que contribuam com o progresso das pessoas e das organizações.

17/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“A pessoa criativa é flexível; ela é capaz de mudar à medida que a situação muda, para quebrar hábitos, para enfrentar a indecisão e as mudanças nas condições sem estresse. Ela não é ameaçada pelo inesperado da mesma maneira que pessoas rígidas e inflexíveis são.” Frank Goble

“Dizem que o talento cria suas próprias oportunidades. Mas às vezes parece que a vontade intensa cria não apenas suas próprias oportunidades, mas seus próprios talentos.” Eric Hoffer

A pandemia provocada pelo novo coronavírus atingiu tudo e a todos de forma inesperada. Muitos sucumbiram diante das intempéries, alguns resistem e outros conseguem prosperar em meio à tormenta. O caos responsável pela desordem pode gerar soluções criativas que contribuem com o progresso das pessoas e das organizações. Contudo, esse não é um caminho sem esforço. No Direito, como em outras áreas, envolve a compreensão de que a criatividade é um exercício diário.

De uns tempos para cá, para ser propositadamente inexato, a palavra criatividade desprendeu-se das áreas artísticas para habitar todo e qualquer ambiente. Repetida por muitos como um mantra para o aumento da produtividade, para o alcance dos mais diversos objetivos e para a saída das temidas crises, poucos param para refletir sobre o conteúdo carregado por essas doze letras. Para além das palavras vazias dos chamados gurus e suas “pílulas milagrosas”, pensemos no que seria a criatividade.

O dicionário Oxford Languages afirma que é a “1. qualidade ou característica de quem ou do que é criativo. 2. inventividade, inteligência e talento, natos ou adquiridos, para criar, inventar, inovar, quer no campo artístico, quer no científico, esportivo etc.”. Minha saudosa avó resumiria isso em: a arte de tirar leite de pedra.

Esses conceitos nos fornecem pistas para pensarmos como se dá a criação e o desenvolvimento de uma ação dita criativa, a aplicabilidade da criatividade, como ela é reconhecida pelas pessoas no mundo real, nas instituições. Aqui, devemos nos afastar da ideia de que criatividade seria a expressão de um passe de mágica ou a tradução politicamente correta do “jeitinho brasileiro”.

Em verdade, ser criativo talvez possa ser traduzido em estar preparado ao máximo, ter uma visão ampla de todo o entorno, conhecer o seu negócio, a sua área, o seu público, estar atento, planejar. Nesse cenário, a dedicação pode ser um caminho primoroso, já que o criativo não tira soluções do nada. Ele é o sujeito que está apto a encontrar as soluções visto que se dedicou, estudou, se atentou a sinais e ousou.

Mas será que há receita pronta para ser criativo ou se trata de um processo, um caminho, uma atitude? Não seria prudente traçarmos aqui uma reta. Útil é pensar em direções, contribuições. Em uma empresa, por exemplo, para além dos talentos natos, que são raros, como proceder para que os colaboradores adquiram tal característica? Como cultivar tal qualidade? Para além da existência de sujeitos dispostos a contribuir com a empresa, como garantir uma atuação criativa pautada na ética e que dê resultados?

Abrindo um parêntese, destaca-se que a serendipidade possui um papel no processo criativo. Aquilo que é descoberto por acaso, de modo imprevisto, quando descobrimos coisas boas casualmente, um insight. Todavia, é necessário mais que o acaso.

Para ser inventivo é preciso se sentir seguro e confiante. Para inovar é preciso dominar a técnica. E isso é mais provável em instituições que tenham ciência disso e busquem desenvolver a equipe de forma contínua através de um ambiente que esteja em consonância com essas necessidades, um ambiente que desafie, estimule, que contribua para a formação de um colaborador pensante, questionador, inquieto.

E assim também ocorre na área do Direito. Cada vez mais as empresas procuram escritórios de advocacia que pensem em soluções empresariais, verdadeiros parceiros de negócios. Como também os escritórios buscam colaboradores que estejam em sintonia com os desafios do mercado, para além da necessária escrita criativa.

As crises se mostram como momentos decisivos, como oportunidades para exercer a criatividade. O creme de avelã Nutella, por exemplo, foi criado na Itália no cenário de devastação do pós-Segunda Guerra, quando o cacau havia sumido dos campos e foi preciso criar um creme mais em conta, feito de avelã, açúcar e somente uma pitada de cacau. Já o café solúvel Nescafé surgiu nos anos 1930, quando a procura por café caiu em todo o mundo, prejudicando os produtores do Brasil, que tinham milhões de sacos de café que seriam destruídos. A pedido do governo brasileiro, a Nestlé teve a ideia de fazer com o produto o que já fazia com o leite: transformar em pó com a intenção era torná-lo mais durável1.

Contudo, não é necessária a chegada de um problema para que seja pensada uma ação criativa. Essas ações, que podem ser grandes ou pequenas, geralmente envolvem saídas simples. O importante é que o benefício seja maior que o custo, que haja um impacto positivo. Em outras palavras, para tirar leite de pedra não precisamos estar necessariamente diante de uma situação terrível, podemos praticar essa engenhosidade para antever problemas e soluções no dia a dia.

É certo que a pandemia alterou a rotina e levou ao Judiciário questões inéditas, nas mais diversas áreas, como direito de família, direito do trabalho, direito tributário, contratos, relações de consumo. O impacto se deu tanto no ambiente doméstico, quanto no internacional, inclusive com a edição de uma série de normas – algumas com caráter emergencial – que visam dar uma resposta, superar os efeitos econômicos e sociais da crise.

Por outro lado, a crise sanitária provocou uma intensa aceleração de transformações que vinham sendo introduzidas no mercado, como a adoção de ferramentas e novas tecnologias da informação. Ademais, as empresas foram obrigadas a rever suas estratégias de gestão de crises e consolidar estratégias de inovação frente aos acontecimentos.

No Direito, tivemos, por exemplo, a implementação de atendimento totalmente remoto, audiências on-line, bem como, maior estímulo à resolução extrajudicial de conflitos para tornar as demandas mais céleres. Sob outra perspectiva, muitos escritórios se encontram com suas salas vazias e algumas prestes a desalugar, inclusive devido a problemas financeiros.

Diante de todo esse cenário, calcada na busca das melhores soluções para as relações jurídicas postas pelos clientes, a advocacia deve compreender as questões a partir de uma perspectiva plural, atuando com objetividade, através do uso eficiente e criativo da tecnologia – sempre atenta ao panorama legislativo e jurisprudencial.

Aliado a isso, a necessidade de isolamento social imposta pela pandemia não impede que haja um trabalho criativo coletivo. Pelo contrário, podemos explorar e potencializar as possibilidades que o mundo conectado e tecnológico propicia para que diferentes visões de mundo criem novas e melhores soluções – que nem sempre são estritamente jurídicas – a partir da discussão e do debate.

Ressalta-se que em um país desigual como o Brasil, um grande número de pessoas, muitas delas desassistidas, se veem na obrigação de serem criativas para contornar as dificuldades e ganhar destaque. A criatividade é uma chave para a reinvenção. Esta também tem esse caráter de sobrevivência, de urgência, ela não bate à porta e pede para entrar, ela invade. Talvez por isso sejamos conhecidos como um país que exporta criatividade.

Enfim, a pandemia de covid-19 pode servir de motor para o surgimento de soluções criativas que contribuam com o progresso das pessoas e das organizações. No entanto, a criatividade deve ser estimulada diariamente partindo da noção de que é um caminho de esforço individual e colaborativo. É preciso tratar a crise como uma oportunidade de se reinventar, se fastando da ideia tacanha de que o direito é algo engessado que não comporta pensar fora da caixa.

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1 Disponível  clicando aqui. Acesso em 16.2.21.

João Paulo Andrade de Souza
Graduando em Direito.

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