Entrou em vigor, no último dia 1º de abril, a lei Federal 14.133/21, que dispõe sobre o novo marco legal das licitações e contratações públicas para a Administração Pública direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios1. A promulgação da Nova lei culmina um tortuoso processo legislativo que teve início no longínquo ano de 1995 com o PL 1292/95.
A lei revogará, após decorridos dois anos da sua publicação, a lei 8.666/93 (lei de Licitações), a lei 10.520/02 (lei do Pregão) e os arts. 1º a 47-A da lei 12.462/11 (lei do Regime Diferenciado de Contratações)2. Tais procedimentos, de agora em diante, passam a ser regulamentados de forma unificada pela lei 14.133/21 que, de modo semelhante ao que ocorreu com a lei 8.666/1993, nasce com uma pretensão totalizante: a de regular, de forma abrangente e minuciosa, todo o fenômeno das licitações e contratos públicos. É de se ver se nos próximos anos o mesmo fenômeno sofrido pela Antiga lei irá se repetir com a Nova: o progressivo esvaziamento por meio de leis especiais que, pouco a pouco, foram “abocanhando” temas e questões originariamente tratadas pela “lei geral”.
Seja como for, dentre as alterações e inovações trazidas pelo novo diploma legal, merece destaque uma que parece ter sido involuntária. Trata-se do papel dos Tribunais de Contas na fiscalização de controle, em especial do poder cautelar conferido a esses órgãos para suspender a realização de certames, estabelecido pelo art. 171 da Nova lei.
O real intento do legislador na elaboração do dispositivo, ao que tudo indica, foi o de garantir um prazo razoável para o definitivo saneamento de processos licitatórios que tenham sido suspensos cautelarmente por decisão dos Tribunais de Contas. Isso para evitar o chamado “periculum in mora reverso”, isto é, o risco de que a eventual demora na apreciação do mérito acarrete maiores prejuízos ao interesse público3.
Nesse sentido, o art. 171, §1º da lei 14.133/21 determina que as Cortes de Contas deverão decidir o mérito de cautelar eventualmente concedida no prazo de 25 dias úteis. A contagem desse prazo inicia-se a partir da data do recebimento das informações solicitadas ao órgão responsável pela licitação, podendo ser prorrogado por igual período uma única vez.
Mas não é só. O dispositivo, ao versar sobre a suspensão cautelar de processos licitatórios, acabou reconhecendo, ainda que indiretamente, a possibilidade de os Tribunais de Contas disporem de medidas cautelares para assegurar a efetividade de suas decisões finais e minimizar prejuízos ao erário. Em outras palavras, o legislador, ao regular o trâmite das medidas cautelares, incidentalmente, positivou o poder geral de cautela do Tribunal de Contas da União (TCU).
É certo que o TCU já há muito admitia o uso de medidas cautelares. E, como é o costume nesses casos, recorreu-se ao Regimento Interno do TCU - RITCU para a “positivação” desse poder geral de cautela. O art. 276 do RITCU disciplina a matéria, versando que o Plenário, o relator, ou o Presidente, “em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário, ao interesse público, ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá, de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão do ato ou do procedimento impugnado (...)”.
O assunto, contudo, é controvertido. Muito se critica que essa prerrogativa não possui previsão constitucional ou legal, e que a Corte de Contas Federal estaria reinterpretando suas atribuições e expandindo, através de ato infralegal, suas competências para além daquelas hipóteses previstas no art. 71, incisos IX e X da Constituição Federal.
Com efeito, a leitura combinada dos supramencionados dispositivos permite concluir que o TCU pode dispor de medidas cautelares, mas somente para sustar atos administrativos irregulares quando estes não são corrigidos dentro do prazo determinado pelo órgão de controle, devendo a referida medida ser, ainda, comunicada à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. Ou seja, não há previsão expressa de um poder geral de cautela do Tribunal.
Desta feita, as medidas cautelares do TCU deveriam ser aplicadas apenas para atos específicos, seguindo, além disso, o procedimento estabelecido pela Constituição, que não prevê poder cautelar geral que permita àquela Corte suspender quaisquer procedimentos ou atos. Logo, o art. 276 do RITCU, ao admitir a decretação de medida cautelar para sustação de atos e procedimentos, inclusive sem a prévia oitiva da parte interessada, estaria inovando no ordenamento jurídico e extrapolando o disposto no texto constitucional4.
O Tribunal de Contas da União, no entanto, afirma que o seu poder geral de cautela encontra amparo, à luz da teoria dos poderes implícitos5, nas competências corretivas previstas na Constituição. O argumento é o seguinte: a teoria dos poderes implícitos diz que a atribuição explícita de competências a determinada autoridade ou órgão também produz, por necessidade lógica, a atribuição, ainda que implícita ou tácita, dos poderes indispensáveis ao desencargo dessas mesmas competências. E, por se tratar de uma decorrência lógica – pois não faria sentido praticar um dever sem, na mesma medida, conferir ao responsável os meios necessários para executá-lo – a atribuição de poderes não precisa ser explícita.
Nessa linha de raciocínio segue-se a tese defendida pela Corte de Contas Federal de que o poder cautelar desse Tribunal não precisa estar literalmente previsto na Constituição— e de fato não está —, eis que ele é imanente ao próprio exercício de suas atribuições e competências. O poder geral de cautela do TCU seria, então, um poder implícito decorrente das atribuições que lhe foram explicitamente conferidas6.
Nesse sentido, merece destaque o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter reconhecido no MS 25.510, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, a tese de que o TCU detém, ao menos em certa medida, um poder geral de cautela, afirmando que esse último possui “legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões”. Diante disso, a matéria contida no art. 276 do RITCU não estaria maculada por inconstitucionalidade, sendo inerente às competências da Corte de Contas.
O impasse parece ter sido resolvido, por ora, com a edição da Lei nº 14.133/2021. Ao positivar em lei – malgrado que incidentalmente – a questão, o legislador admitiu que o Tribunal de Contas da União se valha de medidas cautelares, inclusive para sustar processos licitatórios. Desse modo, transforma-se em regra aquilo que surgiu como uma prática interna da Corte de Contas, oriunda de uma autocompreensão a respeito de seus próprios poderes que se sedimentou, de um lado, por meio da expedição de acórdãos, e, de outro, pela edição de normas internas, o exemplo mais notório sendo o do já citado art. 276 do RITCU.
Entretanto, existe uma pedra no meio do caminho da Corte de Contas. É que a positivação incidental operada pela Nova Lei pode desaguar, malgrado a política institucional expansionista do Tribunal de Contas, em uma interpretação restritiva do poder geral de cautela. Como assinalado acima, a Nova lei fala em medidas cautelares para a sustação de processos licitatórios, e nada além disso.
Desta feita, é possível defender, a partir do texto da lei, a tese de que a positivação não se deu no sentido do reconhecimento de um poder geral de cautela amplo e irrestrito, na linha da teoria dos poderes implícitos, mas no de algo circunscrito e limitado aos processos licitatórios regidos pela Nova lei. A tensão com o art. 276 do RITCU, nesse caso, permaneceria, visto que a redação do dispositivo regimental é muito mais ampla e abstrata, na linha de um poder geral, o que parece não ser o caso do art. 171, § 1º da Nova lei.
Ou seja, aqui teríamos não uma hipertrofia dos poderes do TCU, mas contraintuitivamente uma contenção desses mesmos poderes: o poder geral de cautela limitando-se, na verdade, aos processos de licitação disciplinados pela lei 14.133/21.
Em suma, fora das matérias tratadas pela Nova Lei, o Tribunal de Contas não teria poder de cautela algum, haja vista que o reconhecimento do legislador teria se dado em termos limitados e restritos. Seria a admissão de um poder cautelar, mas não nos moldes amplos e irrestritos do art. 276 do RITCU. Estaríamos aqui diante de uma vitória de Pirro do TCU: poder cautelar, sim; mas nem geral, muito menos irrestrito.
Pode-se especular sobre o que teria levado o legislador, nessa hipótese, a reconhecer um poder de cautela restrito e limitados aos procedimentos licitatórios da Nova Lei. Sob um aspecto, a possibilidade de expedição de medidas cautelares é importante para que danos graves possam ser evitados. Além disso, trata-se de garantir a eficácia das decisões dos Tribunais de Contas que, sem o recurso a esse tipo de instrumento, podem se ver diante de situações de fato já consolidadas e que não possam ser revertidas a não ser com grande dispêndio de recursos.
No entanto, a despeito desses argumentos a justificar a existência de um poder cautelar da parte dos Tribunais de Contas, é preciso considerar que, no caso do Tribunal de Contas da União, o uso de medidas cautelares tem servido a uma política de expansionismo institucional. As medidas cautelares são um dos mecanismos que o TCU se vale para pôr em marcha uma agressiva política de colonização de espaços institucionais, chamando a si questões muito mais próximas à definição de políticas públicas do que à do controle da Administração Pública propriamente dito.
Diante disso, o legislador, colocando na balança custos e benefícios, teria optado por uma linha de cautela e precaução, mais ou menos no sentido daquilo que Adrian Vermeule chama de constitucionalismo da precaução (precautionary constitutionalism). Trata-se, nessa situação específica, do reconhecimento de que as instituições, do mesmo modo que os indivíduos, tendem a agir em benefício próprio. As instituições procuram expandir seus poderes e suas atribuições sempre que isso traga, de algum modo, benefícios e vantagens7. Portanto, o legislador, partindo desse cenário descrito pelo constitucionalismo da precaução, e, mais do que isso, tendo observado a postura de expansão institucional agressiva adotada pelo TCU nos últimos anos, teria optado por admitir um poder de cautela, não amplo e geral, tal como se vê no art. 276 do RITCU, mas circunscrito aos procedimentos da lei 14.133/21.
Somente o tempo para mostrar qual desses dois possíveis entendimentos sobre o alcance do art. 171 da Nova lei – se se trata da consagração de um poder geral de cautela ou, ao contrário, de algo bem mais restrito – irá prevalecer ao final. De antemão, o que se pode afirmar é que a interpretação nesse sentido mais limitado já vem sendo alvo de críticas, que apontam a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 3º do citado dispositivo8. Tudo dependerá do jogo institucional a ser jogado entre o TCU e o STF, a quem cabe, por determinação constitucional, o papel de modulador da atuação do primeiro e, principalmente, de guarda da Constituição.
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1. Conforme dispõe o art. 1º, §1º da lei 14.133/21, não são abrangidas pela Nova lei as empresas estatais, vez que são regidas pela lei 13.303/16.
2. Conforme art. 193 da lei 14.133/21.
3. Essa lógica é reforçada pelo art. 147 do novo diploma legal, que determina que a decisão sobre a suspensão da execução ou declaração de nulidade do contrato seja precedida de avaliação dos impactos econômicos e financeiros da medida e do custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação, dentre outros aspectos.
4. Dado que regimento não é lei, logo, não poderia inovar no direito processual. Nesse sentido, o art. 22 da Constituição estabelece que “Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (...);”.
5. Referida teoria é originada do constitucionalismo norte-americano e foi sedimentada pela Suprema Corte Americana a partir do caso McCulloch v. Maryland.
6. Esse é o entendimento aplicado pela Corte de Contas, podendo-se citar como exemplo o Acórdão 3251/2020-PL, Acórdão 3172/2020-PL, Acórdão 1174/2019-PL e Acórdão 198/2019-PL.
7. “(…) precautionary constitutionalists implicitly portray structured groups of officials – political institutions – as power-maximizers. The further assumption is that institutions maximize power through empire-building – by expanding their jurisdiction or the scope of their discretion to encompass an ever-greater terrain. Where this comes at the expense of other institutions, the assumption is one of aggrandizement”. The Constitution of Risk, Cambridge University Press, 2014, p. 48.
8. Aqueles que apontam a inconstitucionalidade do dispositivo alegam, em suma, ofensa à competência de autogoverno dos Tribunais de Contas e em especial aos princípios da separação dos poderes, da razoável duração do processo, da igualdade e da eficiência.