Migalhas de Peso

O ideal da justiça dialógica no Brasil

O debate sobre justiça dialógica tem o potencial de promover uma evolução do modelo de revisão judicial forte no Brasil e o fortalecimento da democracia.

17/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Roberto Gargarella suscita ao menos três questionamentos importantes sobre a exclusividade atribuída às Cortes Supremas em dar a última palavra sobre a intepretação constitucional. Ao abrir a coletânea “Por uma justiça dialógica”, reflete o jurista argentino que uma coisa é a participação dos juízes em discussões sobre o significado da Constituição, e outra muito diferente é que se arroguem no direito exclusivo de intervir nesses assuntos. Em seguida, questiona a possibilidade de outro poder contribuir com aquilo que se supõe ser algo substancial, o modelo de revisão judicial; até conjecturar alternativas institucionais distintas, dentro do que denomina problemas de “desenho institucional”1.

Uma alternativa proposta para o modelo de revisão forte de revisão judicial é o modelo canadense. A novidade surgiu no país com a Carta de Direitos de 1982, quando se previu a famosa cláusula “não obstante” (notwithstanding clause), que permitiu insistir com a legislação declarada inconstitucional por mais cinco anos, apesar do reconhecimento de sua inconstitucionalidade pela Suprema Corte.

Segundo Peter Hogg2, um entusiasta do modelo, e que avaliou os precedentes de uso da cláusula, só em um caso houve clima político de confronto entre legislativo e judiciário pelo seu uso. Em Ford c. Quebec, a Corte Suprema canadense anulou uma lei de Quebec que proibia outro idioma que não o francês nos anúncios comerciais. Depois dessa decisão, Quebec continuou proibindo o uso de idioma diverso do francês nos anúncios, estabilizando temporariamente a nova lei com a cláusula não obstante (notwithstanding clause) do art. 33. Nos demais casos, houve, segundo Hogg, predominância da modificação posterior da lei pelo legislativo para se adequar as falhas apontadas pelo judiciário. Segue um gráfico montado a partir do quadro proposto pelo autor, após a análise de 66 casos:

Os resultados do modelo de revisão judicial fraca são promissores, sentencia Hogg. A abdicação o uso da cláusula “não obstante” – em 13 dos casos (20%) –, indicaria que o Legislativo teria concordado com a opção da Corte acerca da melhor interpretação constitucional. Por outro lado, a predominância de casos de modificação posterior, em que o Legislativo acolheu sugestão do judiciário sobre ajustes necessários à constitucionalidade da norma, revelaria, segundo Hogg, “o começo de um diálogo acerca de como conciliar de melhor maneira os valores individualistas da Carta com a realização de políticas sociais e econômicas em benefício da comunidade em sua totalidade”. 

Dentro desse cenário institucional promissor, o transplante desse modelo de revisão judicial para o Brasil seria até mesmo uma obviedade. O problema é que não discutimos sequer o modelo de revisão judicial forte que temos, o que nos impede de promover a evolução do modelo de revisão aos saltos (anti-darwinismo).

Quando se fala em dificuldade contramajoritária, normalmente se atribui que o poder de revisão judicial gera limitação ao poder popular. Todavia, Alexander Bickel – o constitucionalista americano que cunhou o termo dificuldade contramajoritária – distingue entre temas de política, que não estariam sujeitos ao controle judicial significativo – e questões relacionadas a direitos constitucionais – em que os tribunais ficariam autorizados a atuar3.

Ainda que a distinção entre questões políticas e de princípio não seja fácil, o tema é uma fagulha para o debate sobre design institucional, o que é escamoteado pelo acolhimento do conceito deturpado de dificuldade contramajoritária entre nós, na forma de um poder absoluto de revisão judicial.

A polêmica recente sobre abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) revela a pobreza do debate institucional no Brasil. Ao julgar o MS 26.441/DF, o Supremo Tribunal Federal concluiu que a instalação de CPIs configura “direito público subjetivo de minorias”. Ao comentar a decisão, Roberta Nascimento4 pontua que o precedente utilizado para balizar a decisão não teria se comprometido com questão de princípio, senão com o procedimento. No citado writ, o relator, Ministro Celso de Mello, teria simplesmente afastado deliberação plenária do Senado Federal que havia impedido a instalação de Comissão. Enquanto o Supremo Tribunal Federal extrai um princípio da regra do § 3º do art. 58 da Constituição da República de 1988, a articulista extrai habilmente e com muita propriedade uma norma de procedimento.

O embate institucional sobre as vaquejadas no Brasil também revela a necessidade da criação de pontes que permitam uma justiça dialógica no Brasil. Com a procedência da ADIn 4.983/CE – em que a Suprema Corte declarou inconstitucional lei estadual que regulamentava a vaquejada como atividade desportiva e cultural no Estado do Ceará –, a resposta do Parlamento nacional foi a promulgação de da Emenda Constitucional 96/17, declarando que tais práticas não se revelam cruéis, pois inseridas como manifestações culturais. A referida emenda constitucional é objeto de impugnação na ADIn 5.728/DF e na ADIn 5.772/DF, ainda pendentes de julgamento.

A discussão revela, ainda, que a crítica brasileira em torno da revisão judicial não se dá em torno de design institucional, senão quanto a um sentido lógico da norma, em que se busca a substância a ser captada pelo intérprete. Nesse cenário, a vontade contramajoritária configura uma variável fixa para justificar o poder absoluto do Supremo Tribunal Federal de interpretar a norma constitucional, em contraposição ao direito democrático popular – exercido por meio dos representantes eleitos – de aceitar toda e qualquer interpretação da Corte.  

Desse modo, se não há discussão sobre qual modelo de revisão judicial forte temos, não podemos vislumbrar, por ora, qualquer modelo institucional alternativo de revisão judicial.

Quando se diz que devemos falar em justiça dialógica, em discutir modelos de desenho institucional alternativos, deveríamos entender tudo como um grande ideal – uma meta a ser alcançada. Afinal, a primeira condição para se chegar à maturidade é passar pela juventude. E a nossa infância é a realidade atual brasileira:  decisão judicial ou se cumpre ou derrubemos o Supremo Tribunal Federal. A primeira opção assegura a manutenção do Estado Democrático de Direito e permite a sua evolução; a segunda, é a instalação do caos e o retrocesso na defesa dos direitos fundamentais.

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1 Por Una Justicia Dialógica: El Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Gargarella, Roberto (org). Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014, p. 9-10.

2 HOGG, Peter W; BUSHELL, Alisson A. El diálogo de la Carta entre los tribunales y las Legislaturas (o quizá la Carta de Derechos no sea algo tan malo después de todo) In: Gargarella, Roberto (org). Por Una Justicia Dialógica: El Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014, p. 17-50.

3 BICKEL, A. M. The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics. New Haven: Yale University Press, p. 16-23.

4 NASCIMENTO, Roberta Simões. Pode o STF determinar a criação da CPI da pandemia? 

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João Paulo Rodrigues de Castro
Analista Judiciário em Gabinete de ministro do STJ. Exerceu o cargo de Defensor Público Federal entre 2015 e 2019. Discente do Mestrado em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB).

Luciano Oliveira de Moraes
Chefe de Gabinete de ministro do STJ desde 2018. Exerceu o cargo de assessor de ministro do STJ entre 2012 e 2018. Discente do Mestrado em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB).

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