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Acesso à justiça e democratização do judiciário: A barreira da linguagem nos JECs

Os JECs trouxeram avanços democráticos para a judicialização de pequenas causas. Contudo, esses juizados ainda necessitam de romper muitas barreiras para verdadeiramente cumprir seu propósito legal.

14/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A Constituição Federal de 1988 foi uma importante conquista dos movimentos sociais, que buscavam garantir, entre outros direitos, o acesso à justiça, à saúde, à educação e aos direitos trabalhistas. Com a consagração dos direitos sociais e fundamentais na Assembleia Constituinte, ocorreu um aumento no fenômeno da judicialização, em especial no direito à saúde. Dada a lentidão dos andamentos processuais e de seus altos custos, através da moção popular e outros fatores, criaram-se os Juizados Especiais Cíveis anteriormente denominados como Juizado Especial de Pequenas Causas e assim ainda popularmente conhecidos (positivado pelo art. 98, inciso I, da Constituição Federal e posteriormente pela lei 9.099/95). Cumpre salientar a importância da criação dos Juizados Especiais também para o ajuizamento de causas antes não levadas ao judiciário, aquelas consideradas menores, menos complexas e com baixa relevância para a lógica tradicional. Isto, em suma, contribuiu para uma democratização do acesso à justiça.  Por exemplo, quando um consumidor hipossuficiente se encontra na triste situação de ter despendido toda a sua economia anual na compra de um aparelho televisor que, por erro do fornecedor, apresenta problemas técnicos e o fornecedor não colabora livremente com a resolução do problema, esse consumidor pode, sem quaisquer custos, judicializar essa questão que, em proporção, tem grande valor para aquele indivíduo.

O texto constitucional prevê a competência concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal para a edição de normas referentes a criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas (Art. 24, X, CF/88), tendo sido elaborada a lei 9.099/95, no âmbito federal, contendo os regramentos gerais sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Os Juizados Especiais Cíveis cumprem um importante papel no atendimento judicial de pessoas hipossuficientes e carentes, uma vez que, no processo ajuizado nos JECs - desde que a o valor da causa não ultrapasse 20 salários mínimos-, não há a necessidade de constituição de advogado nos autos (Art. 9º, lei 9.099/95), de forma que o peticionamento, a defesa e a acusação podem ser feita pelas partes do processo sem que haja a intermediação de um advogado ou defensor público. Isso implica dizer que entre a parte e o juiz, na hipótese do art. 9º da lei 9.099/95, não necessariamente há um intermediário  que possui o domínio da linguagem jurídica tradicional.

Nesse sentido, sendo os Juizados Especiais Cíveis (JECs) importantes ferramentas para o acesso da população pobre ao judiciário, há que se falar da inacessibilidade da linguagem das decisões, despachos e sentenças emitidas por estes ofícios. Para estes autores, em um cenário ideal, a acessibilidade destes documentos deveria ser garantida por todos os ofícios, cartórios e órgãos judiciais, no entanto, nos atemos ao Juizado Especial Cível, pois como já ressaltado, este lida diretamente com a população mais carente da sociedade.

O artigo segundo da lei dos Juizados Especiais consagra os critérios que devem orientar o processo, sendo eles: a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. O significado que deve se dar ao acesso à justiça já comporta a necessidade de adequação da linguagem jurídica tradicional para um léxico que seja mais compreensível para a população em geral. Contudo, dentro dos Juizados Especiais- devido à orientação pelos critérios da simplicidade e da informalidade-, em especial nos cíveis na hipótese do art. 9º da lei dos Juizados Especiais, essa necessidade se eleva, haja vista que, na ausência de advogado constituído, competirá à parte, muitas vezes hipossuficiente e de baixo grau de escolaridade, interpretar os despachos, sentenças e decisões emitidas pelo ofício.

Apesar dos louváveis avanços legislativos proporcionados pela lei dos Juizados Especiais, o acesso à justiça ainda esbarra em um corpo judiciário que não acompanhou nem teve a preparação necessária, muito menos vontade política, para acompanhar esses avanços. O JEC, tendo sido um avanço para a democratização do acesso à justiça, não consegue ter sua máxima eficácia atingida devido à rigidez do corpo de funcionários do Poder Judiciário que não souberam se adaptar a essa nova demanda. É necessário, não apenas nos JECs- mas principalmente neles, haja vista a possibilidade do Art. 9º da lei 9.099/95- mas também ao Poder Judiciário em geral, que a linguagem utilizada também reflita a democratização que tanto é esperada para o Judiciário. Simplificar a linguagem dos autos teriam como principais métodos a redução da quantidade de páginas escritas, quando não essenciais à resolução da lide, também passa pela utilização de termos simples e de amplo conhecimento, quando possível, bem como da escrita por meio de construções sintáticas diretas, evitando a utilização de múltiplas orações em uma mesma frase, assim como a organização dessas orações nas frases.

Mediante o exposto, o que se verifica é a necessidade e a importância da adequação da linguagem jurídica tradicional a uma linguagem que seja entendida por todos e não o contrário, isto é, a adequação da sociedade, sobretudo a população carente, à linguagem jurídica, popularmente denominado como "juridiquês". É patente que alguns termos técnicos não podem ser evitados, porém, uma solução para esse problema poderia ser a elaboração de um vocabulário técnico explicativo de maneira didática para que o cidadão que não tenha familiaridade com esses termos possa conseguir rápida e facilmente compreendê-los. Contudo, se nada for feito, os JECs, que tem por dever atender às demandas dessa parte populacional, continuarão excluindo ou dificultando o acesso à justiça para aqueles que eram um dos principais alvos desse regime processual.

André Cozer dos Santos
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Coordenador do Laboratório de Estudos Étnico-raciais da FDUSP. Pesquisador no Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia da FDUSP, membro do PET - Sociologia Jurídica da FDUSP e bolsista em dedicação exclusiva da Bolsa Diogo de Sant'ana.

Gislaine de Fatima da Silva
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). É diretora-geral do Centro Acadêmico do Centro Acadêmico, co-fundadora do Coletivo Feminista Negro Angela Davis da FDUSP e e bolsista em dedicação exclusiva da Bolsa Diogo de Sant'ana.

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