Em 1º de abril, entrou em vigor a lei 14.133. A intitulada “Lei de Licitações e Contratos Administrativos” afeta também os regimes, ainda que simplificados, de contratação de serviços, dentre outros, por empresas públicas e sociedades de economia mista, entes inseridos na denominada Administração Pública Indireta. Apesar de dispor expressamente que referidos entes administrados indiretamente pelo Poder Público não estão abrangidos pela nova lei (art. 1º, § 1º), o diploma legal excepciona desse regime de inaplicabilidade exatamente as novas normas penais trazidas (art. 178); e com incidência imediata, já que, segundo a nova lei, os dispositivos penais (e processuais) da lei 8.666/93 estão revogados na data de sua publicação (art. 193, I).
Essa opção política do legislador em dar continuidade à criminalização de atos atentatórios à lisura dos procedimentos licitatórios, mesmo que simplificados, de empresas públicas e sociedades de economia mista é novamente reforçada no artigo 185, ao determinar que são aplicáveis as normas penais “às licitações e aos contratos regidos pela lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016”. Portanto, é inexorável que as suas disposições penais se aplicam também aos certames especiais de empresas públicas e sociedades de economia mista, regidos que são pela lei 13.303, de 30 de junho de 2016. Nisso, não há nada de exatamente novo em relação ao regime jurídico-penal agora revogado.
A novidade fica para a transposição das figuras delitivas diretamente para o Código Penal. A nova lei (art. 178) insere um “Capítulo II-B” ao Título XI da Parte Especial do código, em que previstos os crimes contra “a Administração Pública”, e é intitulado “dos crimes em licitações e contratos administrativos” (novo capítulo II-B proposto).
Do ponto de vista de política criminal, trazer figuras delitivas anteriormente esparsas em legislações especiais para o Código Penal, cuja Parte Geral ainda guarda muito dos importantes influxos da Reforma de 1984, deve ser considerado como ponto positivo. Afinal de contas, uma das maiores críticas ao sistema normativo penal brasileiro é a sua incansável capacidade de se pulverizar por diplomas legislativos esparsos sem muita coerência.
Por outro lado, o projeto imprime um aumento considerável das escalas de pena privativa de liberdade. Em muitos casos, dobra-as: de 2 a 4 anos, o delito de fraudar/frustrar o caráter competitivo (o ora revogado art. 90 lei 8666/93), por exemplo, passa a ter pena cominada de 4 a 8 anos, em seu correspondente (novo art. 337-F CP).
Além da escala de pena privativa de liberdade, a pena de multa cominada aos delitos da nova lei “seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código [Penal] e não poderá ser inferior a 2% (dois por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta” (art. 337-P). Aqui, parece haver uma contradição da nova lei: a metodologia de cálculo da pena de multa no Código Penal diz respeito precipuamente “à situação econômica do réu” (art. 60, caput); a nova lei, em que pese determinar que se siga a “metodologia de cálculo” do Código Penal, dela se afasta, caso o valor final aplicado a título de multa não alcance 2% do valor do contrato licitado ou celebrado diretamente. Como se vê, trata-se de metodologia incompatível com a do Código Penal, além de se tratar de sanção claramente desproporcional, a desafiar uma análise mais rigorosa sob a garantia constitucional da individualização da pena (art. 5º, LXVI, CR). Em nossa opinião, melhor teria sido feito se se deslocasse esse percentual mínimo exigido para uma desejável e necessária sistemática de cálculo de valores mínimos para indenização ao lesado, como garante o art. 387, IV do Código de Processo Penal: afinal de contas, a pena de multa não é destinada a vítima, mas a fundo penitenciário (art. 49, caput, CP); e estabelecer percentual mínimo ligado a valor do contrato burlado quer parecer possuir claro propósito indenizatório.
Sobre as espécies delitivas, há evidente correlação com as figuras da agora revogada lei 8.666/93. As pontuais distinções merecem algumas considerações. O revogado art. 89, apesar de guardar paralelismo com o novo art. 337-E, sofreu uma mudança no enfoque do injusto, da conduta merecedora de proibição: ao passo que a lei 8.666/93 criminalizava a dispensa ou inexigência de licitação fora das hipóteses legais, a nova lei criminaliza diretamente o ato que admite, possibilita ou dá causa à “contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. A dispensa e a declaração de inexigibilidade foram diluídas por qualquer hipótese sem previsão legal. Nesse sentido, esse aparente alargamento do injusto - ou seja: da matéria proibida – poderia ter sido sopesado pela adoção de pacífica e consolidada jurisprudência do STJ, para divisar casos efetivamente relevantes para sanção penal daqueles que guardam irregularidades dignas de esferas de responsabilidade jurídica menos graves. Fala-se aqui do “dolo específico de causar dano ao erário e a demonstração do efetivo prejuízo” (STJ, APn 480/MG, rel. p/ac. Min. Cesar Asfor Rocha - Corte Especial). Devidamente adaptada na figura do tipo penal, seria uma importante medida para restringir inúmeros inquéritos policiais instaurados apenas por comunicações formais de órgãos de controle, ao menor sinal de alguma inconformidade.
O revogado art. 90 guarda total equivalência com o art. 337-F. São praticamente idênticos, exceto pela retirada da (desnecessária) menção ao meio “ajuste, combinação ou qualquer outro expediente”. Afinal de contas, se é criminalizada a fraude ao caráter competitivo por “qualquer outro expediente”, é sinal de que especificações são efetivamente desimportantes. Considerado isso, o projeto sinaliza, com essa redação, para a manutenção do entendimento jurisprudencial de que, “nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal, diversamente do que ocorre com o delito previsto ‘no art. 89 da lei 8.666/93, o art. 90 desta lei não demanda a ocorrência de prejuízo econômico para o poder público, haja vista que o dano se revela pela simples quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada com a frustração ou com a fraude no procedimento licitatório. De fato, a ideia de vinculação de prejuízo à Administração Pública é irrelevante, na medida em que o crime pode se perfectibilizar mesmo que haja benefício financeiro da Administração Pública (REsp 1.484.415/DF, ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª turma, DJe 22/2/16)’, não havendo falar em necessidade de comprovação de prejuízo à Administração ou mesmo em obtenção de lucro pelos agentes” (AgRg REsp. 1.824.310/MG, rel. Min. Sebastião Reis Jr., 6ª T.).
Apesar de paralelos, há uma clara “correção de rumo” com a transformação proposta pelo art. 337-L da nova lei ao agora revogado art. 96 da lei 8.666/93. Nesse, criminaliza-se a fraude “em prejuízo da Fazenda Pública”; naquele, “em prejuízo da Administração Pública”. A mudança de referência Fazenda Pública/Administração Pública definitivamente passa a abranger as empresas públicas e sociedades de economia mista no rol de possíveis vítimas do crime em questão.
Sem precedente na legislação ora revogada, a nova lei insere o art. 337-O ao Código Penal, pelo qual se comete crime de “omissão grave de dado ou de informação por projetista” aquele que “omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse”. A redação é de uma alergia virulenta à boa técnica. Apesar de enunciar o delito na forma omissiva, o tipo penal comporta condutas também comissivas, como “modificar ou entregar”. Além disso, o elemento “em relevante dissonância com a realidade”, se não é um falsum (meio muito mais inteligível do ponto de vista jurídico-penal), nos leva a concluir que se trata daquele que temerariamente participa de um procedimento licitatório ou competitivo análogo, apresentando informações que não sejam “suficientes e necessário[a]s para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante, incluídos sondagens, topografia, estudos de demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos”; isso de tal forma, que venha a causar impacto no regime competitivo do certame.
Do ponto de vista processual, as novas escalas penais que ultrapassem os 4 (quatro) anos trazem um potencial de operacionalização autônoma para os delitos licitatórios. De fato, com a elevação da escala penal, será possível a decretação de prisão preventiva, observados os demais requisitos, tão-somente pela prática da maioria dos delitos licitatórios (art. 313, I CPP: “será admitida a decretação da prisão preventiva: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade superior a 4 [quatro] anos”); e, pelo mesmo motivo (“pena privativa de liberdade superior a 4 [quatro] anos” – art. 1º, § 1º lei 12.850/13), será viável a criminalização de organizações criminosas alegada e especificamente voltadas à prática de delitos licitatórios, sem a necessidade de demonstração de outros delitos contra a Administração Pública, como a corrupção passiva, por exemplo.
Em suma, o advento de nova lei de licitações não traz grandes mudanças ao regime de tratamento jurídico-penal dos delitos licitatórios praticados em detrimento dos certames de empresas públicas e sociedades de economia mista, já que, em sua esmagadora maioria, as figuras delitivas são reproduções das atuais. Porém, do ponto de vista operacional de suas apurações pelas autoridades de persecução penal, as novas escalas penais propostas poderão justificar tratamento processual cautelar mais invasivo, sem mais a necessidade de se correlacionar essas apurações a algum delito contra a Administração Pública mais grave.