Em 27 de maio de 2009, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a edição da Súmula 385, cujo enunciado assim dispõe: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”.
A recepção desta súmula pelo mundo jurídico gerou opiniões controversas. De um lado, há a defesa da aplicabilidade desta e de outras súmulas pelos Tribunais Superiores, sob o argumento principal de que os enunciados sumulares possibilitam economia e celeridade processual, desafogando o Poder Judiciário de demandas repetidas, além de garantirem a unidade da ordem jurídica, a segurança jurídica e a igualdade entre os jurisdicionados. No outro polo, a Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça é criticada por contrariar diversos princípios e direitos assegurados na Constituição Federal de 1988, como o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à honra e o direito de ação.¹
Essa segunda linha crítica parece ser a mais correta.
Primeiramente, importa destacar que a reparação a um dano moral (denominação consagrada pela tradição jurídica brasileira para referenciar o dano extrapatrimonial) não pode ter qualquer condicionante além (1) da presença concomitante dos pressupostos da responsabilidade civil e (2) da lesão a um direito personalíssimo da vítima, mormente porque a própria Carta Magna de 1988 confere-lhe uma condição de garantia fundamental (artigo 5º, incisos V e X).
Além da presença concomitante dos pressupostos da responsabilidade civil, a reparação a um dano moral exige a lesão a um direito personalíssimo da vítima. Nesse sentido, o dano moral decorre da violação a um direito absoluto – isto é, oponível a todos e gerador de uma pretensão a uma obrigação passiva universal – de natureza não patrimonial, que, no âmbito civil, é exclusivamente um direito da personalidade, de modo que, fora do escopo dos direitos da personalidade, são cogitáveis apenas os danos materiais². Note-se que não há, novamente, qualquer condicionante adicional, bastando tão somente, para o dever de reparar o dano moral, que seja violado um direito da personalidade e que os pressupostos da responsabilidade civil estejam presentes.
Tais considerações são importantes para inferir que, se houver uma anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito que, para além de um mero transtorno ao devedor, cause-lhe um verdadeiro abalo em sua honra – que é um direito personalíssimo cuja tutela tem guarida expressa na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, inciso X) –, restará configurado o dano moral, independentemente da preexistência, em nome do mesmo devedor, de uma inscrição legítima. Logo, o entendimento consignado na Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça merece ser superado, vez que a reparação a um dano moral não pode exigir condicionantes adicionais que possam esvaziar esta garantia fundamental e banalizar o desrespeito a direitos personalíssimos. Afinal, “o dano moral é ele e suas circunstâncias”³.
Outro fundamento para a superação da súmula em comento repousa no fato de que ela reforça a vulnerabilidade das relações que são de consumo.
A um, porque estimula uma inscrição indevida em cadastros de proteção ao crédito por parte de empresas fornecedoras de produtos e serviços, que a façam com o fito de intimidar seus consumidores devedores, o que é, por óbvio, injustificável, mesmo que haja uma inscrição anterior legítima.
A dois, porque, ao excluir automaticamente uma hipótese de incidência de dano moral, acaba, na prática, por obstar o efetivo acesso à Justiça pelos consumidores, aos quais o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor garante direitos básicos como “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais” (inciso VI), “o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais” (inciso VII) e “a facilitação da defesa de seus direitos” (inciso VIII).
Não se pode olvidar que as normas consumeristas visam tutelar um grupo específico de indivíduos, considerados vulneráveis às práticas abusivas do livre mercado4. Inclusive, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo (artigo 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor). Outrossim, a Constituição Federal de 1988 albergou a defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso V). E, ao potencializar a intensificação da vulnerabilidade dos consumidores, pelas razões expostas supra, a Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça caminha na contramão desses princípios, que são de ordem pública e interesse social.
Ainda, a referida súmula contradiz um posicionamento consolidado pela própria Corte Superior, segundo o qual “a inscrição/manutenção indevida do nome do devedor no cadastro de inadimplente enseja o dano moral in re ipsa, ou seja, dano vinculado a própria existência do fato ilícito, cujos resultados são presumidos”5, sendo, nessa situação, “a exigência da prova satisfeita com a demonstração da inscrição indevida”6. Assim, a necessidade de uma jurisprudência coerente (artigo 926, caput, in fine, do Código de Processo Civil) mostra-se como outro fundamento hábil a ensejar a superação da Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça.
Obstar a reparação de dano sofrido por pessoa meramente em razão de anotação preexistente fere, ademais, o princípio da isonomia, positivado no caput do art. 5º da Carta Magna, haja vista que parte do pressuposto que a honra de quem detenha inscrição devida seria, de alguma forma, inferior à das demais pessoas.
É bem verdade que o Código de Processo Civil conferiu uma eficácia vinculante às súmulas editadas pelo Superior Tribunal de Justiça, ao: permitir que o juiz julgue liminarmente o pedido que contrariá-las (artigo 322, inciso I); dispensar a remessa necessária para as sentenças nelas fundadas (artigo 496, § 4º, inciso I); determinar que os juízes e tribunais devem observá-las (artigo 927, inciso IV); possibilitar que o relator negue provimento de recurso que contrariá-las (artigo 932, inciso IV, alínea “a”) ou conceda provimento ao recurso quando a decisão recorrida contrariá-las (artigo 932, inciso V, alínea “a”); facultar que o relator julgue de plano o conflito de competência quando sua decisão se fundar nelas (artigo 955, parágrafo único, inciso I).
Entretanto, tais enunciados sumulares possuem uma força vinculante média, a qual “autoriza os órgãos judiciais ou da Administração Pública a adotar providências de simplificação do procedimento e consequente abreviação da duração do processo”7. Não são dotadas, pois, de uma força vinculante forte, como são as súmulas vinculantes e as decisões proferidas no controle concentrado de constitucionalidade, nos procedimentos de recursos especiais e de recursos extraordinários repetitivos e nos incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência. Assim, por não terem uma força vinculante em sentido estrito, a superação do entendimento das súmulas do Superior Tribunal de Justiça se torna menos complexa e mais adequável aos casos concretos.
Inclusive, o Tribunal da Cidadania já admitiu a flexibilização de sua Súmula 385, quando “não tenha havido o trânsito em julgado das outras demandas em que se apontava a irregularidade das anotações preexistentes, desde que haja nos autos elementos aptos a demonstrar a verossimilhança das alegações”8. Ainda que tal orientação tenha se mostrado como um avanço, ela não elidiu totalmente a incidência da Súmula 385, vez que, consoante o posicionamento consignado pela Corte Superior, ela pode ser aplicada se houver o trânsito em julgado da ação cuja conclusão seja pela regularidade da anotação preexistente.
É necessário, pois, que haja não apenas uma flexibilização, mas uma genuína superação do entendimento firmado na Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça, em razão de sua dissonância em relação à garantia fundamental de reparação por danos morais, à vulnerabilidade existente nas relações de consumo e à própria jurisprudência da Corte, conforme exposto alhures.
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1. POZZETTI, Valmir Cesar; PANTOJA, Aline Susana Canto. A (in)constitucionalidade da Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça. Scientia Iuris, Londrina, v. 17, 1, p. 27-48, jul. 2013, p. 28.
2. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista Trimestral de Direito Civil (RTDC), v. 6, p. 79-97, abr./jun. 2001, p. 96.
3. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Novo Manual de Responsabilidade Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 219.
4. MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 74.
5. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 597.814 – SP. Rel.: Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. J. 18 nov. 2014. Diário da Justiça Eletrônico, 21 nov. 2014.
6. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 293.669 – PR. Rel.: Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Terceira Turma. J. 15 out. 2001. Diário da Justiça, 04 fev. 2002, p. 348.
7. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, volume 2: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 737.
8. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 1.704.002 – SP. Rel.: Min. Nancy Andrighi. Terceira Turma. J. 11 fev. 2020. Diário da Justiça Eletrônico, 13 fev. 2020.