1. Considerações preliminares
No julgamento da ADPF 779 o pleno do STF, chancelando o voto condutor do seu relator ministro Dias Tófolli, proibiu a sustentação da tese de legítima defesa da honra nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, ignorando a constitucionalidade da plenitude de defesa assegurado nesses julgamentos, que é superior, isto é, mais abrangente que a própria ampla defesa, igualmente garantida pelo texto constitucional. Ignora-se que, na atualidade, discursos de ódio e de desrespeito à vítima não tem o menor espaço no Plenário do Júri, ante o amplo debate, conhecimento e conscientização da sociedade como um todo, além da previsão constante no art. 497 III do CPP, que autoriza a intervenção do juiz presidente, aliás, devidamente reforçado pelo enunciado 47 do Fonavid. Nesse sentido, Marcos Paulo Dutra Santos1, em magnífico artigo jurídico, destaca que "teses absolutórias de cunho misógino são desaconselháveis à defesa, porque enfrentam natural repulsa social — os jurados, antes de juízes leigos, além da identidade de gênero, têm filhas, netas, sobrinhas, enteadas, logo, qualquer discurso machista será muito mal recebido".
Qualquer restrição, limitação ou exclusão da ampla defesa garantida no âmbito do Tribunal do Júri afronta o texto constitucional que assegura a plenitude de defesa, especialmente por se tratar de julgadores populares, sem formação técnico-jurídica e que decidem por íntima convicção. Reconhecendo a soberania do Tribunal do Júri, o constituinte decidiu ampliar no crimes dolosos contra a vida a abrangência da ampla defesa, que, nesses casos, deve ser plena, isto é, sem qualquer limite ou restrição de ordem jurídico-constitucional ou infraconstitucional.
Não se questiona, contudo, a inadmissibilidade de sustentações atentatórias à honra e à dignidade (ou memória) da vítima, mas sustenta-se o direito de defesa plena, ampla e irrestrita, admitindo a sustentação de qualquer tese fático-jurídica, sem restrições prévias, ao contrário, venia concessa, do que decidiu recentemente o STF no julgamento da ADPF 779, que, inadvertidamente, violentou essa garantia Constitucional. Com efeito, de forma alguma, pode ser antecipadamente limitado, restringido ou impedido o exercício desse direito defensivo. Nesse sentido, conclui com absoluto acerto o defensor público Marcos Paulo Dutra Santos2 questionando, antes da decisão plenária, o grave equívoco do conteúdo da ADPF 779, nos seguintes termos: "Impõe-se cerceamento ao direito de defesa que, por mandamento constitucional (cláusula pétrea, registre-se), é pleno, rebaixando-o à ampla defesa. Embaralham-se os incisos XXXVIII, "a", e LV do artigo 5º da CRFB/88. Inexiste custo/benefício (proporcionalidade em sentido estrito) a justificar tal proceder, motivo pelo qual a pretensão veiculada na ADPF 779 sequer merece conhecimento. Ou, se enfrentada, há de ser julgada improcedente".
Realmente, as decisões do Tribunal do Júri são submetidas aos mesmos princípios constitucionais e, não raro, referidas decisões são anuladas ou reformadas pelos tribunais, inclusive, para serem submetidas a novo julgamento (art. 593, inciso IV e suas alíneas do CPP). As reformas de muitas decisões do tribunal popular pelos Tribunais de Justiça não violam o "princípio da soberania dos veredictos", eis que fundadas em error in judicando ou em error in procedendo, justificando suas correções, na medida em que, como dizia José Frederico Marques3, a soberania do júri não é absoluta, nos seguintes termos: “Consistirá, porém, essa soberania na impossibilidade de um controle sobre o julgamento, que, sem subtrair ao júri o poder exclusivo de julgar a causa, examine se não houve grosseiro error in judicando? De forma alguma, sob pena de confundir-se essa soberania com a onipotência insensata e sem freios”.
A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, com efeito, não os torna imunes à submissão ao princípio do duplo grau de jurisdição, inclusive, quanto ao exame de mérito, especialmente na hipótese de decisão manifestamente contra a prova dos autos (art. 593, III, d, do CPP). As previsões dos demais incisos tampouco resultam afastadas da apreciação do segundo grau, inclusive matéria fática que implique nulidades, capituladas nas alíneas do inciso IV do mesmo artigo antes mencionado.
No julgamento da ADPF 79, basicamente, chancelando a liminar concedida pelo digno relator, considerou que sustentar tese de legítima defesa da honra seria inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Pretendeu, a Corte Suprema, dar interpretação conforme à Constituição a dispositivos do CP e do CPP, objetivando excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa. Em outros termos, referida decisão pretendeu impedir que os defensores de réus sustentem, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à essa tese) perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Ignorou-se, contudo, além da plenitude de defesa, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri assegurada, igualmente, pelo texto constitucional, confundindo soberania, procedimento e competência. O Tribunal do Júri é constitucionalmente soberano para acatar ou recusar qualquer tese fático-jurídica submetida a seu crivo (inc. XXXVIII, alínea "a", do art. 5º da CF). Em outros termos, a soberania do Júri é tão constitucional quanto a proteção da honra e do instituto da legítima defesa. São institutos constitucionais de mesma grandeza e a sua utilização não pode ser limitada, reduzida ou excluída, previamente, por nenhum tribunal, mas podem e devem ser limitados ou afastados pelo confronto de outros institutos jurídicos no âmbito e no bojo do devido processo legal, segundo a mesma Constituição Federal (inc. LlV do art. 5º). Aliás, é assim que funciona harmonicamente nosso ordenamento jurídico, que tem seus próprios mecanismos de controle de legalidade e de constitucionalidade, inclusive dos meios e teses defensivas.
Por isso, venia concessa, não tem razão o digno e culto Dias Toffoli, mesmo amparado pela ratificação do plenário, quando professa que “a chamada legítima defesa da honra não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico”. Pelo contrário, o nosso Código Penal dedica um capítulo inteiro (V) do Título I da sua Parte Especial (a mais importante), que trata "dos crimes contra a pessoa", exclusivamente na tutela do bem jurídico honra (arts. 135 a 145), dando-lhe, como se vê, excepcional importância, não apenas sob a ótica criminal, mas também no plano cível, quando lhe assegura justa indenização e reparação à sua ofensa. Por outro lado, no Tribunal do Júri a autoridade judiciária não julga, mas apenas preside o julgamento, cabendo aos representantes da sociedade (sete jurados) darem o veredito final, aceitando ou rechaçando as teses defensivas, sejam quais forem, sem restrições ou limitações legais ou jurisprudenciais prévias. Recordando, mais uma vez, há a soberania desses vereditos, sem restrições jurisprudenciais, observando-se a liturgia desse instituto jurídico-constitucional nos crimes dolosos contra a vida. Não se questiona, na verdade, a grande desproporção entre a importância do bem jurídico vida e do bem jurídico honra, cujas penas cominadas bem a demonstram, segundo critérios do legislador. Também por isso é incorreta a afirmação do digno e culto relator ministro do STF, acima citada, quando afirma que, em outras palavras, "a honra não encontra proteção em nosso ordenamento jurídico". Certamente, o legislador brasileiro não incorreu nesse grave equívoco deixando ao desamparo um dos mais importantes atributos da personalidade humana, qual seja, a sua honra e dignidade. Estabeleceu não apenas meios de proteção como também meios de controle de eventuais excessos através do constitucional duplo grua de jurisdição.
2. Constitucionalidade da proteção de bens jurídicos individuais
Qualquer bem jurídico pode ser protegido pelo instituto da legítima defesa, para repelir agressão injusta, atual ou iminente, sendo irrelevante a distinção entre bens pessoais e impessoais, disponíveis ou indisponíveis. Qualquer bem jurídico, relevante, importante, inclusive bens jurídicos pouco valiosos também podem ser protegidos pela legítima defesa, tais como, ofensas à honra, lesões corporais leves, dignidade pessoal, dignidade sexual etc., ao contrário do entendimento adotado por nossa Corte Suprema no julgamento da ADPF 779, confirmando, por maioria, a liminar concedida pelo digno ministro Dias Tófolli. Todos os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico admitem, em tese, a legítima defesa, inclusive a honra e a dignidade pessoal, ao contrário, venia concessa, dessa decisão do STF. Importa, evidentemente, analisar, nessa hipótese, como em qualquer outra, a necessidade, moderação e, principalmente, a proporcionalidade dos meios utilizados na defesa desses bens jurídicos. Esse é o parâmetro adequado para o enfrentamento das teses defensivas, especialmente o da legítima defesa, no seio e nos limites do devido processo legal, mas nunca, repita-se, previamente.
O Código Penal encarregou-se de estabelecer, em sua definição de legítima defesa, que é um conceito universal (abrange todos os bens jurídicos), seus limites objetivos e subjetivos. Na verdade, embora se reconheça a legitimidade da reação pessoal, nas circunstâncias definidas pela lei, o Estado exige que essa legitimação excepcional obedeça aos limites da necessidade, da proporcionalidade e da moderação4, independentemente da natureza e importância do bem jurídico lesado-protegido. A configuração de uma situação de legítima defesa está diretamente relacionada com a intensidade e gravidade da agressão, periculosidade do agressor e, principalmente, pela proporcionalidade e moderação no uso dos meios de defesa disponíveis. No entanto, não se exige uma adequação perfeita, milimetrada, entre ataque e defesa, para se estabelecer a necessidade e proporcionalidade dos meios defensivos, bem como a moderação no seu uso. Reconhece-se, por vezes, a dificuldade valorativa de quem se encontra emocionalmente envolvido em um conflito no qual é vítima de ataque injusto. A reação ex improviso não se compatibiliza com uma detida e criteriosa valoração dos meios necessários (proporcionalidade) à repulsa imediata e eficaz, aspectos que deverão ser criteriosamente valorados em julgamento válido.
Necessários são os meios disponíveis, suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa legítima. Se não houver outros meios, poderá ser considerado necessário o único meio disponível (ainda que superior aos meios do agressor), mas, nessa hipótese, a análise da moderação do uso deverá ser mais exigente, mais criteriosa, mais ajustada às circunstâncias. Aliás, além de o meio utilizado dever ser o necessário para a repulsa eficaz, exige-se que o seu uso seja moderado, especialmente quando se tratar do único meio disponível e apresentar-se visivelmente superior ao que seria necessário. Essa circunstância deve ser determinada pela intensidade real da agressão e pela forma do emprego e uso dos meios defensivos utilizados. Como afirmava Welzel, “a defesa pode chegar até onde seja requerida para a efetiva defesa imediata, porém, não deve ir além do estritamente necessário para o fim proposto”5. Havendo disponibilidade meios de defesas, igualmente eficazes, deve-se escolher aquele que produza o menor dano.
Defendemos a invocação do princípio da proporcionalidade na legítima defesa, na medida em que os direitos absolutos devem circunscrever-se a limites muito exíguos. Seria, no mínimo, paradoxal admitir o princípio da insignificância para afastar a tipicidade ou ilicitude de determinados fatos, e sustentar o direito de reação desproporcionada à agressão, como, por exemplo, matar alguém para defender quaisquer valores ou bens jurídicos menores, v, g. honra, dignidade, lesões leves etc. Nessa linha de orientação manifestava-se Johannes Wessels, afirmando que “O direito à legítima defesa encontra seu limite na proibição geral do abuso de direito e nos elementos normativos da ‘imposição’: uma defesa, cujas consequências situam-se em crassa desproporção para com o dano iminente, é abusiva e, assim, inadmissível”6. Mas, por outro lado, o julgamento da desproporcionalidade, moderação, caracterização ou não do instituto de legitima defesa devem ser julgados sob o crivo do devido processo legal, pelo Tribunal do Júri nos crimes contra a vida, e nunca, a piori, ao contrário do que fez o STF no julgamento da ADPF 779.
São esses aspectos que definem o cabimento ou a congruência que definem a admissibilidade da legítima defesa contra qualquer bem jurídico, inclusive a honra, e não uma equivocada, arbitrária e inconstitucional decisão do próprio STF, violando, inclusive, a soberania do Tribunal do Júri, até porque julgamento dos crimes contra a vida são da competência desse tribunal popular, que valorará, inclusive, o cabimento e limite da legítima defesa, sempre submetido ao duplo grau de jurisdição.
Pois bem, é neste âmbito da proporcionalidade e da moderação que se deve discutir, in concreto, a correção ou incorreção de qualquer tese defensiva, inclusive da tese de legítima de defesa da honra para justificar ou não, por exemplo, a prática de um homicídio (consumado ou tentado). Ninguém discute a abismal desproporcionalidade entre um crime contra vida para defender a honra pessoal, inconcebível em uma sociedade democrática em termos gerais. Em caso que tais salta aos olhos a absoluta de desproporcionalidade entre os dois bens jurídicos, honra e vida, ainda que ambos sejam penalmente protegidos, mas sua (in)admissibilidade cabe ao próprio Tribunal do Júri decidir no caso concreto. Nessas hipóteses há, na verdade, teoricamente, duas desproporcionalidades: uma, entre os dois bens jurídicos em si – honra e vida – havendo um abismo entre ambas; e outra, entre a conduta escolhida (morte do ofensor) para repelir a ofensa sofrida (honra lesada). Racionalmente, nos tempos atuais, juízo algum, leigo ou não, admitirá, nessas circunstâncias, a proporcionalidade entre matar para defender a honra, ou seja, a invocação de ofensa da honra para justificar a prática de um homicídio ou feminicídio, mas o seu julgamento não pode ser afastado, previamente, do juízo competente, qual seja, o Tribunal do Júri.
O que fundamenta a impossibilidade de julgamento absolutório da legítima defesa da honra no Tribunal do Júri, não é a inconstitucionalidade ou desproteção jurídica da "honra", ao contrário do que se afirmou no julgamento dessa ADPF, mas tão somente a desporporcionalidade entre ambas, descaracterizando a exigência conceitual dos requisitos denominados "meios necessário" e seu "uso moderado". A absoluta conscientização da sociedade brasileira, na atualidade, não admite absolver alguém pela prática de homicídio alegando defesa da honra pessoal, mas essa decisão compete a ela, sociedade, via Tribunal do Júri, adotá-la, sem cercear, previamente, o direito de defesa de ninguém, mesmo a ilegal ou excessiva.
Pois é nesse campo que se deve repelir eventual tese de legítima defesa da honra, na hipótese de homicídio doloso, mas nunca impedir ou proibir que, eventualmente ou não, seja invocada no Tribunal do Júri, sob pena de inconstitucionalidade de dita decisão, por cerceamento ao direito constitucional da ampla defesa – in caso, de defesa plena - de qualquer bem jurídico penalmente tutelado, inclusive da legítima defesa da honra. Enfim, o Tribunal do Júri tem competência para recusar referida tese, e, normalmente, o fará -, exatamente pela desproporcionalidade dos bens jurídicos em jogo e pelo meio usado ser inadequado e impróprio, mas jamais se poderá proibir o direito ao exercício da plenitude de defesa assegurada na alínea "a" do inciso XXXVIII art. 5° da CF e no inciso LV, ambos da CF.
3. Da imprescindibilidade do animus defendendi
Embora não se exija a consciência da ilicitude para afirmar a antijuridicidade de uma conduta, é necessário, para afastá-la, que se tenha, pelo menos, conhecimento da ação agressiva sofrida, além do propósito de defender-se. A legítima defesa deve ser objetivamente necessária e subjetivamente orientada pela vontade de defender-se. Como afirmava Welzel, “A ação de defesa é aquela executada com o propósito de defender-se da agressão. Quem se defende tem de conhecer a agressão atual e ter a vontade de defender-se”7.
A reação legítima autorizada pelo Direito somente se distingue da ação criminosa pelo seu elemento subjetivo: o propósito de defender-se. Com efeito, o animus defendendi atribui um significado positivo a uma conduta objetivamente desvaliosa (negativa). Contrapõe-se assim o valor da ação na legítima defesa ao desvalor da ação na conduta criminosa. Aliás, o valor ou desvalor de qualquer ação será avaliado segundo a orientação de ânimo que comandar a sua execução. Somente a presença dos elementos objetivos constitutivos de uma causa de exclusão de criminalidade não pode justificar uma ação ou omissão típica, se faltar o elemento subjetivo de dita causa justificante.
Enfim, em sede de Direito Penal, um fato que na sua aparência exterior apresenta-se objetivamente com os mesmos aspectos pode, dependendo da intenção do agente, receber definição variada. Assim, causar a morte de alguém, dependendo das circunstâncias, motivos e, particularmente, do elemento subjetivo, pode configurar homicídio doloso, homicídio culposo, legítima defesa real, legítima defesa putativa, excesso doloso ou culposo etc.
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1 Santos, Marcos Paulo Dutra. A ADPF nº 779 e o embaralhamento entre plenitude e ampla defesa, publicado na Revista Conjur, em 08 de março de 2021.
2 A ADPF nº 779 e o embaralhamento entre plenitude e ampla defesa.
3 Marques, José Frederico. A instituição do júri, Campinas, Bookseller, 1997, p. 75.
4 Maurach, Reinhart e Zipf, Derecho Penal, Buenos Aires, Ed. Astrea, 1994, cit., v. 1, p. 449-50.
5 Welzel, Hans, Derecho Penal alemán, trad. Bustos Ramirez e Sergio Yáñez Pérez, Santiago, Ed. Jurídica de Chile, 1970, p. 125.
6 Wessels, Johannes, Direito Penal, Parte Geral, trad. Juarez Tavares, Porto Alegre, ed. Sérgio A. Fabris, 1976, p. 72-3.
7 Welzel, Derecho Penal alemán, cit., p. 125.